O ministro Fux (no centro), de máscara, gravata e camisa branca, cercado por seguranças e policiais: “O dia mais tenso da minha vida”
A foto
Uma imagem para ser lembrada ao longo de 2022
Monica Gugliano | Edição 185, Fevereiro 2022
Na fotografia que ilustra esta página aparecem mais de cinquenta pessoas, reunidas em uma das salas do Supremo Tribunal Federal, em Brasília. Nem todas usam máscara, algumas vestem paletó e gravata, outras estão com distintivos pendurados ao peito. Um ponto que chama a atenção é a presença de alguns homens em uniforme de camuflagem e metralhadora em punho, apontada para o chão. Eles estão posicionados à esquerda da foto. São integrantes do Comando de Operações Táticas (COT), uma unidade de elite da Polícia Federal. O ministro Luiz Fux, presidente do STF, está bem no centro da imagem, com máscara, gravata e camisa branca.
A fotografia foi tirada a pedido de Fux, no auge das manifestações golpistas do Sete de Setembro do ano passado, quando equipes de segurança e policiais foram mobilizados para proteger o STF e os ministros. É o registro visual do momento em que a sede da mais alta corte da Justiça brasileira correu o risco de ser invadida, saqueada, incendiada. Naqueles dias, tudo isso parecia possível. A mobilização de um forte esquema de segurança, incluindo até o grupo de elite da Polícia Federal, revelou-se útil. Apenas em um único ponto dos gradis que cercavam o prédio no dia 7, houve sete tentativas de invasão. “Foi o dia mais tenso da minha vida”, diz Fux, quando relembra o episódio em suas conversas privadas.
Na vigência do regime democrático, nunca o STF viveu uma ameaça tão vil. Na noite de 6 de setembro, bolsonaristas em fúria romperam a barreira policial e ocuparam a Esplanada dos Ministérios. Os caminhoneiros buzinavam, aceleravam sem sair do lugar, a multidão gritava, um policial chegou a sacar a arma para contê-los. Em vão. Em um vídeo divulgado nas redes, um dos bolsonaristas comemorou: “Acabamos de invadir! A polícia não deu conta de segurar o povo. E nós vamos invadir o STF amanhã!” Havia grupos que corriam de um lado para o outro, agitando bandeiras, cartazes ou exemplares da Bíblia. Outro rezava o Pai-Nosso, pedindo o fim do comunismo, a morte ou a prisão de ministros do STF.
Dentro do tribunal, a rotina parecia irreal. “Você faz ideia do que era aquilo?”, diz um assessor ouvido pela piauí que pediu para não ser identificado porque ainda hoje tem receio de ser hostilizado pelos bolsonaristas. “De repente, você olhava para o lado e tinha um cara com um fuzil na mão.” O objetivo da segurança, dentro e fora do tribunal, era proteger a vida dos ministros e funcionários, mas também manter a integridade do prédio. “Essas pessoas colocavam a destruição do Supremo, quebradeira, incêndio, como se fosse a Queda da Bastilha”, diz um ministro que participou das sucessivas reuniões ocorridas na véspera e no dia das manifestações. “Para eles, o Supremo é o símbolo da resistência democrática. Já pensou o Supremo queimando?”
O sonho do presidente Jair Bolsonaro, e isso já deixou de ser um segredo há muito tempo, é ver o Supremo queimando. Naquele Sete de Setembro, depois de discursar na Esplanada dos Ministérios, Bolsonaro embarcou para São Paulo levando uma comitiva de 38 pessoas, entre as quais onze ministros. Como seu discurso em Brasília fora acima do tom, o ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, começou a se preocupar com o que aconteceria em São Paulo, onde Bolsonaro falaria à massa reunida na Avenida Paulista. Pediu ao colega das Comunicações, Fábio Faria, que, durante o voo, tentasse acalmar e dissuadir o chefe de insultar os ministros do STF.
Não adiantou nada. “Bolsonaro é muito reativo às redes sociais e, naqueles dias, elas estavam enfurecidas”, diz um ministro com gabinete no Palácio do Planalto. No palanque na Avenida Paulista, extasiado com a multidão e seus gritos de “mito”, Bolsonaro disse que não cumpriria mais decisões do ministro Alexandre de Moraes e conclamou-o a deixar o cargo: “Sai, Alexandre de Moraes! Deixa de ser canalha!” Ovacionado, Bolsonaro saiu de lá animadíssimo, arrebatado pela presença da multidão e convicto de que, diante de apoio popular tão expressivo, tinha condições de fazer o que bem entendesse. Queimar o Supremo, por exemplo.
Na volta para Brasília, ainda dentro do avião presidencial, Bolsonaro recebeu os primeiros sinais de que seu discurso passara do ponto. Não deu a mínima. Ao desembarcar na Base Aérea de Brasília, voltou a ter notícia de reações negativas. Desta vez, reagiu aos gritos. Passou boa parte da madrugada no celular, recebendo recados e acompanhando as redes sociais. Aos poucos, foi compreendendo que o caldo havia entornado. Mesmo os políticos da base governista, parte do empresariado e até de setores militares não estavam dispostos a apoiar “uma loucura”, segundo a expressão usada por um general do Alto Comando do Exército.
No dia seguinte, irritadíssimo com as reações adversas, fez uma reunião ministerial, que a piauí reconstituiu ouvindo seis ministros, entre civis e militares, que ali estiveram. Bolsonaro insistia que o apoio maciço que recebera no dia anterior tinha que ser suficiente para “partir para cima do STF”. Levantando a voz, enfurecido, disse: “E o que vamos entregar a esse povo que foi para as ruas ontem nos apoiar?” O ministro Onyx Lorenzoni e a ministra Damares Alves, afinados com Bolsonaro, concordavam que “algo” deveria ser feito. O ministro Paulo Guedes ponderou que uma “crise institucional” devastaria a economia. “Tudo isso para quê? O que vamos ganhar?”, indagou.
Como se sabe, a euforia toda acabou numa nota em que Bolsonaro pede desculpas ao Supremo e atribui suas palavras golpistas ao “calor do momento”. “Bolsonaro não organizou um protesto. Organizou uma maluquice completa”, diz um ministro do STF. “E veja só o que o governo fez! No fim, foi hilário. Organizou uma greve de caminhoneiros que quase derruba o próprio governo. É incrível a irracionalidade dessa gente.” Fracassada, a agitação pró-golpe incensada pelo presidente sugou parte da energia militante de seus radicais.
“Frente à ameaça de baderna e ocupação do Supremo, agiram bem os ministros que tomaram as providências a tempo”, elogia o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. FHC lembra da atitude do ministro Álvaro Moutinho Ribeiro da Costa, que presidiu o STF entre 1964 e 1967, em plena ditadura militar, e ofereceu “célebre resistência às tentativas” do governo de violar a Constituição em vigor. “Com a sucessão de atos institucionais, ele acabou perdendo a parada, mas deixou o exemplo.”
Ayres Britto, ex-ministro do STF, explica didaticamente que o presidente cometeu crime de responsabilidade. Violou o artigo 2º da Constituição (que afirma que os poderes da União são “independentes e harmônicos entre si”), violou o artigo 78 (que reafirma o princípio da independência e da harmonia) e violou o artigo 85 (no qual se diz que atentar contra o “livre exercício” dos poderes constitui “crime de responsabilidade”). “Bolsonaro infringiu todos esses artigos da nossa Constituição que, ao tomar posse, jurou respeitar. Ele precisa conhecer as quatro linhas de que tanto fala”, diz Britto. “Bolsonaro instrumentalizou o Sete de Setembro. Alguma coisa precisa ser feita para acabar com essa aberração.”
Nos dias, semanas e meses seguintes às manifestações, Bolsonaro não deu um pio contra o Supremo. Próceres do Centrão começaram a bater no peito para dizer que haviam domado os ímpetos autoritários do presidente. Até que, no dia 12 de janeiro passado, Bolsonaro voltou – pela enésima vez – a lembrar quem é. Durante uma entrevista, atacou os ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, que relatam ao todo cinco inquéritos contra o presidente. “Quem é que esses dois pensam que são? Quem eles pensam que são?” Estava irritado com decisões recentes de ambos. Disse que os ministros estavam “cassando liberdades democráticas nossas”. Acusou Moraes de agir “fora das quatro linhas” e disse que Barroso entendia de “terrorismo”.
A fotografia de Fux cercado por seguranças e policiais num dia de insurreição golpista é uma imagem para ser lembrada ao longo de 2022, esse que será o ano politicamente mais decisivo da história democrática do Brasil. Afinal, haverá uma disputa presidencial em que o candidato à reeleição insiste em dizer que só deixará o poder “por vontade de Deus”.
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