A martinicana Suzanne Césaire: “Meu olhar, para além dessas formas e cores perfeitas, surpreende, no belíssimo rosto antilhano, seus tormentos interiores” CREDITO: ARQUIVOS D.R._1950
A grande camuflagem
É a África que está presente ali, nas Antilhas, e espera, agitada, devoradora de brancos
Suzanne Césaire | Edição 181, Outubro 2021
A escritora e ativista caribenha Suzanne Roussi nasceu em 1915 na Martinica, um departamento francês no Caribe. Filha de uma professora e de um trabalhador da indústria de cana-de-açúcar, ela emigrou para Paris, após terminar o colégio. Lá, estudou na prestigiosa Escola Normal Superior, onde conheceu o escritor Aimé Césaire, seu conterrâneo.
Os dois trabalharam como editores da revista L’Étudiant Noir (O estudante negro), contribuindo para o refinamento do pensamento anticolonial da época. Também participaram do movimento Négritude, que agregava escritores negros de países colonizados pela França e buscava recuperar as influências africanas apagadas pelo imperialismo. Em 1937, Suzanne e Aimé se casaram. Dois anos depois, retornaram à Martinica e em 1941 fundaram a revista Tropiques (que foi publicada até 1945).
Aimé Césaire, que viria a se tornar um famoso poeta surrealista, foi quem primeiro usou o termo négritude (numa edição de L’Étudiant Noir) e teve entre seus discípulos o psiquiatra e pensador Frantz Fanon, seu conterrâneo. Ligado ao Partido Comunista, Aimé elegeu-se prefeito da capital Fort-de-France, de modo que Suzanne Césaire é vista hoje como um caso típico de uma artista mulher cujo legado foi ofuscado pela fama do marido. O estereótipo é verdadeiro, mas o seu subtexto – o de que a Suzanne talvez coubesse um papel de liderança no movimento surrealista – tende paradoxalmente a reduzir a complexidade do pensamento da autora, que diferia em aspectos importantes da visão de Aimé e de muitos aliados e seguidores dele.
Nos escritos de Suzanne, o foco na ancestralidade africana se mescla constantemente a uma especificidade caribenha. A Grande Camuflagem, seu ensaio mais famoso – que a piauí publica a seguir e faz parte de uma coletânea de textos da autora, a ser lançada neste mês –, dá o tom da obra, satirizando argumentos essencialistas dos colonizadores, ao mesmo tempo que ensaia a busca por uma identidade local sincrética.
Quase todos os escritos de Suzanne Césaire foram publicados na Tropiques. A revista circulou sob forte vigilância e ameaças de censura pelo regime militar de Vichy, que vigorou tanto na França como nos seus departamentos ultramarinos. Após uma intervenção do regime aliado aos nazistas, a revista passou a se definir como uma publicação especializada em folclore local, na tentativa de escapar aos censores.
Aimé e Suzanne se divorciaram em 1963. Ela morreu precocemente em 1966, aos 51 anos, e ele, em 2008, aos 94 anos. A Tropiques permanece como um dos marcos da efervescência anticolonial de sua época, e Suzanne Césaire, uma de suas principais expoentes, agora finalmente traduzida ao português.
Há, junto às ilhas, as belas lâminas verdes da água e do silêncio. Há a pureza do sal em torno das Caraíbas.[1] Há sob meus olhos a bela praça de Pétion-Ville,[2] plantada com pinheiros e hibiscos. Há minha ilha, a Martinica, e seu fresco colar de nuvens sopradas pelo Pelée.[3] Há os mais altos platôs do Haiti, onde um cavalo morre, atingido pela tempestade secularmente mortal de Hinche.[4] Perto dele seu dono contempla a região que julgava sólida e ampla. Não sabe ainda que participa da ausência de equilíbrio das ilhas. Mas esse acesso de demência terrestre lhe esclarece o coração: ele se põe a pensar nas outras Caraíbas, em seus vulcões, em seus tremores de terra, em seus furacões.
Nesse momento, ao largo de Porto Rico, um grande ciclone põe-se a rodopiar entre os mares de nuvens, com sua bela cauda que varre sucessivamente o semicírculo das Antilhas. O Atlântico foge para a Europa em grandes ondas oceânicas. Nossos pequenos observatórios tropicais põem-se a crepitar a notícia. A radiotelegrafia fica transtornada. Os navios fogem, para onde fugir? O mar incha, aqui, ali um esforço, um salto apreciável, a água distende seus membros para uma consciência mais ampla de seu poder de água, marinheiros têm os dentes cerrados e o rosto molhado, e se fica sabendo que o litoral sudeste da República do Haiti está sob o ciclone que passa à velocidade de 56 km/h, dirigindo-se para a Flórida. A consternação toma conta dos objetos e dos seres poupados no limite do vento. Não mexer. Deixar passar…
No coração do ciclone tudo se racha, tudo desaba no barulho de rasgamento das grandes manifestações. Depois os rádios se calam. A grande cauda de palmas de vento frio se estendeu em alguma parte na estratosfera, ali onde ninguém irá seguir as loucas irisações e as ondas de luz violeta.
Após a chuva, o sol.
As cigarras haitianas pensam em cantar o amor. Quando não há mais uma gota de água na erva queimada, elas cantam furiosamente que a vida é bela, explodem num grito por demais vibrante para um corpo de inseto. Com sua magra película de seda seca esticada ao extremo, elas morrem deixando dissolver-se o grito de prazer menos molhado do mundo.
O Haiti permanece, envolvido nas cinzas de um sol suave com olhos de cigarras, escamas de mabuias[5] e o rosto de metal do mar que não é mais de água, mas de mercúrio.
Agora é o momento de se debruçar na janela do clíper[6] de alumínio nas grandes curvas.
De novo, o mar de nuvens que não é mais virgem, uma vez que aí passam os aviões da Pan American Airways. Se há uma colheita que amadurece, é o momento de tentar entrevê-la, mas, nas zonas militares proibidas, as janelas estão fechadas.
Põem-se para fora os desinfetantes, ou o ozônio, que importa, você nada verá. Nada além do mar e da forma confusa das terras. Percebem-se apenas os amores fáceis dos peixes. Eles fazem com que se mexa a água que pisca amistosamente o olho para a vidraça do clíper. Nossas ilhas, vistas de muito alto, adquirem sua verdadeira dimensão de conchas. E quanto às mulheres-colibris, às mulheres flores tropicais, às mulheres de quatro raças e com dúzias de sangue, elas não existem mais, nem as bengaleiras, nem as plumérias e nem os flamboaiãs, nem as palmeiras ao luar, nem os pores do sol únicos no mundo…
No entanto, elas aí estão.
No entanto, há quinze anos, revelação das Antilhas, do flanco Leste do Pelée. Desde então, eu soube, muito jovem, que a Martinica era sensual, enrodilhada, estendida, distendida nas Caraíbas, e pensei nas outras ilhas tão belas.
De novo no Haiti, nas manhãs do verão de 1944, presença das Antilhas, mais que sensível, de lugares de onde, em Kenscoff,[7] a vista para as montanhas é de uma intolerável beleza.
E agora lucidez total. Meu olhar, para além dessas formas e cores perfeitas, surpreende, no belíssimo rosto antilhano, seus tormentos interiores.
Pois a trama dos desejos não saciados pegou na armadilha as Antilhas e a América. Desde a chegada dos conquistadores e o impulso de suas técnicas (a começar pelas das armas de fogo), as terras de além-Atlântico não somente mudaram de rosto, mas de medo. Medo de estar distanciadas por aqueles que permaneciam na Europa, já armados e equipados, medo de sofrer concorrência dos povos de cor que logo eram declarados inferiores para melhor serem maltratados. Era preciso primeiro e a todo preço, ainda que ao preço da infâmia do tráfico de negros, criar uma sociedade americana mais rica, mais poderosa, mais bem organizada que a sociedade europeia abandonada, mas desejada. Era preciso ter essa revanche diante do nostálgico inferno que vomitava, sobre o Novo Mundo e suas ilhas, seus demônios aventureiros, seus galés, seus penitentes, seus utopistas. Há três séculos a aventura colonial prossegue – as guerras de independência são apenas um episódio dela –, os povos americanos, cujo comportamento diante da Europa permanece com frequência infantil e romântico, ainda não estão libertados do domínio do Velho Continente. Naturalmente são os negros da América que sofrem mais, numa humilhação cotidiana, das degenerescências, das injustiças, das mesquinharias da sociedade colonial.
Se nos orgulhamos de constatar por toda parte nas terras americanas nossa extraordinária vitalidade, se em definitivo ela parece prometer-nos a salvação, é preciso, todavia, ousar dizer que persistem ainda formas refinadas de escravidão. Aqui, nessas ilhas francesas,[8] elas aviltam os milhares de negros para os quais o grande Schoelcher[9] quis, há um século, com a liberdade e a dignidade, o título de cidadão. É preciso ousar mostrar, no rosto da França, iluminado pela implacável luz dos acontecimentos, a mancha antilhana, já que também numerosos franceses parecem determinados a não tolerar aí nenhuma sombra.
As formas degradantes do trabalho assalariado moderno ainda encontram entre nós um terreno onde florescer sem restrições.
Quem refugará, com o material ultrapassado de suas fábricas, esses alguns milhares de subindustriais e merceeiros, essa casta de falsos colonos responsáveis pela decadência humana das Antilhas?
Largados nas ruas das capitais, uma intransponível timidez os enche de temor entre seus irmãos europeus. Envergonhados por seu sotaque arrastado, por seu francês aproximativo, suspiram pelo tranquilo calor das habitações antilhanas e pelo dialeto da negra da[10] de sua infância.
Prontos para todas as traições a fim de se defenderem contra a maré montante dos negros, eles se venderiam à América, se os americanos não achassem que a pureza do sangue deles era mais que suspeita, como nos anos 1940 se dedicaram ao almirante de Vichy: sendo Pétain para eles o altar da França, Robert[11] se tornava necessariamente “o tabernáculo das Antilhas”.
Nesse ínterim, o servo antilhano vive miseravelmente, abjetamente nas terras da “fábrica”, e a precariedade de nossas cidades-burgos é um espetáculo que dá náusea. Nesse ínterim, as Antilhas continuam a ser paradisíacas, e esse suave ruído de palmeiras…
A ironia era nesse dia um traje brilhante de faíscas, cada um de nossos músculos exprimia de maneira pessoal uma parcela do desejo disperso nas mangueiras em flor.
Eu ouvia muito atentamente, sem as compreender, vossas vozes perdidas na sinfonia caribenha que lançava chuvaradas em assalto às ilhas. Éramos semelhantes a puros-sangues, contidos, saltando de impaciência, na orla dessa savana de sal.
Havia na praia alguns “funcionários metropolitanos”.[12] Estavam postos ali, sem convicção, prontos a partir ao primeiro sinal. Os recém-chegados não se adaptam às nossas “velhas terras francesas”. Quando se debruçam sobre o espelho maléfico das Caraíbas, veem aí uma imagem delirante deles mesmos. Não ousam reconhecer-se nesse ser ambíguo, o homem antilhano. Sabem que os mestiços têm ligação com seu sangue, que são, como eles, de civilização ocidental. Naturalmente os “metropolitanos” ignoram o preconceito de cor. Mas sua descendência colorida os enche de temor, apesar da troca de sorrisos. Não esperavam essa estranha germinação de seu sangue. Talvez quisessem não responder ao herdeiro antilhano que grita e não grita “meu pai”. Todavia, há que contar com esses rapazes inesperados, essas jovens encantadoras. Há que governar essas pessoas turbulentas.
Eis um antilhano, bisneto de um colono e de uma negra escrava. Ei-lo desenvolvendo, para “girar no mesmo lugar” em sua ilha, todas as energias outrora necessárias aos colonos ávidos, para os quais o sangue dos outros era o preço natural do ouro, toda a coragem necessária aos guerreiros africanos que ganhavam perpetuamente sua vida vencendo a morte.
Ei-lo com sua dupla força e sua dupla ferocidade, num equilíbrio perigosamente ameaçado: ele não pode aceitar sua negritude, não pode embranquecer-se. A falta de energia apossa-se desse coração dividido e, com ela, o hábito das artimanhas, o gosto pelas falcatruas; assim desabrocha nas Antilhas essa flor da baixeza humana, o burguês de cor.
Nas estradas margeadas por gliricídias, os bonitos negrinhos que digerem em êxtase suas raízes cozidas com ou sem sal sorriem ao automóvel de luxo que passa. Sentem bruscamente, plantada em seu umbigo, a necessidade de ser um dia os senhores de um animal tão leve e brilhante e forte. Anos mais tarde, desfigurados pela gordura, vemo-los dar miraculosamente a trepidação da vida a carcaças de refugo, cedidas por preço vil. Por instinto, as mãos de milhares de jovens antilhanos sopesaram o aço, encontraram juntas, afrouxaram parafusos. Milhares de imagens de fábricas-claras, de aços-virgens, de máquinas libertadoras encheram os corações de nossos jovens operários. Em centenas de galpões sórdidos onde o ferro-velho enferruja, há uma invisível vegetação de desejos. Os frutos impacientes da Revolução brotarão daí, inevitavelmente.
Aqui, entre os morros alisados pelo vento, Fonds-Gens-Libres.[13] Um trabalhador rural que não foi tomado pela excitação da aventura mecânica apoiou-se no grande mapu[14] que faz sombra sobre todo um lado do morro e sentiu emergir nele, através dos dedos dos pés afundados nus na lama, uma lenta ascensão vegetal. Voltou-se para o pôr do sol a fim de saber o tempo que faria amanhã – os vermelhos-alaranjados indicaram-lhe que o tempo de plantar estava próximo –, seu olhar não é apenas o reflexo pacífico da luz, mas ele é oprimido pela impaciência, essa mesma que ergue a terra martinicana – sua terra que não lhe pertence e, todavia, é sua terra. Ele sabe que é com eles, os trabalhadores, que ela é solidária, e não com o béké[15] ou o mulato. E quando, bruscamente, na noite caraíba toda enfeitada de amor e de silêncio, explode um apelo de tambores, os negros se preparam para responder ao desejo da terra e da dança, mas os proprietários se fecham em suas belas casas e, por trás de suas telas metálicas, são, sob a luz elétrica, semelhantes a borboletas pálidas apanhadas na armadilha.
Em torno deles, a noite tropical se incha de ritmos, as ancas de Bergilde[16] adquiriram, com os estremecimentos que subiram dos abismos nas encostas dos vulcões, seu andar de cataclismo, e é a própria África que, para lá do Atlântico e dos séculos anteriores aos negreiros, dedica a seus filhos antilhanos o olhar de cobiça solar que os dançarinos trocam. O grito deles clama, com voz rouca e ampla, que a África está ali, presente, que ela espera, imensamente virgem apesar da colonização, agitada, devoradora de brancos. E nesses rostos constantemente banhados pelos eflúvios marinhos próximos das ilhas, nessas terras limitadas, pequenas, cercadas por água como grandes fossos intransponíveis, passa o vento enorme vindo de um continente. Antilhas-África, graças aos tambores, a nostalgia dos espaços terrestres vive nesses corações de insulares. Quem satisfará essa nostalgia?
Todavia, as bengaleiras da floresta de Absalon[17] sangram nos abismos, e a beleza da paisagem tropical sobe à cabeça dos poetas que passam. Através das redes oscilantes das palmeiras, eles veem o incêndio antilhano rolar sobre o Caribe, que é um mar tranquilo de lavas. Aqui a vida se acende com um fogo vegetal. Aqui, nessas terras quentes que conservam vivas as espécies geológicas, a planta fixa, paixão e sangue, em sua arquitetura primitiva, o inquietante repique de sinos proveniente dos quadris caóticos das dançarinas. Aqui os cipós balançando vertiginosamente adquirem, para encantar os precipícios, maneiras aéreas, agarram-se com suas mãos trêmulas à inapreensível trepidação cósmica que sobe ao longo das noites habitadas por tambores. Aqui os poetas sentem sua cabeça soçobrar e, aspirando os odores frescos das encostas, se apossam do ramalhete de ilhas, escutam o ruído da água em torno deles, veem avivar-se as chamas tropicais não mais nas bengaleiras, nas gérberas, nos hibiscos, nas buganvílias, nos flamboaiãs, mas nas fomes, nos medos, nos ódios, na ferocidade, que ardem nos ocos dos morros.
É assim que o incêndio do Caribe sopra seus vapores silenciosos, ofuscantes, para os únicos olhos que sabem ver, e é assim que súbito se embaçam os azuis dos morros haitianos, das baías martinicanas, súbito empalidecem os vermelhos mais gritantes, e o sol não é mais um cristal que cintila, e se os lugares escolherem as rendas das parkinsônias[18] como leques de luxo contra o ardor do céu, se as flores souberam encontrar as cores certas que dão o golpe fatal, se os fetos arborescentes secretaram essências douradas para seus báculos, enrolados como um sexo, se minhas Antilhas são tão belas, é que então o grande jogo de esconde-esconde teve êxito, é que faz certamente muito bom tempo, nesse dia, para ver.
Texto do livro A Grande Camuflagem: Escritos de Dissidência (1941-1945), a ser publicado neste mês pela editora Papéis Selvagens.
[1] Como é também chamado o Caribe (todas as notas são da redação da piauí, exceto a assinalada como N. E. – Nota do Editor).
[2] Cidade do Haiti.
[3] Vulcão no Norte da Martinica.
[4] Cidade do Haiti.
[5] Uma espécie de lagarto.
[6] Um hidroavião, modelo 314, desenvolvido pela Boeing e que foi apelidado de “clíper”, em referência a um tipo de veleiro.
[7] Cidade do Haiti.
[8] Os territórios franceses no Caribe são: Martinica, Guadalupe, Saint-Martin e Saint-Barthélemy.
[9] Victor Schoelcher (1804-93), jornalista e político abolicionista francês.
[10] A mulher que cuida de crianças, babá. (N. E.)
[11] Georges Robert (1875-1965), almirante francês e alto-comissário do regime de Vichy para os territórios franceses de além-mar. Em setembro de 1944, foi acusado oficialmente de colaboração com o regime nazista e condenado a dez anos de trabalhos forçados. Mas um novo julgamento o inocentou em seguida. Em abril de 1954, foi reintegrado como almirante.
[12] Ou seja, provenientes da França.
[13] Região da Martinica.
[14] A Licuala mattanensis mapu, conhecida também como palmeira-do-paraíso.
[15] Branco nascido na Martinica, descendente dos primeiros colonos europeus.
[16] Uma personagem da autora.
[17] Floresta na Martinica.
[18] Árvore da família das leguminosas, também conhecida como espinho-de-Jerusalém.