CREDITO: LAERTE
A eternidade brasileira
Pequena viagem do país do futuro para uma boca cheia de farofa
Fernando de Barros e Silva | Edição 186, Março 2022
“O que caracteriza o bolsonarismo, como o trumpismo, é a falta absoluta de vergonha. Os mortos-vivos estão eufóricos, como aqueles coadjuvantes de Michael Jackson no clipe de Thriller. Podem olhar nos nossos olhos, é assim que somos, que sempre fomos, que continuaremos a ser. O desfile de Carnaval brasileiro, democrático e desinibido, encontrou um rival nessa grotesquerie igualmente insaciável.”
As palavras são do artista plástico, escritor e ensaísta Nuno Ramos. Pertencem a uma passagem do livro Fooquedeu, que está sendo lançado neste mês pela editora Todavia. É uma espécie de diário organizado por aforismos, que começou a ser escrito na época do afastamento de Dilma Rousseff, em abril de 2016, e foi concluído logo após a posse de Jair Bolsonaro, no início de 2019, com exceção da introdução, que é recente.
A citação que abre este texto faz parte do aforismo intitulado Ele. Nuno prossegue: “A decomposição social foi se escancarando entre nós, festejando a si mesma, mas não conseguia encontrar um rosto que a representasse. […] Escolheram, afinal, depois de alguns anos pensando, o pior brasileiro como rosto. Quer saber? – O pior entre nós será… já sei! – nosso Mito! (A escolha dessa palavra não é o cúmulo da falta de vergonha?) E assim entregamos o país ao pior de nós. Sua mitologia é exatamente essa: por ser o mais ignorante, o mais violento, o mais desqualificado, tudo poderia – currar, matar, torturar, dizer o indizível.”
Sabemos que Bolsonaro foi eleito não apesar de sua selvageria, mas por causa dela. Não era preciso esperar por 650 mil mortes para tomar ciência do que ele é capaz. A coerência entre o que ele sempre pregou e o que seu governo executa cobre de impostura a retórica da decepção – “ah, eu esperava outra coisa” –, sobretudo quando sai da boca de quem se beneficiou politicamente da onda de extrema direita. A tibieza dos democratas de ocasião que agora se acotovelam na chamada “terceira via” procurando temperar seu antipetismo com ingredientes da civilização tem um quinhão de responsabilidade na demência que acometeu o país.
Demência sim, pois ficou para trás o tempo em que nos assolava apenas um festival de besteiras. Milhares de pessoas caíram recentemente na esparrela de que Bolsonaro teria demovido Vladimir Putin de invadir a Ucrânia. Enquanto a imprensa se dedicava a desmentir a patacoada, enxugando gelo, ministros de Estado participavam da ação coordenada de difusão da notícia falsa pelas redes sociais. Instalada a confusão, um ou outro áulico sempre aparece para dizer que tudo não passava de blague, como é que os jornalistas puderam levar isso a sério, a imprensa não é mesmo confiável. E assim acrescenta-se ao enredo uma nova camada de desconfiança, desta vez dirigida ao jornalismo de forma geral.
Seria menos preocupante se Bolsonaro não estivesse justamente na Rússia, às vésperas da guerra que seria deflagrada dias depois, acompanhado pela turma que gosta de pescar nas águas turvas da web, a começar pelo filho vereador que tem o salário pago pelos contribuintes do Rio de Janeiro, mas dá expediente no Gabinete do Ódio, em Brasília. O governo de Putin, como é sabido, se especializou na arte de produzir ataques cibernéticos em outros países para manipular processos políticos. Mas disso, é claro, Carluxo quer distância.
O mês de fevereiro terminou registrando uma discreta recuperação da popularidade de Bolsonaro, alavancada pelos mais pobres, o que levou alguém insuspeito como Guilherme Boulos a escrever em seu Twitter: “Seria um erro grosseiro subestimar o efeito de um benefício de 400 reais para 18 milhões de famílias brasileiras que se encontram na extrema pobreza. É a diferença entre comer ou não. Entre ser despejado ou conseguir pagar o aluguel.”
Lula segue liderando as pesquisas com folga. Em tempos menos anormais bastaria dizer que ele ainda é favorito. Mas isso não é suficiente, ou pior, soa um tanto ingênuo quando o presidente da República opera mais para deslegitimar a eleição do que para vencê-la.
Alguém duvida de que a confiabilidade da urna eletrônica continuará a ser contestada até outubro e mesmo após as eleições? Diante de um placar desfavorável a Bolsonaro, mas apertado como foi o segundo o turno entre Dilma e Aécio Neves em 2014, quais seriam (ou serão) as consequências?
A certa altura, Nuno Ramos lembra que Bolsonaro foi eleito numa enorme má sorte histórica, “com uma proporção de casualidade (a facada à frente) que não pode ser esquecida”. Isso, no entanto, ele diz, “não diminui em nada (ao contrário) a sua potência de destruição”. Quem quiser compreender o que acontece no país precisa “reunir esta absoluta casualidade com a fatalidade do bolsonarismo, a coerência inevitável do seu horror”.
Como num bom romance, sugere Nuno, “o circunstancial e o histórico precisam aprender a andar juntos, naquele sentido em que Lukács diferenciava o narrar (o narrador participa dos acontecimentos) e o descrever (o quadro histórico já se fechou e o narrador ficou de fora). Precisamos narrar o bolsonarismo (mas mal conseguimos descrevê-lo), refazer, incluindo-nos na trama, esta passagem da circunstância à fatalidade, da porta estreita à vasta paisagem que se abriu a estes imbecis”.
Narrar o horror do bolsonarismo, mais do que descrevê-lo como se ele fosse o presente que já pertence ao passado, equivaleria, em termos psicanalíticos, à elaboração de um trauma. Não parece ser o que se desenha no horizonte. Bolsonaro – e, salvo engano, a campanha eleitoral deixará isso escancarado – foi naturalizado e está incorporado à nossa paisagem. Somos atrozes, e daí? Basta que a economia despiore um pouco para que ele seja lembrado nos salões da elite por sua “autenticidade” e considerado “um mal menor”. Seria o caso de inverter o desafio feito por Nuno e perguntar se não é o bolsonarismo quem está nos narrando.
Em seu livro Na Contramão da Liberdade: A Guinada Autoritária nas Democracias Contemporâneas (Companhia das Letras, 2019), o historiador Timothy Snyder identifica duas narrativas dominantes na história recente. A primeira, decorrente do colapso do comunismo e da fábula do “fim da história”, é o que ele chama de política da inevitabilidade. Ela é conhecida: vitoriosas, as democracias ocidentais seriam o destino do mundo e o futuro seria a repetição virtuosa do presente, já que o progresso inexorável prevaleceria sobre as vicissitudes da política.
Tal ficção, como se sabe, desmoronou com a crise financeira de 2008 e o aumento das desigualdades quando se apostava no contrário. O desencanto abriu o caminho para a política da eternidade: “Enquanto a inevitabilidade promete um futuro melhor para todos, a eternidade coloca um país no centro de uma história cíclica de vitimização. O tempo não é mais uma linha reta para o futuro, mas um círculo que traz de volta, de forma incessante e infinita, as mesmas ameaças do passado. […] Os defensores da política da eternidade espalham a convicção de que o governo não pode ajudar a sociedade como um todo, apenas tomar precauções contra ameaças. O progresso dá lugar à condenação.”
O objeto central de Snyder é a Rússia de Putin, e seu ponto de chegada, a eleição de Donald Trump, mas muito do que ele diz cai sob medida para o Brasil: “Quando no poder, os políticos da eternidade fabricam crises e manipulam a sensação resultante. Para não pensarem em sua incapacidade ou indisposição para fazer reformas, instruem os cidadãos a sentirem euforia ou indignação em breves intervalos, afogando o futuro no presente.”
Entre as qualidades de Fooquedeu, que são muitas, estão a percepção do tamanho do desastre e a desconfiança de que isso não vai passar assim. “A inesgotabilidade do pior talvez seja uma verdadeira Era, à qual passamos todos a pertencer”, escreve Nuno. Cansamos de ser modernos sem de fato nunca termos sido. Sejamos eternos, regozija-se Bolsonaro com a boca cheia de farofa. Não é um apelo qualquer. E tem a vantagem de acabar de uma vez com essa palhaçada de país do futuro.
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