CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
A gotinha diminuiu
O risco do retorno da pólio – e da pós-pólio
Amanda Gorziza | Edição 193, Outubro 2022
Denise Duarte Bruno teve poliomielite em 1960, quando tinha 1 ano e 4 meses. Cinco anos antes, o epidemiologista norte-americano Jonas Salk havia desenvolvido a primeira vacina contra a doença, feita com o vírus inativo, mas sua aplicação no Brasil ainda era muito limitada. Só na semana em que a família da pequena Denise recebeu o diagnóstico, outros dez casos da doença foram identificados na cidade onde vivia, Avaré, no interior de São Paulo. Denise passou por cirurgias reparadoras para corrigir as limitações motoras que a poliomielite deixa em suas vítimas, e mesmo assim ficou com sequelas nos membros inferiores. Nada, porém, que atrapalhasse seu desenvolvimento e suas atividades até a vida adulta.
Em 2008, Denise trabalhava como assistente social no Serviço Social Judiciário em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, fazendo perícia em processos das Varas de Família. Quando estava conduzindo algumas entrevistas, teve um esquecimento súbito: não se lembrava do nome dos entrevistados, em que casos estavam envolvidos, quais os fatos dos processos que ela já havia estudado. Ela foi obrigada a remarcar as entrevistas.
Denise, então com 49 anos, buscou ajuda médica, mas os exames que realizou não revelaram nada de anormal. Como se sentia sempre muito cansada, o médico recomendou que fizesse mais exercícios físicos. Quando afinal se chegou a um diagnóstico correto, a recomendação foi revertida: nada de exercícios. Os sintomas – dor muscular, intolerância ao frio e fadiga – atestavam que Denise sofria da síndrome pós-pólio. Trata-se de uma doença neuromuscular degenerativa que afeta quem já teve poliomielite e é agravada pelo excesso de atividade motora.
O vírus da poliomielite ataca os neurônios que coordenam os movimentos. Os neurônios motores que sobrevivem à doença precisam assumir as funções dos que morreram. Com o tempo, eles ficam sobrecarregados e começam a falhar. Surge assim a síndrome pós-pólio, que ainda não tem tratamento definitivo. Segundo o neurologista Acary Souza Bulle Oliveira, especialista na síndrome, estima-se que a condição atinja entre 60% e 65% das pessoas que tiveram poliomielite paralítica na infância.
A imunização que ainda não estava disponível na infância de Denise Bruno é a única forma eficiente de conter a poliomielite. No entanto, a cobertura vacinal da pólio no Brasil está em seu ponto mais baixo desde 2010. Segundo o Ministério da Saúde, até 27 de setembro deste ano, apenas 53% das crianças de 1 a 4 anos de idade haviam sido imunizadas. A meta da campanha de vacinação é alcançar uma cobertura de no mínimo 95% – que não é atingida desde 2016. Por isso, a campanha foi prorrogada até o final de setembro. “A taxa de vacinação está muito baixa. O Ministério da Saúde é letárgico. Não tem uma atitude decisiva para que a informação chegue à população”, critica Bulle.
De acordo com o Programa Nacional de Imunizações, o esquema vacinal completo contra a poliomielite inclui três doses da vacina inativada – aquela desenvolvida por Salk – administradas aos 2, 4 e 6 meses de idade. Depois, aos 15 meses e aos 4 anos, vem o reforço com a vacina oral de vírus atenuado, criada pelo pesquisador polonês-americano Albert Sabin – a popular “gotinha”.
As campanhas efetivas de vacinação contra a poliomielite iniciaram-se na década de 1970 no Brasil. Foram bem-sucedidas: o último caso de poliomielite no país foi identificado em 1989. Cinco anos depois, a Organização Mundial da Saúde certificou que a doença havia sido erradicada do continente americano, graças à vacina. Mas a baixa procura pelo imunizante observada nos últimos anos preocupa especialistas, que temem o reaparecimento do vírus no Brasil. A Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) classificou o país como tendo alto risco de reintrodução da doença.
Recentemente, foram diagnosticados casos de pólio em Israel e nos Estados Unidos. Em Rorainópolis, no estado de Roraima, o Ministério da Saúde apura o caso de uma paciente de 14 anos com quadro de paralisia flácida aguda, que pode indicar pólio. A Secretaria da Saúde de Roraima informou à piauí, em meados de setembro, que ainda estava aguardando o resultado dos exames.
A síndrome obrigou a assistente social Denise Bruno a se aposentar antes do previsto, para diminuir as atividades motoras. Hoje com 63 anos, ela voltou a morar em Avaré, sua cidade natal. “Depois que eu consegui de alguma forma conviver com as sequelas da pólio e levar a vida mais normal possível, veio a pós-pólio. Foi como ter pólio novamente”, diz ela, que usa uma prótese na perna direita desde a infância e muletas para andar na rua.
Em 2013, Denise participou de um estudo pioneiro da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que combinou medicações neurológicas e musculares. Segue tomando esses remédios, com bons resultados. Também realiza acompanhamento com neurologista e fisioterapeuta. Mas outras vítimas do pós-pólio podem ter seus movimentos comprometidos de forma ainda mais drástica.
“É assustador pensar que, se tivermos um caso confirmado de pólio no Brasil, daqui a cinquenta anos teremos novos sequelados de pólio e pós-pólio. Temos que interromper esse ciclo agora – e só a vacinação é capaz disso”, diz ela, com conhecimento de causa.