Moraes Filho: “A classe alta interrompe a gravidez de forma clandestina, e nada acontece. À criança pobre, quase sempre negra, querem negar o acesso a um direito que tem oitenta anos” CREDITO: HEUDES REGIS_2021
“A gente acolhe”
A saga de um obstetra e a hipocrisia brasileira sobre o aborto
Angélica Santa Cruz | Edição 174, Março 2021
De tão demorado, o caso já havia se transformado em tema de conversas nos bares do Recife. Uma menina de 9 anos, miudinha em seu 1,33 metro de altura e seus 33 kg, estuprada pelo padrasto e grávida de gêmeos, esperava por um aborto legal havia seis dias em um quarto do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip), um dos maiores complexos hospitalares do Nordeste. O tempo ia passando, a gestação ia avançando, a história ia comovendo a cidade – e nada do procedimento ser feito. A razão da morosidade era um cabo de guerra nos bastidores do hospital. De um lado, uma equipe médica de referência no atendimento a crianças vítimas de violência sexual, pronta para entrar em campo e fazer a interrupção da gravidez. De outro, um conselho consultivo pressionado a desautorizá-la por um de seus integrantes mais influentes, o então arcebispo da Arquidiocese de Olinda e Recife, dom José Cardoso Sobrinho.
O poder da Igreja Católica sobre o caso era cristalino como água de batismo. O Imip começara como uma instituição filantrópica privada e pequena, mas, ao longo dos anos, fora se expandindo e fechara um contrato de comodato para restaurar e depois se transferir para o imenso e centenário prédio de um outro hospital desativado, o Pedro II. Ocorre que o edifício histórico pertence à Santa Casa de Misericórdia do Recife, subordinada à Cúria Metropolitana. O contrato, assinado em 2006, tinha validade de duas décadas, mas o Imip se comprometera a concluir a caríssima restauração do Pedro II em até seis anos – e contava com a influência da arquidiocese para ajudar a levantar fundos para a obra. Empenhado em impedir o aborto da menina, dom José convocara uma reunião entre diretores do Imip, advogados da Cúria e desembargadores do Tribunal de Justiça para encontrar alguma filigrana legal que pudesse impedir a interrupção da gravidez. A pressão, portanto, era direta e imensa: se interrompessem a gestação da criança, os médicos azedariam a relação com o arcebispo e, por tabela, os planos de expansão do Imip.
A coisa estava nesse pé quando, na manhã de 4 de março de 2009, o telefone do obstetra Olímpio Barbosa de Moraes Filho tocou. Do outro lado da linha, falava Paula Viana, enfermeira e coordenadora do Grupo Curumim, ONG que trabalha em defesa dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Acompanhada de outras integrantes do movimento feminista e da Secretaria Especial da Mulher de Pernambuco, ela visitara o Imip para saber o que estava acontecendo e, em conversa com a diretoria médica, acabara de ser informada que o hospital não faria o aborto. A mãe da menina, preocupada com os riscos à vida da filha, queria muito interromper a gravidez. Mas o apartamento cheio de bichinhos de pelúcia onde a garota era mantida em uma espera dolorosa se transformara no centro de uma peregrinação de religiosos pedindo para que ela desistisse do procedimento. A situação era, enfim, desesperadora.
Ao ouvir o relato de Paula Viana, Moraes Filho respondeu: “Pode levar para o Cisam. A gente acolhe essa criança.”
Era uma operação politicamente arriscada. No Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros, o Cisam, mais conhecido pelos recifenses como Maternidade da Encruzilhada, o arcebispo também tinha uma caneta poderosa. O Cisam faz parte do conjunto de três hospitais da Universidade de Pernambuco (UPE). Um deles funciona em um prédio que pertence à Santa Casa de Misericórdia – e justamente naquele momento precisava de um aval da arquidiocese para obter verbas do Ministério da Saúde e construir uma ala de oncologia pediátrica. Se o arcebispo soubesse que o aborto legal seria feito em um dos hospitais da UPE, poderia arrastar a batina por ali também.
Para driblar as pressões, Moraes Filho bancou em sigilo a decisão de assumir o caso. Como era na época preceptor da residência médica do Cisam, ele preveniu a equipe que estaria de plantão no momento da chegada da menina e combinou de monitorar o procedimento por telefone. Enquanto isso, no Imip, o grupo de feministas ligou para promotores de Justiça para se certificar da legalidade do caso e avisou à mãe da garota que, se ela quisesse mesmo interromper a gestação, teria direito de pedir alta e ir para outro centro de referência. A mãe, aliviadíssima, quis. Saíram todas dali, divididas em três carros – a menina agarrada a um enorme urso de pelúcia.
No Cisam, a criança foi recebida pelos plantonistas. Não havia literatura sobre a dosagem exata de misoprostol, medicamento usado para desencadear contrações uterinas e induzir à expulsão fetal, em um caso tão específico: uma gestação gemelar entre 4 e 5 meses de uma garotinha de 9 anos. Mas, por coincidência, Moraes Filho era um dos poucos médicos do Brasil com segurança total para coordenar o procedimento. Em 2002, ele defendera uma tese de doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) justamente sobre o uso do misoprostol na indução de partos. Orientados pelo obstetra, os residentes dobraram a dose que em geral usariam. Deu certo. Rapidamente, a garotinha expulsou o primeiro feto.
A notícia de que ela estava no Cisam, no entanto, se alastrou com a velocidade da luz. Moraes Filho começou a receber ligações nervosas de chefes, professores e autoridades do governo. Ligeiro, dom José tentou marcar uma reunião de urgência com a reitoria da UPE. “Mas já era tarde. Na manhã seguinte à chegada da menina, a gente já tinha finalizado a expulsão dos fetos. Foi um alívio geral”, lembra o médico.
Eletrizante e dramático em seus muitos detalhes, o episódio ficou conhecido como “o caso de Alagoinha”, em referência à pequena cidade no semiárido pernambucano, a 230 km do Recife, onde a menina e sua família moravam. E teve repercussão internacional por causa da ira santa que desencadeou na Igreja Católica.
Nos bastidores, dom José Cardoso Sobrinho de início se recusou a assinar o aval para a criação da nova ala de oncologia pediátrica. Na tentativa de acalmá-lo, um dos advogados da reitoria da UPE pediu que Moraes Filho enviasse uma carta se explicando. O médico escreveu um relatório seco, de uma página, enumerando todos os casos legais de interrupção de gravidez realizados por ano no Cisam e destrinchou normas técnicas e protocolos usados pela equipe. Como nem de longe o memorando tinha o tom de um pedido de desculpas, o advogado achou melhor rasgá-lo – e acabou convencendo dom José a assinar o aval argumentando que, com a nova ala, a igreja salvaria “muitos outros anjinhos”.
Em público, dom José resolveu tocar as sete trombetas do apocalipse. De acordo com o Código de Direito Canônico, conjunto de normas da Igreja Católica, um católico batizado que faz ou participa de um aborto é incluído na excomunhão latae sententiae, uma punição automática, que prescinde da decisão de um representante da instituição. Por esse princípio, a família da menina e a equipe do Cisam já ficariam sumariamente impedidos de receber sacramentos até que se declarassem arrependidos. Dom José anunciou a excomunhão em cadeia nacional, lançando petardos de longo alcance: “Esse padrasto cometeu um crime enorme, mas não está incluído na excomunhão. Agora, mais grave do que isso, sabe o que é? O aborto, eliminar uma vida inocente.”
A notícia da excomunhão correu o planeta. No Vaticano, o chefe do Pontifício Conselho para a Família, Gianfranco Grieco, deu entrevistas apoiando a Arquidiocese de Olinda e Recife. Mas autoridades eclesiásticas de outros países se opuseram publicamente à excomunhão. Na França, três bispos divulgaram notas de repúdio. Um deles, monsenhor Yves Patenôtre, emitiu um comunicado indignado: “É inaceitável, pedimos que ela seja revogada rapidamente.” O caso foi noticiado no New York Times, na BBC, na Fox News. No Brasil, a equipe médica recebeu apoios institucionais. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, então em seu segundo mandato, parabenizou Moraes Filho pela coragem ao encontrá-lo em uma cerimônia em Brasília.
A menina mudou de cidade com a mãe e a irmã cinco anos mais velha, que também fora estuprada pelo padrasto. Hoje, aos 20 anos, é uma jovem adulta tocando a vida – estuda, trabalha e namora. Moraes Filho teve duas reações. Em primeiro lugar, achou graça na excomunhão, a segunda em um ano – a anterior se dera porque ele assinou uma nota de apoio à iniciativa da Prefeitura do Recife de oferecer a pílula do dia seguinte em postos de saúde durante o Carnaval. Em ambas, o médico foi expulso de um clube ao qual não pertencia. Ele é agnóstico e só passa perto da igreja para levar sua mãe à missa, o que faz todo santo domingo, às oito da manhã. Em segundo lugar, assumiu a partir dali uma militância pública pelo acesso das mulheres a dois direitos que, apesar de permitidos por lei há oitenta anos, lhes são negados com frequência calamitosa. O artigo 128 do Código Penal, de 1940, autoriza o aborto quando a gravidez é resultado de estupro ou coloca em risco a vida da mulher – e, desde 2012, o Supremo Tribunal Federal permite o procedimento em casos de fetos com anencefalia, uma anomalia que inviabiliza a vida fora do útero.
Onze anos depois do caso de Alagoinha, Moraes Filho, hoje gestor executivo do Cisam, foi tragado por outro tsunami com detalhes incrivelmente parecidos, mas com uma diferença crucial. “Agora as forças retrógradas estão dentro do próprio Estado que deveria garantir o acesso das mulheres aos seus direitos”, resume.
No dia 15 de agosto do ano passado, o obstetra estava no apartamento onde mora com a família, no bairro de Casa Forte, quando recebeu, de novo, um telefonema de Paula Viana.
– Tu visse que vai chover? – perguntou ela. – Levasse guarda-chuva? – insistiu.
Moraes Filho apurou os ouvidos. Como a defesa pública do direito ao aborto previsto em lei pode ser hoje uma missão barra-pesada, Paula Viana está convencida de que seu telefone já foi clonado. Sempre que precisa tratar de algo importante com o médico, ela inicia a conversa com frases desconexas. No meio do palavrório sobre chuva e guarda-chuva, a feminista avisou que ele receberia um telefonema do médico Nésio Fernandes de Medeiros Junior, secretário de Saúde do governo do Espírito Santo.
Protestante, frequentador da Igreja Batista, o secretário estava chocado com a maneira como os conselhos tutelares do Espírito Santo, em sua maioria controlados por grupos religiosos, vinham agindo para inviabilizar a interrupção da gravidez de uma menina de 10 anos, estuprada pelo tio. A situação chegara a tal ponto que o juiz Antônio Moreira Fernandes, da Vara da Infância e Juventude da Comarca de São Mateus, cidade capixaba onde a garota morava, precisou determinar o que a lei já autorizava: a realização imediata do aborto. Em uma decisão de cinco páginas, o juiz reafirmava o caráter laico do Estado brasileiro e descrevia o desespero da menina, que perdia o controle e chorava quando se falava na gravidez. Mas o tempo passava, ela estava com mais de 22 semanas de gestação, e até mesmo a equipe do Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes (Hucam), ligado à Universidade Federal do Espírito Santo, anunciou que não faria o procedimento.
No telefonema com o secretário, Moraes Filho ouviu esses detalhes e, mais uma vez, respondeu: “Pode enviar para o Cisam, a gente acolhe a menina.”
Em seguida, pediu a Paula Viana que recebesse a garotinha capixaba no aeroporto do Recife e a levasse com discrição até a maternidade. Checou a escala de plantonistas no Cisam, constatou que um dos membros da equipe costuma alegar objeção de consciência para não fazer abortamentos legais e substituiu-o por outro médico, que estava de folga e concordou em ajudar no atendimento à criança.
Junto com a avó materna e uma assistente social do governo do Espírito Santo, a menina foi enviada para o Recife em um voo comercial com chegada prevista para as 15h15 do dia 16 de agosto, um domingo. Moraes Filho estava tranquilo, o procedimento estaria nas mãos de uma equipe segura e experiente. Almoçou e tomou cerveja com a economista Márcia Guedes Alcoforado de Moraes, com quem é casado há trinta anos e tem três filhos. Às 14h25, começou a receber mensagens pelo WhatsApp de amigos médicos, que encaminhavam áudios gravados por integrantes de movimentos religiosos convocando uma manifestação no Cisam para “impedir o assassinato de uma criança que está no ventre de outra”. A situação estava fora de controle, com um detalhe particularmente cruel: a extremista Sara Winter, a bolsonarista barulhenta cujo nome real é Sara Giromini, divulgara o nome da menina nas redes sociais.
Pouco depois, Paula Viana enviou mensagem para Moraes Filho avisando que já estava com a garotinha e seu pequeno grupo, mas notara uma movimentação estranha no aeroporto e temia ser seguida no caminho até a maternidade. Moraes Filho resolveu ir até o Cisam. Por causa da cerveja que bebericou no almoço, pediu carona para a mulher. “Quando a gente foi se aproximando da entrada, meu carro já foi cercado por alguns rapazes, todos bem-vestidos, com calça social e camisa. O clima estava bem pesado, tenso”, lembra Márcia de Moraes. Os jovens eram integrantes de grupos católicos como Porta Fidei, Deus Conosco, Bento XVI-Maanaim e Diante do Altar, na maioria formados em colégios religiosos de classe média do Recife. O médico desceu do carro, disposto a esclarecer que o Cisam daria um acolhimento amparado por lei à menina. Mas foi ficando claro que a pequena multidão, formada também por evangélicos, incluindo três deputados estaduais neopentecostais, não queria diálogo. Alguns começaram a forçar a porta de vidro da entrada principal, ameaçando invadir a maternidade.
A essa altura, Paula Viana já havia pedido para a criança se acomodar na parte de trás do táxi, um Fiat Doblò, e avisou que estavam quase chegando. Moraes Filho a instruiu a entrar por um estacionamento lateral da maternidade e adicionou uma ocupação inédita ao seu currículo: virou boi de piranha. Usando uma máscara de proteção de tecido verde, em mangas de camisa e com os braços cruzados, o médico deixou-se cercar pelos manifestantes, de modo a distraí-los. Alguns deles, acreditando que o obstetra faria pessoalmente o procedimento, impediam sua passagem e gritavam: “Assassino! Vai matar uma inocente!” Outros se davam as mãos, ajoelhavam e lançavam gritos e orações na atmosfera.
Na entrada lateral, a coordenadora de enfermagem do Cisam, Benita Spinelli, aguardava discretamente a chegada do táxi com a menina. Em meio à multidão, uma estudante de medicina desconfiou da manobra, aproximou-se e tentou convencer a enfermeira a deixá-la conversar com a garota. “Enquanto eu esperava o carro, ela me dizia: ‘Meu pai foi adotado e é muito feliz. Se você deixar eu falar com essa menina por alguns minutos, ela não vai matar a outra criança e vai colocar para adoção. As duas vão ser muito felizes!’”, lembra Spinelli. “Eu respondi: Olhe, não vou permitir que você fale com ela, porque essa menina já vem sofrida, já tomou a decisão dela lá. Está vindo para que a gente cumpra uma ordem judicial. Se ela tivesse chegado para a gente no início, nós íamos fazer o que fazemos com todas, dizer quais são os direitos dela – aí ela escolheria e a gente apoiaria. Essa é a função de uma unidade de apoio à mulher. Não é nosso papel fazer considerações, como ‘Ah, é porque você está assustada, mas no fim vai dar certo!’” E continuou sua palestra: “E o pensamento dessas pessoas que estão aí fazendo esse barulho, movidas pela religião, é o de que a gente sempre tem que encontrar uma alternativa para resolver a vida daquela pessoa para ela ter o filho, mesmo que seja fruto de uma violência brutal e a gestante seja uma criança. Aqui, vamos respeitar a vontade dessa menina.” A estudante de medicina desistiu e ficou de braços cruzados, até o Fiat Doblò chegar e embicar na entrada alternativa sem ser percebido pelos outros manifestantes, ocupados em lançar insultos contra Moraes Filho.
A menina foi rapidamente levada para uma enfermaria no primeiro andar da maternidade. Aos poucos, foi se acalmando, mais interessada em um celular do que em um bichinho de pelúcia que tinha em mãos. Durante a preparação para o procedimento, ela contou aos plantonistas que adora jogar futebol, torce por times do Rio de Janeiro porque os capixabas são muito fracos e teve uma experiência legal como goleira de handebol da escola. Pouco depois, levou uma anestesia local na barriga, enquanto um dos médicos, guiado por um ultrassom, injetava no feto cloreto de potássio com uma agulha comprida e fina. O processo demorou menos de dois minutos. Avisado pelo WhatsApp, Moraes Filho conseguiu entrar na maternidade, escoltado pela Polícia Militar. Na manhã do dia seguinte, a menina foi levada à sala de parto para ser submetida a uma aspiração intrauterina.
Todos os integrantes da equipe que tiveram contato com a criança se referem à expressão sorridente com que ela deixou o bloco cirúrgico – mas também dizem que nunca trabalharam em um procedimento tão duro, ouvindo atrocidades tão de perto. O episódio reverberou pelo país, por causa das cenas agressivas diante da maternidade e das notícias de que representantes da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, tentaram, ainda no Espírito Santo, impedir a interrupção da gravidez. Depois da repercussão, a ministra afirmou que enviou representantes apenas para acompanhar o caso.
Nas semanas seguintes, Moraes Filho recebeu as críticas regulamentares de líderes religiosos (“Recife está criando fama de capital do aborto. Precisamos combater o bom combate para mudar essa triste fama”, declarou o arcebispo de Olinda e Recife, dom Antônio Fernando Saburido, em um tom alguns decibéis abaixo do que usava o antecessor dom José, que deixou o comando da arquidiocese em 2009). E levou as flechadas esperadas de integrantes do governo federal (“Eu acredito que o que estava no ventre daquela menina era uma criança com quase seis meses de idade e que poderia ter sobrevivido. Discordo do procedimento do doutor Olímpio, mas discordo de tudo o que aconteceu em torno dessa criança”, disse Damares Alves, ao programa Conversa com Bial, da TV Globo).
Mas Moraes Filho também se viu cercado de apoio. Foi cumprimentado por frentistas em um posto de gasolina. Foi parabenizado por funcionárias da sede do seu time de coração, o Sport Club do Recife. Chegou a ser abordado por uma família que parou o carro na rua para agradecer por sua atuação. “Apesar desse pequeno grupo retrógrado que está no governo e faz um estrago gigantesco, a sociedade civil entende o que aconteceu. Quem, com um pouco de humanidade, não ficou tocado pelo sofrimento daquela menina?”, pergunta.
No estilo palavroso e franco que passou a adotar publicamente a partir do caso de Alagoinha em 2009, Moraes Filho define a saga da menina capixaba como uma pintura acabada das disfunções de uma nação: “O Brasil é de uma hipocrisia sem limites. A classe alta procura a interrupção da gravidez de forma clandestina com maior frequência do que a classe desfavorecida, e não acontece nada. No caso de uma criança pobre, quase sempre negra, que chega destruída, com risco de vida e se sentindo culpada porque sofreu abuso dentro de casa, querem negar o acesso a um direito que tem oitenta anos. Para ela, aparece o discurso religioso, aparece o machismo, aparece o racismo, aparece tudo.”
Olímpio Barbosa de Moraes Filho cresceu em uma família gregária da classe média recifense. O pai, funcionário público, é do tipo que junta gerações de parentes à sua volta. A mãe, uma dona de casa alagoana, segue um catolicismo fervoroso, mas é pouco dogmática e muito amorosa – certa vez, arrancou risadas da família ao se deixar fotografar em casa, já octogenária, com uma faixa da Marcha das Vadias, durante uma concentração das netas antes de partir para a manifestação feminista. Mais velho de quatro irmãos, Moraes Filho era unha e carne com a avó paterna, que na juventude foi escanteada pela família rica da Zona da Mata pernambucana ao se apaixonar pelo homem errado, engravidar e depois ser abandonada.
Na infância e adolescência, ele vivia entre o apartamento da família, no bairro das Graças, e uma casa para onde todos rumavam nos fins de semana, na Praia de Pau Amarelo, a 20 km do Recife – um lugar pé na areia, frequentado pela vizinhança que entrava e saía sem pedir licença. Conviveu com uma rotina doméstica serena, estudou em colégios particulares de freiras e de padres maristas. Passou em quinto lugar no vestibular para medicina da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e escolheu ginecologia e obstetrícia porque gostava de clinicar. Formado, abriu um consultório particular. Defensor dos benefícios do parto normal, ficou decepcionado quando percebeu que não conseguiria pagar as contas sem concordar com a indústria das cesarianas. Fechou o consultório e voltou-se para a vida acadêmica.
Quando começou sua lida nos corredores dos hospitais, topou com os maus-tratos reservados às mulheres que chegavam por complicações em abortos clandestinos ou espontâneos. Vistas pelo sistema de saúde como temíveis pecadoras que mereciam o sofrimento pelo qual estavam passando, elas só recebiam tratamento no final do plantão de 24 horas dos médicos e eram submetidas a curetagens com doses de remédios abaixo do controle da dor. “Aquilo me incomodava, mas eu não pensava no assunto. Não era um tema para mim”, lembra.
Moraes Filho não prestava atenção ao debate sobre o aborto. Até que, em 1994 passou em um concurso para ser professor na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Pernambuco e foi escolhido para um programa acadêmico do Cisam em parceria com a Unicamp. Foi indicado para fazer mestrado em pesquisa sobre métodos usados pelas mulheres no abortamento provocado. “Fiquei muito chateado, detestei a ideia. Era um tema que eu jamais escolheria”, diz. No primeiro encontro para discutir o projeto de pesquisa com a coorientadora do programa, a socióloga argentina Ellen Hardy, no café de um hotel no Recife, tomou outro susto. “Ela me disse que aborto clandestino não deveria acontecer. Se fosse totalmente legalizado, seria seguro. Foi um choque, como se alguém estivesse me falando: ‘Eu sou traficante, vendo cocaína na universidade e defendo que é legítimo comercializar uma droga bem nociva para a sociedade.’ Essa era a minha cabeça, fruto da educação que me foi dada como médico”, conta. Por causa do programa com a Unicamp, Moraes Filho foi parar no grupo de um obstetra renomado, fez também seu doutorado por ali e acabou sendo um protagonista singular da história recente do aborto no país.
O Brasil já esteve na vanguarda na América Latina na criação de serviços de acolhimento às mulheres em busca de aborto legal. É uma história que começou a ganhar volume há quase cinco décadas, quando chegou por aqui o obstetra chileno Aníbal Faúndes. Em seu país natal, Faúndes foi pioneiro na implantação de um programa de saúde da mulher, primeiro no governo de direita de Jorge Alessandri, depois no de centro de Eduardo Frei Montalva e, em seguida, no de esquerda de Salvador Allende. Quando Allende foi derrubado, em 1973, Faúndes teve que sair do país para não ser preso. Foi chamado para trabalhar na sede da Organização Mundial da Saúde (OMS) em Genebra, mas era da turma que se opunha à fuga dos cérebros latino-americanos para os países ricos. Acabou seguindo para a República Dominicana até que, em 1976, veio para o Brasil a convite de José Aristodemo Pinotti, seu ex-aluno no Chile e então diretor do Departamento de Tocoginecologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. No ano seguinte, Faúndes juntou ao seu redor alguns dos maiores nomes da área e criou o Centro de Pesquisa em Saúde Reprodutiva de Campinas (Cemicamp).
A partir de 1996, Faúndes começou a organizar um encontro anual com importância esmagadora, o Fórum Interprofissional sobre Violência Sexual e Aborto Previsto na Lei. Já fazia 56 anos que o Código Penal autorizava o aborto em algumas situações, mas pouco se falava sobre o assunto. Enquanto isso, multidões de mulheres sofriam e morriam por falta de acesso a seus direitos. Nos fóruns, pela primeira vez se reuniram professores das faculdades de medicina mais importantes da época, psicólogos, sociólogos, assistentes sociais, movimentos feministas, promotores, juízes, advogados e defensores públicos – todos juntos para colher informações, dividir experiências e debater aspectos do aborto legal no Brasil. Uma das primeiras consequências práticas dos fóruns foi acabar com a solidão dos médicos que, aqui e ali, começavam a pensar sobre o tema. Nessa época, apenas quatro hospitais públicos do país cumpriam a lei e ofereciam aborto legal para mulheres estupradas que engravidavam, mas atuavam como pontas soltas, sem muita comunicação.
A história da criação do primeiro serviço oficial do país mostra o tamanho desse deserto de informações. Em abril de 1989, a então prefeita de São Paulo, Luiza Erundina, assinou a portaria nº 692, que obrigava a rede hospitalar municipal a fazer o abortamento nos casos previstos em lei. Foi um angu generalizado. Os médicos achavam uma loucura, alegavam que poderiam ser presos. Havia dúvidas a respeito de tudo. Era preciso ter autorização judicial? A paciente tinha que passar pelo Instituto Médico Legal? Até que Jorge Andalaft Neto, chefe da Obstetrícia do Hospital Municipal Dr. Arthur Ribeiro de Saboya – o Hospital do Jabaquara, na Zona Sul da cidade – assumiu a missão.
Em um primeiro momento, Andalaft pediu pareceres para o Conselho Regional de Medicina (CRM), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Ministério Público. Os documentos demoraram meses e, quando enfim chegaram, eram inúteis, de tão vagos. Ninguém, na verdade, sabia como proceder para driblar a insegurança jurídica. Andalaft, então, resolveu comandar o primeiro aborto legal no hospital baseado no único dado irrefutável em toda aquela confusão: era um direito das mulheres garantido pelo Código Penal. Chegou a primeira vítima de estupro, a operação foi realizada e a equipe ficou em suspense, esperando pelos desdobramentos explosivos. A única coisa excepcional que aconteceu foi a reação da paciente, que comoveu a todos quando saiu agradecendo ao hospital inteiro. Era um sinal, débil ainda, de que talvez a lei pudesse passar a ser cumprida no país.
Em 1999, o Ministério da Saúde, usando como subsídio o material produzido nos fóruns de Faúndes, finalmente assumiu a responsabilidade de fazer a primeira norma técnica sobre o assunto. Obstetras engajados nos fóruns viajaram pelo Brasil para ajudar na criação de novos atendimentos. Em 2007, já havia 35 serviços ligados a esse grupo de profissionais. O quadro geral avançava, ainda que lentamente, até que em 2014, dezoito anos depois, os fóruns de Faúndes deixaram de ser realizados. As organizações internacionais avaliaram que o Brasil estava na rota do desenvolvimento econômico e não precisava mais de suas verbas, que foram deslocadas para países da África. O Ministério da Saúde, no governo de Dilma Rousseff, também parou de reservar fundos para os encontros.
Com o fim dos eventos, veio uma onda retrógrada contaminando os conselhos estaduais de direitos das mulheres, as coordenações municipais de saúde da mulher e os gestores de hospitais públicos, que pararam de capacitar profissionais para a área. Os médicos que haviam recebido formação foram saindo, por aposentadoria ou transferência. Parte dos serviços definhou. Chegaram a ser sessenta, número já baixo para um país continental, e hoje são quarenta. É uma história de declínio cujo fundo do poço se materializou no Espírito Santo no ano passado, quando em um estado inteiro não apareceu sequer um serviço de saúde pronto para cumprir uma decisão judicial e acabar com a agonia de uma menina de 10 anos, vítima de estupros em série.
Moraes Filho analisa a situação com sua verve habitual, que vai num crescendo, deixa o interlocutor hipnotizado e, por fim, meio zonzo: “Os direitos sexuais e reprodutivos viraram agenda da esquerda, quando deveriam ser tema universal. E sempre que os governos progressistas precisam fazer alianças para ficar no poder, a primeira coisa que rifam é o útero da mulher. Uma das coisas mais vergonhosas que aconteceu na política no Brasil foi aquela eleição entre José Serra e Dilma Rousseff, em 2010. Com o Serra no Ministério da Saúde, entre 1998 e 2002, a gente avançou muito com a criação das portarias, das notas técnicas, dos serviços. Aí, para ganhar a eleição, ele falou que era a favor da vida e que Dilma era a favor do aborto. E aí a Dilma também afirmou que é a favor da vida – e ficaram dois candidatos à esquerda defendendo a pauta dos evangélicos de direita. Ali eu disse: acabou, não tem retorno. O movimento das mulheres não prestou atenção, ficou apoiando a esquerda em nome do resto da agenda, e o monstro cresceu. É melhor não vender a alma, é melhor perder e voltar depois!”
Uma boa parte dos países da América Latina ultrapassou o Brasil. No México, a legislação varia de região para região, mas na capital e no estado de Oaxaca é permitida a interrupção da gravidez nas primeiras doze semanas, sem condicionantes, como ocorre nos países mais desenvolvidos. Em dezembro do ano passado, a Argentina se tornou o mais recente país latino-americano a permitir o aborto incondicional nas primeiras semanas, juntando-se a Uruguai, Cuba, Guiana, Guiana Francesa e Porto Rico. O Brasil, ao restringir o procedimento a poucos casos específicos, integra o grupo formado por Bolívia, Chile, Costa Rica, Equador, Paraguai, Venezuela, Guatemala e Peru. Mas a experiência de obstetras como Moraes Filho é a prova das enormes dificuldades que as mulheres – e até meninas – enfrentam para exercer o direito previsto em lei.
Aos 59 anos, Moraes Filho é hoje o médico defensor do direito ao aborto legal mais conhecido do público por causa dos episódios turbulentos que caíram em suas mãos. Entre seus pares, costuma receber mais apoio do que críticas. “Ele assumiu essa posição a partir do episódio de 2009 e hoje é muito ouvido no meio médico e na sociedade. Isso mostra que, quando você se coloca abertamente e atua com honestidade, não é estigmatizado”, analisa Aníbal Faúndes.
Moraes Filho, na verdade, é a ponta do iceberg de uma teia interessantíssima de obstetras. Todos na faixa dos 60 anos, alguns já no fim de suas atividades no serviço público, a maioria formada por Faúndes ou entrosada a partir dos fóruns na virada para o século XXI. É uma rede com uma dezena de nomes espalhados pelo Brasil que implantou os primeiros serviços de aborto legal, conviveu com a resistência dos pares, ignorou eventuais detratores que os chamavam de “assassinos”, “aborteiros”, “fazedores de anjos” – e hoje mantém ligações principalmente por meio de comissões da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), que congrega mais de 16 mil profissionais no país. Não há nada de importante no setor que não tenha passado pelas mãos desse grupo de obstetras – da elaboração de normas técnicas junto com o governo à disseminação de métodos como a Amiu (aspiração manual intrauterina), que substituiu a dilatação e curetagem.
Alguns se tornaram amigos próximos de Moraes Filho. Entre eles, Jefferson Drezett, professor na Faculdade de Saúde Pública da USP, cabelos longos presos num rabo de cavalo, eloquente, um ateu também já excomungado – só que por um bispo da Nicarágua, onde prestou assessoria sobre direitos sexuais para a Suprema Corte. Montou na raça, em 1994, o Serviço de Violência Sexual e Aborto Legal do Hospital Pérola Byington, em São Paulo. Ou Cristião Rosas, médico presbiteriano que não deita na cama sem orar e ficou sem chão quando, ainda jovem, fez seu primeiro aborto legal no Hospital do Jabaquara, em uma menina de 12 anos que segurava seu braço e pedia “por favor, doutor, tira essa coisa de dentro de mim”. Hoje, Rosas coordena a rede Global Doctors of Choice no Brasil, de onde advoga por medidas como a aprovação oficial do mifepristone (um remédio indutor do parto) e trabalha em conjunto com uma nova geração de médicas obstetras – articuladas, ativistas, feministas – que começa a assumir a pauta e a criar novos serviços.
O recifense Rivaldo Mendes de Albuquerque, ex-vice reitor da UPE, também é do grupo de Moraes Filho. Sua atuação para garantir a distribuição do misoprostol no Brasil demonstra a influência dessa rede de obstetras. Muito católico, ele foi um dos responsáveis por convencer a Hebron Farmacêutica, laboratório que pertence a um grupo presbiteriano, a produzir o medicamento. Indicado para combater úlcera, o misoprostol chegou às farmácias do país em 1986, distribuído pela Pfizer com o nome comercial de Cytotec. Com o tempo, as mulheres brasileiras foram percebendo que a bula apontava o aborto como um de seus efeitos colaterais e, na base da tentativa e erro, descobriram que o medicamento poderia ser deliberadamente usado para interromper a gravidez.
Em seguida, estudos médicos confirmaram que o remédio de fato era uma forma segura de expulsar o feto (inclusive por meio da tese de doutorado de Moraes Filho, intitulada Misoprostol Versus Sonda Foley e Ocitocina para Indução do Parto). Mas, à medida que o Cytotec se tornava conhecido, setores conservadores começaram a pressionar pela sua proibição – até que, em 1998, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) restringiu o uso apenas para hospitais credenciados. Percebendo que o cerco se fechava e prevendo que a Pfizer, impedida de vendê-lo nas farmácias, acabaria desistindo de distribuí-lo no Brasil, os obstetras resolveram se mexer.
Naquele ano, Aníbal Faúndes e outros obstetras haviam conversado com laboratórios nacionais para explicar que os métodos contraceptivos de emergência que estavam prestes a entrar no Brasil não eram abortivos, mas apenas altas doses de hormônio que evitam a fecundação. A Hebron Farmacêutica pensou em produzir, mas hesitou e acabou perdendo o bonde – no início de 1999, o laboratório Aché lançou a pílula do dia seguinte, que bloqueia a fecundação, e ganhou muito dinheiro. Quando as restrições ao misoprostol começaram a virar uma preocupação nos fóruns naquele mesmo ano, o católico Rivaldo de Albuquerque lembrou-se dos protestantes da Hebron. “Procurei por eles e disse: Olha outra oportunidade aí, hein…”, diverte-se o médico. Os executivos da farmacêutica acabaram lançando em 2001 o seu misoprostol, com o nome fantasia Prostokos.
Hoje a Hebron, um laboratório com fábrica em Caruaru, cidade no agreste pernambucano, exporta o medicamento para países da América Latina e para os Estados Unidos. Dois anos depois, como se previa, a Pfizer de fato desistiu de vender o remédio no Brasil. E o misoprostol, imprescindível também na indução do parto normal e no estancamento de hemorragias no pós-parto, é obrigatório em todos os serviços de saúde obstétricos que têm leitos do SUS.
Moraes Filho acompanha toda essa atividade por dentro, em uma vida associativa frenética. Além de integrar a diretoria da Febrasgo, eleita numa disputa duríssima contra uma chapa conservadora, ele é conselheiro do Conselho Regional de Medicina do Estado de Pernambuco (Cremepe) e membro de um comitê que trata do assunto na Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (Figo). É uma atuação que lhe confere peso político para assumir casos como o da menina capixaba, exige trocas de informações constantes e debates científicos sem fim. Mas todos os dias, às 7 horas, ele está a postos para comandar a troca de plantão na sala de parto da maternidade que dirige.
O Pró-Marias, serviço de aborto legal do Cisam, funciona em um quarto, atrás de um biombo que o separa de uma pequena antessala, no primeiro andar do prédio. Começou em 1996, com uma equipe de cinco pessoas, entre elas Moraes Filho e Rivaldo de Albuquerque, e levando pedradas de colegas. Em reuniões clínicas, os outros médicos eram agressivos, diziam que passariam a ter vergonha de trabalhar na maternidade. Com carga dramática imensa, alguns episódios foram contribuindo para vencer as resistências. Um dos mais marcantes foi protagonizado por uma paciente que recebeu cetamina, um anestésico hoje não mais usado em aborto legal. Entrou em catarse durante o procedimento e repetiu detalhes de como foi estuprada por mais de um homem, teve a genitália invadida por um objeto estranho e, ao pedir clemência para não morrer, acabou com os dois braços quebrados. Todos os que estavam na sala choraram.
Com o passar do tempo, o Pró-Marias foi assimilado pela equipe. Mas topar com histórias de reações contrárias não chega a ser raro. Médicos que participam do serviço vez por outra são importunados pelo WhatsApp com fotos de caixões. A objeção de consciência, recurso que permite a um profissional se recusar a fazer o aborto por motivos religiosos ou morais, também é evocada com certa frequência. Sempre repetindo “eu já fui como eles”, Moraes Filho aposta que, na maioria das vezes, as resistências se devem à falta de informação. Por isso, tenta vencê-las.
Em novembro passado, ele teve problemas com dois anestesistas de um plantão noturno. Uma paciente do Pró-Marias expulsou o feto, sangrou muito e foi levada para fazer uma aspiração manual. Precisava de anestesia, mas os dois se negaram a fazer o procedimento, alegando que não tinham um ultrassom para confirmar o esvaziamento uterino. A moça sangrou até a manhã seguinte, quando uma médica chegou e assumiu o caso. Moraes Filho pegou os prontuários e levou para o comitê de ética, mas decidiu também conversar com um dos anestesistas na virada do plantão. “A gente sabe que muitas dessas mulheres estão mentindo”, disse o anestesista, ao mostrar, no celular, um vídeo de um grupo de extrema direita que defende essa tese. O médico advertiu que o recurso da objeção de consciência não pode ser usado quando o hospital não tem outro profissional apto para assumir o atendimento. Em seguida, enviou um e-mail para a equipe, no qual anexou os protocolos seguidos pelo serviço e explicou: “Quando a paciente chega até o anestesista, ela já preencheu todos os requisitos exigidos para a garantia deste direito, em assistência prestada por obstetra, enfermeira, psicóloga e assistente social. Tudo é para dar segurança a todos os envolvidos.” Horas depois, veio a resposta de um dos que se recusaram a atender a moça: “Boa noite, Olímpio. Muito obrigado pelo envio do conteúdo. Havia muita desinformação de minha parte. Muitas dúvidas quanto ao aspecto legal, que eram o meu maior problema de consciência, foram sanadas. O conhecimento é a luz para uma visão cega pela desinformação e pela ignorância.” Moraes Filho ganhou mais uma pequena batalha.
O Cisam não é o único hospital a oferecer serviço de aborto para casos previstos em lei no Recife (existem outras duas unidades de referência na cidade) e está longe de ser o maior centro do gênero no país (o Hospital Pérola Byington, em São Paulo, faz um número dez vezes maior por ano). Desde 2016, quando os dados sobre o serviço passaram a ser informatizados, o Cisam recebeu 21 garotas de até 14 anos em situação de violência sexual, duas delas para fazer aborto previsto em lei. É apenas um microcosmo de uma imensa tragédia nacional. Dados do SUS mostram que 642 crianças de 10 a 14 anos foram recebidas em serviços públicos de janeiro a junho do ano passado para interromper a gestação ou tratar complicações de abortos clandestinos ou espontâneos. Em 2019, foram atendidas 1,7 mil meninas.
A realidade do Cisam não é nem mesmo um modelo. No fim de novembro, durante a visita da piauí, estava superlotado. As salas de parto com 10 leitos tinham 23 pacientes. Na triagem com 2 leitos de emergência estavam 9 mulheres. Outras gestantes esperavam vaga em um dos 103 leitos recebendo atendimento em macas colocadas no chão dos corredores. Mas, apesar de tudo isso, o lugar virou uma espécie de gabinete de crise para casos espinhosos em decorrência de algumas características particulares. Uma delas é que, por ser um serviço de ensino que abriga três disciplinas da Faculdade de Ciências Médicas da UPE, tem gestão com autonomia total. Outro aspecto singular é que, a partir de 1993, a maternidade teve serviços criados por médicas e enfermeiras ligadas a grupos feministas, que até hoje participam do seu conselho gestor.
Uma brasileira que engravida num ato de violência sexual não dispõe de um canal oficial para saber onde fica o serviço de aborto legal mais próximo de sua casa. Pelas vias governamentais, a única maneira de obter um norte é cascavilhando o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (Cnes), uma planilha onde constam esses atendimentos, identificados como serviço 165, classificação 006. É uma maçaroca intransponível, com dados desatualizados. É comum que, uma vez contatados, esses lugares informem que na verdade nunca tiveram o serviço. Em meio a essa ausência de suporte oficial, os grupos feministas foram assumindo o papel de fornecer informações para mulheres em momentos de desespero – e até de encaminhá-las para hospitais com serviços de referência.
A relação de Moraes Filho com os grupos feministas é impagável. O médico convive com uma pecha que paira sobre a sua cabeça, a de “homem branco”. Ele mesmo se refere ao termo, como quem pede desculpas, em conversas nas quais se declara absolutamente consciente de sua posição privilegiada. Apanhou à beça em 2013 quando virou o único homem – e branco – a ocupar a Coordenação da Saúde da Mulher de Pernambuco, a convite da então secretária da Mulher, a feminista Cristina Buarque. Sua missão era aproximar o meio médico das causas das mulheres. De vez em quando, compra brigas com ativistas ao fazer críticas, mas dali a pouco estão todos às boas de novo. “Sei que elas têm razão, porque historicamente é uma sacanagem atrás da outra com as mulheres. Mas às vezes noto, por exemplo, que discursos radicais assustam colegas médicos que poderiam aderir à causa”, cutuca ele.
Quando conseguem ter acesso a um serviço de referência, as crianças grávidas são recebidas com normas de atendimento baseadas no Estatuto da Criança e do Adolescente que garantem que a sua vontade é sempre soberana independentemente da idade – soberana, inclusive, em relação à vontade dos pais ou representantes legais. Ela decide se vai abortar, se quer manter a gravidez e criar o filho ou entregá-lo para adoção. Uma semana depois do caso da menina capixaba, chegou ao Cisam uma outra garotinha do interior de Pernambuco, grávida aos 10 anos de idade. Ela decidiu manter a gestação – neste caso, com o apoio da família. Os médicos a encaminharam para o pré-natal de alto risco, onde ela passou por duas consultas detalhadas antes de voltar para a cidade onde mora. Com os hormônios sexuais apenas começando seu trabalho no desenvolvimento do aparelho reprodutor, o organismo de uma criança ainda não tem maturidade para aguentar as alterações da gestação. Por isso, as chances de complicações como pré-eclâmpsia e hemorragias são muito maiores.
Depois da repercussão do caso da menina capixaba, viralizou um vídeo de 2015 que mostrava Moraes Filho passando um sabão em parlamentares num debate sobre a regulamentação do aborto nas primeiras semanas de gravidez, na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado, em Brasília. “Com o devido respeito, se fossem as filhas de senadores e deputados que morressem de aborto, isso já tinha mudado”, disse ele, entre outros tijolaços. Apesar de vez por outra adotar esse estilo espalha-brasas, a régua de comportamento de Moraes Filho é a da conciliação, como se vê em uma penca de episódios profissionais e pessoais. Quando os obstetras do hospital universitário do Espírito Santo alegaram que não poderiam atender a criança de 10 anos porque não tinham normas técnicas para antecipação de parto de um feto com 22 semanas, por exemplo, alguns de seus colegas da Febrasgo se inflamaram. Moraes Filho foi da turma do deixa-disso. Acalmou os ânimos e argumentou que era uma boa hora para ajudar hospitais a fazer seus protocolos.
O pendor conciliatório vaza para todas as áreas de sua vida. Vai parar até em sua atuação no Carnaval de Olinda. Com amigos de infância da Praia de Pau Amarelo, Moraes Filho fundou nos anos 1980 um bloco batizado de Chego Lá, em uma alusão à expectativa pela chegada da democracia, que foi dissolvido em 1989 quando o grupo considerou cumprida sua função social. Em 2018, a turma resolveu relançar a agremiação. Mas os ânimos arrefeceram rapidamente, por causa da polarização que derreteu amizades e famílias. Moraes Filho propôs uma saída pela tangente e fundou outro bloco, o Tomamu no Papeiro (ou tomamos na bunda, no vernáculo carnavalesco olindense). Destinado a só existir enquanto Jair Bolsonaro estiver no poder, o bloco é puxado pelo Maracatu Baque Mulher, grupo com composição integralmente feminina, e usa o grito de resistência “Quem não reage, rasteja”, frase emprestada do cineasta Cláudio Assis. Por dois anos pré-pandemia, o bloco saiu pela Ladeira da Sé, no sábado de Carnaval, convocando “todos que tomaram no papeiro e podem vir a tomar mais ainda caso não haja reação: mulheres, LGBTs, negros, pardos, índios, professores, pesquisadores, jornalistas, ambientalistas e outros mais”. Por ter Moraes Filho por perto, no entanto, o Tomamu no Papeiro acabou atraindo também alguns colegas de infância integrantes da outra ponta da polarização, agora em termos amigáveis. Até o nonagenário Faúndes, hoje professor emérito da Unicamp e incluído no ano passado pela Universidade Stanford em uma lista dos 100 mil cientistas mais influentes do mundo, foi visto na muvuca vestindo a indumentária do bloco, uma camiseta lilás — a cor das mulheres. Para o Carnaval do ano que vem, com todos vacinados, o Tomamu já planejou sua fantasia coletiva: os foliões sairão vestidos de jacaré.
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