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A forma das fragrâncias
O capítulo brasileiro da indústria trilionária que dá olor e sabor às pessoas e mercadorias
Marcos Sá Corrêa | Edição 24, Setembro 2008
Jean-Népomucéne-Auguste Pichault, o conde de Fortsas, levou 168 anos para deixar de ser um boato e virar um perfume. Ele pairava no ar desde 1840, quando seu espólio foi à venda num cartório de Binche, na Bélgica, com 52 livros raros, inclusive um Evangelho do Senhor Jesus, “expurgado por um sans-culotte” na França revolucionária das “idéias aristocráticas e monárquicas”. Os livros e o conde eram fictícios, mas, ainda assim, o leilão levou furtivos colecionadores a Binche naquela manhã de agosto de 1840. E o catálogo do leilão, obra do jurista e numismata Renier-Herbert Ghislain de Chalon, presidente da Sociedade dos Bibliófilos de Bruxelas, caiu para sempre no gosto dos bibliófilos – talvez por se esmerar na descrição de detalhes como “dois furos de traça na margem de baixo” e “encadernação azul com bordas douradas”.
Um dos 120 exemplares do catálogo está há quase quarenta anos nas mãos do industrial José Mindlin, que um dia o sacou da estante, em sua biblioteca, para impressionar a editora Anna Paula Martins. “Duvido que saiba o que é isso”, desafiou-a Mindlin. Ela sabia. Por acaso, mas sabia: conhecera o catálogo na véspera, no vôo para São Paulo que a levava ao encontro de Mindlin, lendo Ter e Manter, uma História Íntima dos Colecionadores, escrita pelo alemão Philipp Blom.
O resultado desse encontro fortuito de um conde inexistente, um industrial bibliófilo e uma editora de livros de arte resultou, há poucos meses, na reedição do catálogo, numa tiragem pequena, impressa em serigrafia e numerada à mão. Com o catálogo, publicado pela Dantes, de Anna Paula, vieram roupas e acessórios da figurinista Luiza Marcier, dona da grife À Colecionadora, que entrou de sócia na brincadeira. E se juntou ao conjunto também um pequeno frasco, de 50 mililitros, em forma de tinteiro antigo, contendo álcool, propilenglicol, água e CII91140. Lá dentro, está o perfume Conde de Fortsas, finalmente corporificado.
E que perfume. O Conde de Fortsas virou um legítimo fougère, palavra francesa que quer dizer “samambaia” e, no dialeto dos perfumistas, designa um certo cheiro de bosque, num fundo de lavanda e musgo, onde narinas mais atiladas farejam laivos de tabaco e noz. Parece vago. Mas esse composto de partículas voláteis deu ao conde o que ele nunca teve: moléculas, o passaporte para a existência concreta no limiar da matéria. No fundo, Fortsas agora é assim:
Ou seja, é a essência da cumarina, a substância odorífica, cristalina e incolor existente na semente de uma planta chamada cumaru (devidamente escrita acima no ideograma dos químicos). A molécula que serve de base ao fougère deu a Fortsas uma identidade “de talco”, segundo Anna Paula Martins, ou “de avozinha”, como diz Luiza Marcier. As duas criaram o perfume pedindo cheiros “de coisa antiga” a um laboratório especializado. E chegaram a uma nova versão de uma fragrância que inebriou a belle époque, em 1881, sob a etiqueta Houbigant.
O Fougère Royale, da Houbigant, é um clássico da perfumaria moderna. Foi o primeiro perfume a usar ingredientes sintéticos. No caso, uma réplica artificial da molécula de cumaru, a fava-de-cheiro, que os índios da Amazônia usavam para fazer colares e os aristocratas europeus, para tapear a falta de banho. Em 1873, o Compêndio dos Vegetaes do Brasil, do botânico Manuel de Arruda Câmara, dizia que a árvore, ao florir, “perfuma os ares, suave e agradável”. O problema da cumarina natural é que ela custa atualmente cerca de 400 euros o quilo. A sintética sai por 10 euros. Trocando uma pela outra, o perfumista Paul Parquet pôde, já naquela época, carregar a mão no Fougère Royale.
O Fougère Royale original, o da Houbigant, sobrevive hoje, guardado como um tesouro, numa cripta climatizada na Osmoteca do Instituto Superior do Perfume, da Cosmética e da Aromática Alimentar, no Val-d’Oise, perto de Versalhes. É um museu do cheiro, fechado aos leigos. Conserva, nas embalagens originais de marroquinaria e cristal, nomes que evaporaram dos salões há muitas décadas, como o próprio Houbigant, e Piguet, Fath ou Worth. Foi ali que o crítico de perfumes Luca Turin conheceu os eflúvios do Fougère Royale, e se sentiu como se “entrasse num zoológico e encontrasse, numa jaula, o tigre-de-dentes-de-sabre”.
Ao crítico foi dado o direito de aspirar uma ínfima nesga de moléculas, numa tira de papel. Mesmo assim, ele escreveu que, “como uma sinfonia de Bruckner”, o cheiro revelou-se “fresco, austero, quase amargo”. Lembrou-lhe “banheiros lavados com esfregão, azulejos em preto-e-branco, tolhas limpas levemente úmidas e pai recém-barbeado”. No fundo, reconheceu em seguida, sentiu “um toque de almíscar natural, uma substância que vem do rabo de um gato asiático e cheira exatamente a isso”.
Como nem todo mundo tem o faro de Turin, no Brasil o Conde de Fortsas fez por menos. Anna Paula e Luiza o criaram “numa espécie de gincana”. Recebiam amostras e deixavam qualquer um provar, “avó, namorada de irmão ou amigo de passagem pelo ateliê”. Venceu a fórmula com menos vetos. Mas elas contaram com o suporte de José Paulo Gandra Martins, dono da Bio Tec, uma empresa que importa essências e exporta matérias-primas para a indústria de perfumaria. Ele vive entre a fábrica em São Paulo, o apartamento no Rio de Janeiro, a casa de campo em Tiradentes, Minas Gerais, e os clientes dispersos pelo mundo, que o fazem voar 600 mil milhas por ano. Está no ramo há 54 anos, e é o pai de Anna Paula.
Antes de publicar livros, Anna Paula trabalhou com o pai como representante comercial. Vendia flavorizantes tutti frutti para chicletes produzidos na Baixada Fluminense. Com tais antecedentes, o processo que a levou à concepção do perfume do Conde de Fortsas é menos amador do que parece. Os estilistas que assinam fragrâncias também recorrem a laboratórios, para dar forma olfativa a suas idéias abstratas. A parte que cabe a esses criadores de fragrâncias é enviar memorandos com pedidos e cheirar os resultados.
Foi assim que, há 29 anos, o empresário paranaense Miguel Krigsner deu o salto para transformar a marca O Boticário numa empresa com 1 300 funcionários em sua fábrica de São José dos Pinhais, nos arredores de Curitiba, 2 114 lojas no Brasil e 500 pontos de venda no exterior. Em 1979, ele era dono de uma farmácia de manipulação, onde fazia cosméticos. Tinha também 60 mil frascos de perfume em seu estoque, sem saber o que colocar dentro deles. Arrematara os vidros vazios de Silvio Santos quando, presentea-do pelo governo com um canal, o animador de auditório desfez-se na bacia das almas de sua linha de produtos populares, para esvaziar os galpões que abrigariam o Sistema Brasileiro de Televisão, o SBT.
“Aqueles frascos viraram o maior problema da firma”, lembra Krigsner. Só se livrou do encalhe ao encontrar na Dragoco, uma fábrica de matriz alemã, então instalada no Rio de Janeiro, uma fórmula inacabada de perfume que achou a cara do consumidor brasileiro. Krigsner confiava em seu nariz. Ele só conseguiu fumar dois cigarros na vida, ambos aos 13 anos de idade, porque a fumaça o sufoca. Passa ao largo de baunilha ou alho. Saiu uma vez do teatro no meio de O Fantasma da Ópera porque a seu lado sentara-se uma nuvem adocicada de Angel, da casa Thierry Mugler.
A perfumista da Dragoco pediu-lhe dois ou três meses para afinar a receita. Krigsner quis levá-la na mesma hora. Diluída, embalada e batizada de Acqua Fresca – “pois isso, na verdade, é tudo o que fazemos em nosso ramo” –, o perfume ultrapassou nessas quase três décadas a marca dos 35 milhões de frascos vendidos. E o diretor da Dragoco que liberou a Acqua Fresca antes de ficar pronta foi José Paulo Gandra Martins, o pai de Anna Paula, porque o mundo da perfumaria, na porta de entrada, é pequeno.
Ele gravita em torno de moléculas, ligas elementares de átomos que se medem em milionésimos de milímetro. Um mundo perfumado que, igualmente, se expande mundialmente por meio de patentes de meia dúzia de multinacionais, todas fazendo o possível para se manter no anonimato. Nos Estados Unidos, ninguém se mexe por mais de uma hora, em qualquer direção, sem cruzar pelo menos cinco vezes com odores gerados a partir dessas corporações imperiais, das quais quase nada transpira. São gigantes invisíveis como a suíça Givaudan, que atua em mais de 100 países, a americana IFF, que lucrou 247 milhões de dólares no ano passado, ou a Firmenich, também suíça, que cresceu 9% em 2007.
O que essas corporações fazem, antes de mais nada, é gerar moléculas, essas “partículas extremamente minúsculas”, batizadas pleonasticamente pelo filósofo René Descartes – que, por sinal, como os grandes nomes da perfumaria, era francês. As moléculas que têm cheiro tendem a ser, mesmo nessa escala infinitesimal, menores e mais leves. Compõem-se de carbono, hidrogênio, oxigênio, nitrogênio ou enxofre – não por acaso, os cinco elementos básicos da matéria orgânica.
Certas moléculas com cheiro de hormônio têm o dom de alterar batimentos cardíacos, o ritmo da respiração, o nível de oxigênio no sangue, a pressão arterial, a vontade de almoçar ou a urgência em perpetuar a espécie, quando seus átomos esbarram num dos 347 receptores de cheiros do genoma humano. Há feromônios masculinos que, na tradução do crítico Luca Turin, só faltam gritar “leve-me a seus ovários”.
Turin dedica-se a “conectar o nariz ao cérebro”. Para tanto, dá nome aos cheiros. Mostrou até onde é capaz de chegar numa conversa com Françoise Caron, diretora da Quest, uma das multinacionais do aroma. Ela pediu sua opinião sobre uma nova fragrância, encomendada pela Escada. Turin inalou-a e respondeu que o perfume parecia uma seda que muda de cor com a luz. Nada mais evasivo, aparentemente. Mas a anfitriã o encarou em silêncio, abriu uma gaveta e puxou o memorando mandado aos perfumistas. Nele estava escrito o pedido de um perfume que “cheire como essas sedas que têm duas cores, dependendo da luz”.
Filho de argentina com piemontês, Turin nasceu no Líbano, educou-se em francês, italiano e inglês, trabalhou em laboratórios governamentais da França, da Inglaterra, dos Estados Unidos e da falecida União Soviética. Biofísico de formação, gosta de cheirar tudo desde menino. Aos 20 e poucos anos, lotado no Instituto da Pesquisa Científica de Villefranche-sur-Mer – “um Club Méditerranée com tubos de ensaio” –, aproveitou a vizinhança de Nice para aprender a colecionar perfumes. Seu currículo profissional inclui projetos militares sobre a localização de submarinos pelo odor, o armazenamento de energia solar em células orgânicas e a patente número 5258627, de um “dispositivo semicondutor empregando proteína como elemento ativo”.
No começo dos anos 90, Luca Turin se trancou num apartamento, em Paris, e tirou da cabeça seu próprio guia de perfumes, no qual classificava sem meias palavras até as marcas mais inatacáveis com classificações que iam da “obra-prima” (o Chanel nº 5, por exemplo) ao “horrível” (Désir, de Rochas). Desde que o livro saiu na França, Turin emergiu do meio acadêmico como um espectrômetro falante – e, o que é pior, falando várias línguas ao mesmo tempo e misturando argumentos da química, da física, da biologia e da teoria musical, como se a perfumaria tivesse de repente entrado na disputa de um prêmio Nobel. O que, diga-se de passagem, está acontecendo.
Nos Estados Unidos, o livro acaba de sair, revisto e ampliado, com o título de Perfumes: The Guide. Nessa versão, ganhou a co-autoria de Tania Sanchez, uma jornalista americana que Turin conheceu num blog sobre perfumes. Casaram-se. Ou, como ele diz, juntaram suas “coleções de frascos”. Eles passaram em revista 1 200 perfumes. Acharam 272 “horríveis” e apontaram 85 “obras-primas”. Trataram o Émeraud, da Coty, como um desses artefatos que “nos fazem perder a fé no capitalismo”. Descreveram o Prada como “um forte cheiro floral, maduro demais”, semelhante a uma “banana que dormiu no armário”. O Code Élixir, da Armani, deu-lhes pesadelos de ser “um chiuaua na bolsa de uma mulher”.
Os perfumistas, como os papas da enologia, estavam acostumados a linguagens menos rudes. O jornal El País fez, anos atrás, uma seleta das páginas sobre vinhos, colhendo embustes como “paisagem frutal completa”, “feitiçaria balsâmica” e “finura ornamental”. Turin, testado pelo jornalista Chandler Burr em seu gabinete do University College de Londres, mostrou por que dispensa adjetivos e circunlóquios parnasianos. Chandler ia lhe passando amostras. Ele aspirava uma a uma e definia: “grama cortada”, “ovos mexidos com gasolina”, “manga madura” ou “pomelo e cavalo molhado”. Tudo na mosca.
A cada molécula, o crítico perfumista devolvia “duas palavras, definitivas”, concluiu Burr. “No momento em que ele diz as palavras, o cheiro salta para a dimensão concreta, para a realidade.” O jornalista conheceu-o numa estação de trem na Inglaterra. O trem atrasou e, antes que a viagem acabasse, virara candidato a biógrafo de Turin. Passou a andar colado em seus calcanhares. Viu-o, no aeroporto de Heathrow, analisando compulsivamente o Image, da Cerruti, que uma vendedora do free shop pingara em seu pulso, de passagem. Vinte e cinco minutos depois, na fila de embarque, Turin desconstruiu o perfume: “Dihydromyrcenol, Ambrox e aldeídos.” A bordo, foi mais longe: “Frutas vermelhas, chá torrado e Souchong.”
Quando andava pela Índia, Turin farejou uma grã-fina de Bangalore e murmurou: “Parfum d’Elle, de Claude Montana. Beta-damascenona quase pura.” No mercado de Bombaim, um perfumista apresentou-lhe poções aromáticas e ele, de bate-pronto, “designava as suas moléculas e os átomos”. A biografia saiu há pouco com o título The Emperor of Scent – O Imperador do Olfato. São 331 páginas de idolatria explícita. Burr é hoje colunista de perfumes do New York Times.
A Givaudan, que arquiva 200 mil moléculas diferentes, inclusive de raras plantas tibetanas e feiras livres marroquinas, já andou pelo Brasil, colhendo rastros da moqueca de peixe e do frango de padaria. O “cheiro de verão” do sabão em pó Omo é uma contribuição da IFF, assim como a atmosfera de bordo “da frota mais jovem do Brasil”, marca registrada da TAM.
Tudo isso é feito discretamente, porque seus autores são “como ghost-writers“, explica Nicolas Mirzayantz, da IFF. A discrição compensa. No mercado mundial de perfumes, circulam anualmente 20 bilhões de dólares. Outras centenas de bilhões vão para os produtos de higiene e limpeza, que são suas versões baratas. E 1 trilhão de dólares pinga na conta dos alimentos aromatizados, nos quais os cheiros e os gostos tiram o melhor proveito industrial possível do fato de que o nariz fica em cima da boca, como uma coifa, concentrando 80% do que chamamos sabor.
Sozinho, o paladar só sabe se a comida é doce, salgada, amarga ou azeda. Recentemente entrou na conta das papilas da língua o “umami”, um quinto gosto, descoberto no Japão há um século por Kikunae Ikeda, mas até hoje vagamente definido como “saboroso”. Umami é o gosto das algas comestíveis, do leite materno, das carnes gordurosas e dos queijos. Essa posição subalterna do paladar não deixa de ser uma vantagem. Sem a adição de aromas artificiais, dificilmente alguém engoliria leite de soja, vitamina B ou extrato de ginseng. E o engenheiro químico Hilton Leonetti não estaria em condições de descrever um supermercado virtual, onde quase tudo, nas gôndolas de alimentos, passou algum dia por seu cargo de diretor comercial da Duas Rodas, em Jaraguá do Sul, na serra de Santa Catarina.
A clientela da Duas Rodas inclui 10 mil fabricantes de iogurtes, leites condensados, queijos, balas, refrigerantes, águas minerais, sucos, biscoitos, bolos, sorvetes, refrescos, pães, gelatinas, ketchups, mostardas, maioneses, macarrões instantâneos, sopas desidratadas, presuntos, salames, mortadelas ou rações para animais. Logo, “mais de 80% dos produtos nas prateleiras têm alguma coisa nossa”, diz Hilton Leonetti.
A Duas Rodas faz quarenta aromatizantes diferentes só para o leite condensado. Fornece gosto de pamonha para milk-shake, de feijão cozido em panela de barro para feijoadas em lata, de pão de queijo caseiro para pão de queijo de microondas, de salsicha defumada para salsichas comuns. Tem sabores de trufa de chocolate, curry com banana, jabuticaba ou açaí, para adicionar aos mais variados produtos alimentícios. Para botar em sorvete, oferece desde “bolacha Maria” a frutas tropicais, piña colada a milho verde, morango silvestre a mangaba.
Seus clientes, de 5 ou 6 mil regulares, uns 4 mil, que compram todo mês, são indústrias. Nenhuma delas sozinha responde por mais de 2% de seu faturamento. Muitas disputam as mesmas prateleiras. O concentrado de morango da Duas Rodas pode estar no iogurte da Danone, da Pauli, da Nestlé, da Tirol, da Bom Gosto ou da Nilza. Seu guaraná, no Taí e no Kuait. Seus aditivos de limão, no Sprite e na Sukita. Suas fórmulas para sorvete, nas caixas de isopor da Nestlé, da Kibon ou da La Basque, sem falar em centenas de marcas artesanais.
Quer dizer que é tudo a mesma coisa? “Não”, responde Leonetti. “Um iogurte pode levar mais açúcar, outro ser mais azedo, ter ou não polpa de fruta, ser mais ou menos encorpado. Sem falar que há aromas exclusivos. Às vezes, nem a base do aroma é a mesma. Depende da quantidade que o cliente comprar e de quanto está disposto a pagar.” Os sabores dão gosto ao que é insípido. Uniformizam sabores que variam naturalmente entre as safras e as regiões. Compensam as perdas pelo excesso de calor ou de frio na produção industrial. Mas o segredo dessa alquimia ele não conta. “Os sabores têm patente e nem eu tenho acesso às fórmulas”, afirma Leonetti.
As virtudes dos aromas podem variar, mas seu trunfo universal é cortar custos. “Com 25 litros de concentrado, faço 12 mil litros de guaraná”, conta Cláudio Bruehmüller, da Marajá, uma fábrica de bebidas mato-grossense. Há cinqüenta anos, os Bruehmüller já negociavam com a Duas Rodas. “Meu pai era representante da empresa e, de bicicleta, vendia aromatizantes para sorvete, emulsões, casquinhas.” Nos anos 70, a família comprou a Marajá, acabou com a linha de aguardentes e hoje fatura 40 milhões de reais por ano, fazendo desde refrigerantes em Várzea Grande, perto de Corumbá, a concentrados de frutas em Manaus.
Há pelo menos quarenta fornecedores de aromas no Brasil. A Duas Rodas especializou-se em “transformar a vida das pessoas numa série de momentos gostosos” – ou, sem a ênfase do slogan, dar gosto à culinária alheia. A partir da matriz no Vale do Itapocu, entre Blumenau e Joinville, irradiou-se pelo país e pelo continente, com fábricas em Sergipe, no Chile e na Argentina, além de escritórios comerciais que se espalham do Paraguai à Alemanha. Adaptou-se às nuances regionais, que requerem baunilha suave e pouco adocicada no Rio Grande do Sul, mas forte e doce no Nordeste. Parte do Brasil quer abacaxi branco. Outra prefere o amarelo. Ultimamente, os salgadinhos de milho e as batatas fritas deram para ter gosto de picanha no espeto. Os chilenos gostam de pêssegos ácidos. Os brasileiros, não.
A Duas Rodas é uma companhia independente, fundada pelos Hufenüssler há 83 anos. Nesse momento, pertence aos irmãos Rudolf e Dietrich Hufenüssler. Todos descendem de um farmacêutico que, em 1904, montou a primeira destilaria de essências. Ele se formara na Escola Superior de Química de Stuttgart, tinha um fraco por aromas tropicais e, por isso, fez planos de se mudar para a Namíbia. Mas a I Guerra Mundial acabou com as colônias alemãs na África e os Hufenüssler vieram para o Brasil, em 1925.
Jaraguá do Sul tem 130 mil habitantes, uma renda per capita de 30 mil dólares, 300 indústrias, quatro museus e catorze hotéis. Entre outras singularidades, abriga uma penitenciária cujo conselho tutelar leva a sério o programa de ressocialização. Os presos trabalham em obras públicas municipais. Saem da cadeia com poupança e promessa de emprego. O panteão de seus antigos prefeitos é uma galeria de retratos com sobrenomes Schubert, Jansen, Muller, Marquardt, Bauer, Grubba, Gerent, Schmöckel e Klizke.
Ao chegar à cidade, os Hufenüssler encontraram pequenas fábricas – a de balas Schmidt, a de bebidas Tieldke e a de chapéus Marcatto. Começaram a Duas Rodas com mudas de hortelã trazidas da Europa e um destilador montado no fundo de casa, num terreno de 15 hectares na beira do rio, na Kammerland, reservada pela Câmara Municipal a projetos de colonização. Nas chuvas, um caminho barrento isolava a Kammerland de Jaraguá do Sul. Em 1938, produziam aratu, mandioca, erva-mate, fécula de milho e araruta. A firma se denominava Indústrias Reunidas Rudolf Hufenüssler. O nome Duas Rodas revelou-se mais fácil de pronunciar. Vem das duas rodas de carroça, importadas do brasão medieval de Mainz pelo logotipo da empresa.
Ela está agora no meio de um bairro residencial. Tem 1 350 funcionários e fatura 300 milhões de reais por ano. Não fosse a torre, que se avista de longe, ao entrar na cidade, e as carretas pesadas que trafegam em suas alamedas internas, a fábrica passaria por um parque arborizado. Seus prédios envidraçados dão vista para o pico do Jaraguá, de onde pula a turma do parapente, e para as margens do rio Itapocu, que ela mesmo cercou de mata ciliar. A água que corre na fábrica volta tão limpa para o rio que, no caminho, jorra no saguão do Centro de Tecnologia em Alimentação, correndo em cascatas artificiais.
Lá dentro, há cabines especiais para degustadores, o que implica “isolamento e concentração”. Dos laboratórios envidraçados, não escapa o menor sinal de aroma porque, ao circular, o ar atravessa filtros biológicos. Os corredores inodoros percorrem, em 6 mil metros quadrados, miniaturas de instalações industriais, com fornos, geladeiras e máquinas para testar produtos, uma sorveteria experimental e uma panificadora completa – com auditório e espelho no teto, para toda a platéia ver as mãos do cozinheiro no balcão. Nada tem cheiro de novo, porque nada tem cheiro, mas tudo parece recém-inaugurado. No chão, o granito cinza não demonstra os seis anos de pisoteio diário que já agüentou. “Fazemos manutenção preventiva”, diz o gaúcho Marco Antonio Schilindwein, assistente técnico da Divisão de Sorvetes.
Na indústria de aromas, são narizes treinados que criam as essências. E, para fazer cheiros, as empresas têm que fabricar os flavoristas, palavra que o dicionário Houaiss manda evitar, o Ministério do Trabalho reconhece como profissão, a Classificação Brasileira de Ocupações identifica pelo número 3250.10 e os patrões mimam com remunerações mensais que, no topo da carreira, chegam a 40 mil reais. Nos Estados Unidos, onde há pelo menos 500 flavoristas, eles ganham até 250 mil dólares por ano. O Brasil emprega provavelmente 40 flavoristas, na categoria “sênior”. Seu treinamento levou décadas. Antes de se meterem a inventar fórmulas, passaram anos aplicando as receitas que os mais experientes criaram.
Na Duas Rodas, Iselde Kelbert é flavorista sênior. Mas prefere que a chamem de “aromista”, como recomenda o dicionário. Flavorista vem de flavorist em inglês, e pegou no Brasil antes que surgisse na língua portuguesa o similar nacional. Na França, o Instituto Superior Internacional do Perfume, da Cosmética e da Aromática Alimentar dá cursos de aromatização, complementados por um ano de estágio em empresas do ramo. Na Inglaterra, a British Society of Flavorists, da Universidade de Reading, oferece programas de três semanas para flavoristas juniores. Nos Estados Unidos, a Society of Flavor Chemists, uma entidade sem fins lucrativos, abre vagas em seis cursos por ano. Aqui, só se entra pela prática.
“Eu, por exemplo, comecei na Duas Rodas há 29 anos”, diz Iselde Kelbert. Ela estreou aos 15 anos e trabalhou uma década como auxiliar de um aromista que já se aposentou. Divertiu-se, conforme conta, “porque gostava de provar as coisas desde pequena” e, assim, descobriu “por acaso que dava para isso”. Formou-se em química, fez pós-graduação em ciência e tecnologia dos alimentos, na Universidade de Campinas, e estudou desenvolvimento de aromas em Saint Louis, nos Estados Unidos. Aprendeu desde microbiologia a deterioração das moléculas. Mas o que sabe mesmo, diz, “vem do dia-a-dia na fábrica”.
Iselde chefia seis flavoristas. Uma das auxiliares, que começou há quinze anos, ainda é “júnior”. Outra, com dez anos de treinamento, continua “trainee“. Em compensação, o emprego é estável. Um de seus assistentes tem 25 anos de fábrica. A decana Dorotéia Pasold de Souza, depois de cinquenta anos na Duas Rodas, se aposentou e virou consultora da empresa. Como o diretor comercial Hilton Leonetti, ela também se reencontra com freqüência nos supermercados. “Tem muito aroma por aí que eu inventei”, diz Iselde. “E é claro que eu os reconheço. Às vezes, vou escolher um biscoito no supermercado e digo para os meus filhos que ali tem Duas Rodas.” Ela compra vários biscoitos, balas e iogurtes, reúne os funcionários e os ensina a achar o que fizeram. “Eles gostam”, diz. “Afinal, produzem tanto e nunca vêem sua marca.”
O nariz é um instrumento tão valioso no mercado dos odores que, em São Paulo, a engenheira química Mércia Menette Bettini abre a conversa esclarecendo que esse não é o seu caso. A Flavor Tec, a fábrica de aromas cítricos que ela fundou, deriva de sua tese de doutorado, sobre “métodos sensoriais, cromatográficos e espectroscópicos”. Mércia passou pela Firmenich, pela Frutesp e pela Citrovita antes de montar seu próprio negócio. Voltava do doutorado pronta para botar a mão na massa quando descobriu que a Citrovita não tinha o que fazer com seu diploma. Foi à luta. E o ex-patrão tornou-se seu primeiro cliente.
A Flavor Tec nasceu em 1996, num terreno cedido pela prefeitura de Pindorama, a 60 quilômetros de São José do Rio Preto. Mércia equipou-a, levantando um empréstimo no Ministério de Ciência e Tecnologia. O prédio, um galpão de 200 metros quadrados, consumiu a poupança dos Bettini. A empresa abriu com um funcionário e hoje tem oito. Nas safras, processa 200 litros de óleos essenciais por dia.
A companhia faz em Pindorama, com máquinas do século XXI, o que os Hufenüssler faziam em Jaraguá do Sul há mais de oitenta anos: extrai da casca da laranja as essências que servirão para ressuscitar os sucos desidratados, quando eles chegarem a seus portos de destino sem água e sem gosto, desnaturados pela pasteurização a 90 graus centígrados. A Flavor Tec decompõe a laranja aqui, por destilação fracionada, para que ela chegue recomposta à goela do consumidor lá fora, depois de atravessar oceanos em tanques onde seu volume foi reduzido ao mínimo denominador comum. Ainda não se exporta água.
Os terpenos que, legalmente, devolvem aos concentrados de laranja, tangerina e limão o sabor “100% natural” são cerca de 4% da fruta, com casca e bagaço. No estágio mais alto de pureza, mal passam de 1%. Uma caixa de laranjas pesa mais de 40 quilos. E 120 caixas de laranja dão 1 quilo de óleo essencial. No instante em que os aldeídos e ésteres da Flavor Tec se diluem em qualquer lugar do mundo num suco desidratado para exportação, ele volta instantaneamente a ser laranja, e o trabalho de Mércia se dissipa em letras miúdas, num canto da embalagem. “Este ramo exige modéstia, porque o que você faz não aparece”, ela admite.
A mesma advertência muda de tom automaticamente na sala de Dionisio Férenc, diretor na América Latina da IFF. Ele é argentino, filho de polonês e equatoriana. Está na IFF há quinze anos e há oito no Brasil. Tem uma filha paulistana e um português fluente, enxertado de palavras em várias línguas. “Somos B to B“, ele avisa. Business to business para os íntimos. Sua firma vive de prover negócios alheios. O que não é pouca coisa. Férenc esclarece que “todo mundo respira 15 mil vezes por dia, e cada inspiração é uma oportunidade de negócio”. E, num planeta “saturado de estímulos visuais e sonoros”, ele acredita que chegou a hora do cheiro.
A IFF, na sede de Alphaville, o subúrbio endinheirado de São Paulo, não é lugar para exibições de falsa modéstia. Seus melhores perfumistas ganham 1 milhão de dólares por ano, salário de estrelas do esporte ou da música popular. É o caso da francesa Marion Costero, que está no Brasil desde a virada do ano. Antes de trabalhar na IFF, esteve no Marrocos, caçando moléculas exóticas. Fala português com todo o sotaque a que tem direito uma perfumista internacional. E, como se não bastasse, chega dizendo que: “Você também poderia fazer um perfume tão bom quanto nós. Só que levaria seis anos para conseguir o que fazemos em meia hora.” Ela insiste que, no fundo, seu ofício parou no tempo, como toda guilda que depende de tradições e talentos.
Trocado em miúdos, aquele “B to B” de Férenc significa que a IFF “não cria nada para si mesma”. Mas dá asas à imaginação alheia, como no dia em que o industrial Miguel Krigner voltou das férias na Argentina querendo fazer um perfume chamado Malbec. “Nós nos reunimos com um enólogo, fomos a Mendoza com um sommelier e fizemos degustações”, diz Férenc. “Estudamos a cromatografia de um barril de Malbec. Enfim, criamos o perfume com álcool de uva.”
O brasileiro, segundo Férenc, “adora novidade”. E, atrás de O Boticário, veio sua concorrente, a Natura, com a linha Amor América. Ele começou tudo de novo: “Fomos à Patagônia, tiramos centenas de fotografias, colhemos in loco o cheiro da paramela, um arbusto nativo.” Há onze anos, a IFF usa nessas operações um pequeno instrumento eletrônico, para capturar as moléculas que orbitam ao redor de tudo o que exala odores. Nos casos mais delicados, uma campânula portátil seqüestra a aura olfativa dos vegetais, sem macerá-los. Foi assim que a empresa coletou em 1998 os aromas do pico da Neblina, na fronteira do Brasil com a Venezuela.
Em seus terrenos de Nova Jersey, nos Estados Unidos, a empresa cultiva 750 espécies de orquídeas. Trabalha com cerca de 4 mil matérias-primas. Usa regularmente pelo menos 1 500 essências naturais ou sintéticas. Há sete anos, comprou a Monique Rémy, uma perfumaria artesanal de Grasse, para preservar seus campos de flores e as tradições da manufatura.
Mas não brinca em serviço. As normas da IFF exigem que toda fragrância nova inclua uma molécula inédita, patenteada e exclusiva. “Esse é um de nossos pilares, o knowledge“, diz Férenc. O seguinte é a marca – ou melhor, brand, que se traduz na obrigação do cheiro inconfundível de cada marca. A Samsung coreana pediu “seu” cheiro à IFF, algo que tornasse suas lojas reconhecíveis de olhos fechados, em qualquer lugar do mundo, e induzisse as pessoas a ficar mais tempo em seu interior, mexendo nos produtos. Em outras palavras, um cheiro de “tecnologia, inovação, design confortável e aconchego”. Saiu um aromatizador de ambientes com traços de computadores ligados, telas acesas e templos orientais. A Citröen usa cheiro de couro curtido em seus carros, porque ele dá aos proprietários mais confiança em sua mecânica.
O terceiro pilar é o do consumidor – aliás, consumer. “Investimos milhões de dólares para saber não o que ele pensa, mas o que sente, não o que ele quer, mas o que ele ama”, diz o diretor. Por exemplo, o cheiro de alegria: “Nós o criamos há mais de vinte anos, estudando a influência do aroma nos estados de ânimo.” Em 1996 a Estée Lauder veio atrás dele. Batizou-o como Happy, de sua subsidiária Clinique. É um dos perfumes mais vendidos da década.
Férenc se levanta e pega uma caixa vermelha com quinze frascos, que a Thierry Mugler lançou no começo da década, quando o romance O Perfume, de Patrick Susskind, chegou ao cinema. Em cada vidro, um pedaço da história virou cheiros, interpretados por Christophe Laudamiel, perfumista da IFF. À medida que Férenc levanta as tampas, vão saindo cenas das ruas de Paris, desenhadas no ar pelo cheiro de suor, bicho morto e verdura, campos de lavanda, bebês, orgias e até de virgens, extraído de virilhas adolescentes, pelas mais modernas técnicas da enfleurage, com a devida autorização dos pais. “A gente pode viajar muito com o cheiro”, despede-se Férenc. A essa altura, é difícil duvidar do que ele está dizendo.