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A grande ilusão
Depois da farra, o colapso – o choque, a confusão e a revolta no país mais afetado pela crise econômica mundial
João Moreira Salles | Edição 28, Janeiro 2009
Um relatório da Organização das Nações Unidas publicado em outubro de 2007 afirmava que a Islândia, segundo todos os indicadores sociais, havia superado a Noruega e era agora o melhor país do mundo para se viver. Exatamente um ano depois, em 6 de outubro passado, boa parte dos 320 mil islandeses parou para ver o primeiro-ministro Geir Haarde se dirigir à nação. Era o meio da tarde, um horário fora do comum – os canais abertos islandeses começam a transmitir às 18 horas. Ainda assim, lá estava ele, severo, atrás de uma mesa tão sombria quanto seu semblante, tendo ao fundo a bandeira do país. Haarde falou por onze minutos. Ao concluir, disse:
Compatriotas, se jamais houve um momento em que a nação islandesa precisou demonstrar coesão e estoicismo na adversidade, este momento é chegado. Frente à tempestade que se inicia, exorto as famílias a conversarem entre si, a não se deixarem dominar pelo desespero, ainda que para muitos as perspectivas sejam sombrias. Precisamos explicar aos nossos filhos que o mundo não está à beira do apocalipse e que temos de arrancar, do fundo de nós mesmos, a coragem para enfrentar o futuro. Que Deus abençoe a Islândia.
Quarenta e oito horas depois, o primeiro-ministro inglês Gordon Brown invocou uma lei promulgada depois do 11 de Setembro e incluiu a Islândia na lista de países e organizações terroristas. O Banco Central, o Ministério das Finanças e os dois maiores bancos islandeses se juntavam à Al-Qaeda e ao Talibã. Os ativos dessas instituições no Reino Unido foram sumariamente congelados.
No final de novembro, na sua acanhada sala de trabalho, em Reykjavík, Árni Mathiesen, o ministro das Finanças, balançou a cabeça e, ainda aturdido, disse: “A reação dos ingleses foi a pá de cal. Eles não precisavam fazer aquilo. Não consigo entender como alguém usa uma lei antiterrorista contra um país como o nosso. Nos pôr nessa lista.”
Era o fim de um processo que levara a serena ilha do Atlântico Norte – que não possui exército e cuja polícia não anda armada – ao mais grave colapso de um país em tempos de paz. Em sete dias a Islândia se tornou a maior baixa da crise econômica mundial. Não se tratava de uma instituição financeira nem de um setor da indústria, mas de uma nação na bancarrota.
Os islandeses ainda buscam a metáfora justa: um furacão, um tiro, um caminhão que os atingiu por trás. E, se o processo que os derrubou não foi necessariamente o mesmo que levou o sistema financeiro internacional à lona, o trajeto da Islândia nos últimos dez anos talvez venha a ser visto pelos historiadores como exemplo das oportunidades, excessos, vulgaridades e riscos dos tempos em que as regras foram rasgadas para que o dinheiro pudesse gerar dinheiro.
Em 1936, o jovem poeta inglês W.H. Auden propôs à editora Faber escrever um livro sobre a Islândia. Ao chegar ao porto de Reykjavík, ele registrou: “Minha primeira impressão é de uma cidade luterana, banal e remota.” A sensação associada ao país foi sempre a de isolamento.
Quando os vikings chegaram, em 874, não encontraram quase nada. Trouxeram então suas mulheres celtas raptadas às ilhas britânicas e colonizaram a ilha. Trataram as florestas que cobriam um quarto das terras como os mineiros tratam suas minas, sem se dar conta de que eram frágeis e não se regenerariam. Em menos de sessenta anos a Islândia se transformou num deserto produzido por homens e ovelhas. O fluxo migratório cessaria em 930, quando o crescimento da população já não era suportável. A maior parte dos islandeses vivos descende diretamente desses primeiros homens e mulheres que aportaram no país há mais de mil anos – e o destruíram.
O desastre ambiental foi o grande responsável pela pobreza até meados do século passado. Halldór Laxness, Prêmio Nobel de Literatura em 1955, fala de personagens que têm vontade de tomar leite e não podem, que sonham em comer carne e não a encontram. Mesmerizadas, as crianças vêem as mães prepararem a primeira refeição do dia, torcendo para que ao pão seco venha se juntar uma pincelada de gordura e fígado de bacalhau. Até um passado recente, a vida do islandês podia ser descrita como uma batalha pelo mínimo necessário à sobrevivência: um peixe, um pedaço de carne, um abrigo contra o frio. O isolamento e as adversidades – fome, frio, vulcões, terremotos, pestes – geraram um povo obstinado e independente.
O país passou às mãos da Noruega em 1262 e da Dinamarca em 1380. A autonomia veio há 90 anos, e a independência, apenas em 1944. Durante todas essas etapas, o controle externo da ilha se resumiu a formalidades. Ela sempre foi deixada à própria sorte. Sem fortalezas, castelos e catedrais, nada na Islândia evoca a grande história européia; o trabalho do homem é atestado antes de tudo pelo que não está mais lá: as árvores que não existem, a paisagem lunar restante. Uma nação feita de fogo, gelo, água e vento.
No verão de 1936, Auden não se deixou atrair apenas pela aventura do isolamento. Queria também conhecer o país das sagas. Ao lado de gêiser, saga é a palavra que os islandeses deram ao mundo. Significa “história”, ou “o que se diz”. São narrativas compiladas nos séculos XII e XIII que formam uma das grandes épicas da literatura universal. Morte, amor, vingança, corrupção. Junto com as Eddas – textos em verso e prosa que narram os mitos nórdicos –, são o patrimônio imaterial da Islândia, as catedrais que não se vêem. Os islandeses sabem que pertencem a uma nação porque, além do gelo e do oceano, eles têm as sagas.
Durante muito tempo, foi o que bastou. Ao cabo da Segunda Guerra a Islândia era um dos países mais pobres da Europa. Seus três grandes bens – a energia geotérmica, os peixes e as sagas – eram coletivos. Todos podiam se aquecer e pescar, e todos podiam acompanhar, no original, o drama da formação nacional. Prevalecia a noção de bem comum, até hoje um dos esteios da identidade islandesa. Auden escreveu em 1936: eles formam “a única sociedade realmente sem classes que já encontrei, e não se tornaram vulgares – pelo menos, não ainda”. Num verso, acrescentou: “Ilhas são lugares à parte de onde a Europa está ausente.”
Em meados da década de 90, um novo governo decidiu que chegara a hora de trazer a Europa para perto. O povo – ou grande parte dele – concordou.
“Quando eu estava na escola, no final dos anos 90, havia uma sensação de que estávamos condenados a ser um país acanhado, sem perspectivas”, contou Jón Steinsson em sua sala na Universidade Columbia, em Nova York, onde leciona na Faculdade de Economia. Steinsson formou-se em Princeton e Harvard e, com menos de 30 anos e rosto de adolescente (lembra o Pimentinha), é uma das estrelas ascendentes no campo da macroeconomia. Trabalhou no Banco Central da Islândia no início da década, e em outubro passado, nos dias mais negros da crise, foi chamado às pressas para assessorar o primeiro-ministro. “O que muita gente chama hoje de ‘ambição desmedida'”, disse, “foi um processo mais complexo de afirmação nacional e de criação de oportunidades.”
Até o início dos anos 90, os islandeses nasciam e morriam num país que pouco se transformava. Os empregos se concentravam na indústria pesqueira, que respondia por 50% das exportações. O então prefeito de Reykjavík intuiu que havia a possibilidade de mudar as coisas.
Chamava-se Davíd Oddsson, usava um topete arquitetônico, era ambicioso e popular. Na juventude, fora cômico e ator. Tornou-se conhecido por interpretar o Ubu Rei, na peça homônima de Alfred Jarry, o criador da Patafísica, a ciência das soluções imaginárias. Seus dez anos na prefeitura, de 1982 a 1991, coincidiram com os governos de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, atentamente observados. Convidou economistas liberais como Milton Friedman e Friedrich Hayek a visitar sua cidade e deles ouviu propostas para desengessar o modelo islandês, no qual o Estado ocupava quase todo o espaço.
Em 1991, Oddsson foi eleito primeiro-ministro. Exerceria o cargo até 2004 – o mais longevo premiê da Islândia. Estava a caminho de se transformar no político mais poderoso – e mais radical – da história do país. Começou por privatizar a empresa municipal de pesca e, ano a ano, puxou à frente a agenda de liberalização do país. Aboliu o imposto sobre a riqueza, reduziu drasticamente os impostos sobre pessoa física e jurídica e fez o mesmo com o imposto sobre heranças. A economia respondeu. A renda média das famílias cresceu 17%.
Em 2003, Oddsson deu o passo crucial. Privatizou e consolidou o sistema bancário, que passou a ser dominado por três grandes bancos: Kaupthing, Landsbanki e Glitnir. Jón Steinsson comenta que pela primeira vez os islandeses tiveram acesso a crédito. “Podíamos abrir uma empresa ou expandir um negócio. Ganhamos uma autoconfiança que não tínhamos: ‘Vamos ser o país dos empreendedores!'”
Por essa época, uma palavra entrou no léxico do país: útrás. É formada por út (para fora) e rás (corrida). A palavra é meio agressiva”, explica Ísleifur Thórhallsson, ou Ísi, um jovem produtor musical. “Significa uma invasão ao contrário, uma ex-vasão, ir para fora e se apropriar de coisas, pilhar. Nos anos loucos, tudo girava em torno de útrás“, ele diz, com um sorriso não propriamente alegre.
A palavra passou a ser repetida com orgulho por políticos do governo e foi incorporada por uma nova geração cujos anseios não combinavam mais com o espírito insular. Útrás exprimia o desejo de garantir um lugar no mundo e rejeitar a “ilha à parte” de que falava Auden. “Útrásarvíking: era o que se dizia”, explica Gudmundur Jónsson, professor de história da Universidade da Islândia: “Investida viking, raide para conquistar fama e dinheiro. A tomada do mundo.”
A Islândia de Davíd Oddsson cresceu a taxas altíssimas. Ainda que toda a sociedade tivesse prosperado, alguns prosperaram mais. Um punhado de 20 ou 30 neovikings (os números variam) se apropriou da maior parte do produto. “Começou a surgir um abismo entre os mais ricos e o grosso da população”, relembra Jónsson. “Tanta riqueza nas mãos de tão poucos era um fenômeno absolutamente novo na sociedade islandesa.”
Um certo Ólafur Ólafsson, presidente da segunda maior companhia de navegação do país, contratou Elton John para tocar no seu aniversário de 50 anos. Outro, ligado ao Landsbanki, levou um grupo de amigos para uma ilha no Caribe e, não querendo ficar para trás, chamou o rapper americano 50 Cent para embalar a sua festa de 40 anos. Pela primeira vez, islandeses endinheirados exibiam jatos e helicópteros particulares. Numa enquete de 2007, um jornal perguntava: “Quem é o bilionário mais interessante do país?”
Os não-bilionários também enriqueciam. Uma explosão imobiliária começou a transformar a aldeia que Auden visitara. O entorno de Reykjavík foi desfigurado a golpes de promessas vultosas de investimento. Prédios subiram no centro histórico. Concessionárias de carros tinham dificuldade em atender aos pedidos. Ao lançar o Land Cruiser, um carro de 100 mil dólares, a Toyota rapidamente identificou seus dois maiores mercados: Rússia e Islândia. Com a moeda forte, os islandeses se acostumaram a passar fins de semana em Londres e Nova York para fazer compras. Em coroas islandesas o mundo era barato, e endividar-se era um recurso sempre disponível.
Tanta prosperidade se alicerçava na extraordinária expansão dos três bancos. Entre 2003 e 2007, o PIB cresceu 25%. No mesmo período os bancos se multiplicaram por dez. E, sendo tão pequena a população islandesa, tamanho desempenho exigia ambições internacionais. O Glitnir, o Landsbanki e o Kaupthing passaram a abrir agências de Nova York a Helsinque. E a oferecer taxas de captação que chegavam a ser 50% mais elevadas que as dos bancos tradicionais.
Um dos mistérios do milagre islandês é de que maneira um sistema financeiro baseado num país tão pequeno pôde crescer tanto em tão pouco tempo. Segundo Jón Steinsson, havia uma percepção generalizada de que os três bancos eram tão importantes para a economia islandesa que as autoridades jamais permitiriam que quebrassem. Seriam “bancos sistêmicos”, logo, eternos. Algumas agências de risco compraram o argumento e, por algum tempo, concederam-lhes avaliações excessivamente generosas. Em alguns casos, chegaram a ser considerados Triple A, o Olimpo das avaliações, negado a bancos infinitamente mais sólidos, como o JP Morgan e o Bank of America.
Com reputação tão estelar, os banqueiros islandeses se julgaram protagonistas do sistema financeiro global. O Triple A estimulava os grandes investidores institucionais a buscar as altas taxas dos bancos islandeses, muitas vezes sem conhecer direito as garantias oferecidas. Empacotavam-se produtos de instituições diferentes e, num passe de prestidigitação, o banco que acabara de aportar no cenário desaparecia em meio a instituições centenárias. Quanto à dona de casa que, na Inglaterra, tomava a decisão de depositar sua poupança num banco islandês, que a remunerava tão mais generosamente do que o Barclays ou o HSBC, ela imaginava que as leis de proteção do correntista inglês vigoravam também no seu caso – afinal, ela não fora até a Islândia abrir uma conta, apenas ao computador da família ou à nova agência inaugurada no bairro.
Os bancos islandeses cresceram, e cresceram – “como num conto de fadas “, segundo o primeiro-ministro Geir Haarde. Em outubro de 2006, o Landsbanki lançou um banco on-line chamado Icesave, com vistas a captar depósitos na Inglaterra e na Holanda. Sucesso estrondoso. A fartura se cristalizava numa entrevista dada pelo presidente do banco, Sigurjón Árnason. Ele tentava explicar a dimensão de sua glória: o modelo era tão bom e o dinheiro tanto e tão farto que dispensava maiores esforços. No último parágrafo, lê-se: “‘A única coisa que tenho de fazer é checar no fim do dia quanto foi depositado’, diz Sigurjón, rindo. Pega então o telefone, faz a pergunta e anuncia: ‘Cinquenta milhões de libras, só nesta sexta-feira!'”
Ísi era distribuidor de cinema na época. Da sua turma de colégio, foi o único que não migrou para o sistema financeiro. “Tudo girava em torno desses três bancos”, diz. “As vagas eram ilimitadas, e o salário não se comparava a nada do que conhecíamos. Engenheiros, professores, matemáticos, psicólogos. todo mundo foi para os bancos. Você se perguntava: ‘Será que eu também não devia ir? Tem alguma coisa errada comigo?'”
Bergsteinn Sigurdsson, um repórter de 29 anos do jornal Fréttabladid, conta que enfermeiras deixaram os hospitais e se tornaram gerentes de conta. Encontrar vagas para os filhos no pré-primário era uma dificuldade. “As professoras viam o salário e mandavam o emprego às favas. ‘Melhor trabalhar num banco’, diziam.” “O novo mantra era: ‘Não precisamos mais dos peixes. Agora temos os money markets.'” No bar de um hotel, seu colega Kolbeinn Proppé resume: “O sistema financeiro era bem mais sexy do que bacalhau.”
“Durante muito tempo tivemos vergonha da nossa pobreza”, continua Bergsteinn, “então, quando enriquecemos, foi muito bom. Deixamos de ser frugais. A minha geração se endividou, frequentemente em moeda estrangeira, porque era mais barato.” “A diferença”, diz Proppé, “é que nossos avós saldavam suas dívidas. No nosso caso, os bancos insistiam: ‘Não paguem, façam mais dívidas.’ Quem estudou comigo se lembra dos bancos indo lá oferecer cartões de crédito. Ter um cartão era mais fácil para nós do que para os nossos pais.”
Havia quem se endividasse mais do que a geração de Bergsteinn e Proppé: os próprios bancos. Seus depósitos inchavam, e no final de 2007 o Glitnir, o Landsbanki e o Kaupthing eram doze vezes maiores do que a economia islandesa. O umbigo estava na Islândia, mas cabeça, corpo e membros, na Europa. Lá fora, colhiam depósitos e concediam empréstimos em euros, libras e dólares. Ali dentro, prestavam contas em coroas islandesas e emprestavam em moeda forte, supervisionados pelo Banco Central da Islândia. Alguém sugeriu a imagem de um gato se equilibrando no corpo de um rato.
A Islândia realizou seu projeto de útrás voando alto com dinheiro emprestado. Lojas de departamento em Londres, supermercados na Escandinávia e um clube de futebol na Inglaterra passaram a mãos islandesas. Para tratar do bacalhau, da construção civil, dos serviços de manutenção e limpeza, importaram-se trabalhadores de Portugal, Polônia e Bielo-Rússia. A taxa de desemprego era próxima do zero. O país caminhava firme – ou supunha caminhar – em direção ao sonho de se tornar uma potência financeira sediada num pequeno território, como a Suíça ou Luxemburgo.
Até que no dia 15 de setembro passado o mundo acordou com a notícia de que o banco de investimento Lehman Brothers havia pedido concordata.
“Foi o acontecimento zero, o início da derrocada”, diz Jón Steinsson. Sabia-se que o modelo islandês era inviável – a partir de 2005, pipocaram aqui e ali relatórios que demonstravam ser impossível, a um país tão pequeno, sustentar com a própria moeda um sistema financeiro tão grandioso. A embriaguez dos mercados, entretanto, parecia impermeável a toda racionalidade. “Especulação em grande escala exige um sentimento espraiado de confiança e otimismo. Quando as pessoas são cautelosas, desconfiadas ou até mesquinhas, elas se tornam imunes ao entusiasmo especulativo”, escreveu o economista John Kenneth Galbraith em seu livro sobre o crack de 1929. No mundo, e em especial na Islândia, a prudência desaparecera. De austera, a pequena ilha passara a viver num entusiasmo quase carnavalesco.
A quebra do Lehman foi a ducha gelada. De uma hora para outra os investidores constataram que, se um baluarte de Wall Street capaz de atravessar incólume a crise de 29 podia virar pó, então todos estavam em risco – principalmente os aventureiros. Em nada ajudou o fato de um dos três bancos islandeses, o Glitnir, dispor de uma linha de crédito no Lehman.
O que se seguiu foi uma corrida aos bancos. No dia 29 de setembro, já à míngua, a direção do Glitnir pediu ajuda ao Banco Central islandês. Em vez de uma linha de crédito emergencial, souberam que o banco seria estatizado. O governo injetaria 600 milhões de euros e, em contrapartida, ficaria com 75% das ações. No dia seguinte, o grupo controlador do Glitnir pediu concordata. Por sorte o plano do BC não chegou a ser implementado. Caso contrário, a crise bancária se transformaria numa crise do Tesouro, pois as obrigações do Glitnir passariam a ser obrigações da Islândia. Mas a sorte durou pouco. A quebra do primeiro banco produziu um efeito dominó. Investidores começavam a se dar conta de que, sem acesso à moeda forte, o Banco Central da Islândia seria incapaz de garantir as dívidas dos bancos que supervisionava. “Em vez de serem bancos grandes demais para falhar, eram grandes demais para serem salvos”, resume Steinsson.
Na semana seguinte, o Landsbanki se tornou a bola da vez. Na véspera da quebra, o primeiro-ministro foi à televisão avisar à nação que a tempestade começara a fustigar a ilha. Nessa mesma noite de 6 de outubro, quem, da Islândia, tentou se comunicar com o mundo via Skype recebeu a informação de que cartões de crédito islandeses não eram mais aceitos.
No dia 7 de outubro, quando o Landsbanki quebrou, levou junto o banco virtual Icesave. Estrangeiros que tentaram sacar seu dinheiro encontraram a seguinte mensagem na única página acessível do site: “No momento não estamos processando pedidos de depósito ou saque nas nossas contas on-line. Pedimos desculpas por qualquer inconveniente causado aos nossos clientes.”
Alistair Darling, ministro das Finanças da Inglaterra, ligou à tarde para seu colega islandês, Árni Mathiesen, e os dois tiveram uma conversa que se transformaria num dos capítulos mais contenciosos da crise. O jornal Financial Times conseguiu uma transcrição do diálogo. Darling queria saber se o governo da Islândia, que acabara de estatizar o Landsbanki, compensaria os 300 mil correntistas ingleses do Icesave. “Espero que sim”, respondeu Mathiesen, “mas não posso garantir isso agora. Estamos trabalhando dobrado para solucionar o problema. Não queremos ter esse peso sobre a nossa cabeça.” No dia seguinte, Darling declarou à BBC: “O governo da Islândia, acreditem ou não, me disse ontem que não tem a intenção de honrar suas obrigações conosco.”
Mathiesen não havia dito exatamente isso, mas o governo inglês decidiu não protelar. No dia 8, Gordon Brown anunciou que o Reino Unido poderia processar a Islândia, cujos bens em solo inglês estavam desde já congelados. O instrumento que dava legalidade ao congelamento era precisamente a lei antiterror do 11 de Setembro. O anúncio foi tão intempestivo que instalou a confusão: o que de fato havia sido congelado? Os bens de um banco, de um governo ou dos cidadãos?
Para piorar, as reservas em moeda estrangeira do Banco Central da Islândia estavam depositadas no BC inglês. Na percepção geral – e, no caso, percepção era tudo –, a Islândia não dispunha mais de um só euro ou dólar. A coroa despencou. Na frase de um morador de Reykjavík, “virou dinheiro de Banco Imobiliário“. Era como ter patacas no bolso.
A medida de Brown, drástica e espetaculosa, abafou uma notícia importante: o único banco islandês ainda de pé, o Kaupthing, conseguira naquele mesmo dia um empréstimo do governo sueco. O Kaupthing, o maior dos três bancos, a maior empresa da Islândia, a mais bem gerida, era até o momento um banco solvente, e a ajuda sueca lhe dava liquidez. Não adiantou. A Islândia já se tornara um pária do sistema financeiro internacional. O Kaupthing quebrou e foi nacionalizado no dia seguinte, 9 de outubro.
Em menos de uma semana o sistema financeiro da Islândia derreteu, e, com ele, a economia nacional. Foi uma débâcle à antiga, uma corrida bancária motivada pela desconfiança, sem o concurso de subprimes, derivativos ou qualquer outro instrumento da metafísica financeira contemporânea. Parecia que a Islândia havia sido fulminada pelo escorbuto.
No centro do desmanche estava o mesmo homem que, dezessete anos antes, decidira transformar a Islândia. Depois de entregar o cargo de primeiro-ministro e passar um ano como ministro das Relações Exteriores, Davíd Oddsson assumira o Banco Central. Na estranha cultura política islandesa, velhos políticos, depois de se aposentar, ganham a sinecura de uma diretoria do BC; elas são três: duas para as acomodações políticas e a terceira para um economista. “A diferença é que antigamente os dois políticos iam jogar golfe e deixavam o técnico trabalhar”, diz o jornalista Bergsteinn Sigurdsson. “Mas Oddsson decidiu virar banqueiro central.”
Meses antes da quebra, o Kaupthing percebeu a fragilidade do modelo e sugeriu publicar seu balanço em euros. Seria o primeiro passo para transferir suas operações para a Inglaterra, onde poderia contar com um banco central poderoso. Num jantar do Fundo Monetário Internacional, em Washington, ao ouvir esta proposta do presidente da instituição, Davíd Oddsson – como todo islandês, obstinadamente independente, e como todo homem de direita, cético das grandes burocracias transnacionais, como a União Européia – respondeu, sem se preocupar em não ser ouvido: “Se você fizer isso, eu te quebro em uma semana.
Na primeira quinzena de outubro, ao ver a coroa desmoronar, Oddsson decretou o câmbio fixo. Conseguiu sustentá-lo por um só dia. Anunciou em seguida um empréstimo – inexistente – feito pela Rússia. Reduziu a taxa de juros e duas semanas depois elevou-a de novo, seis pontos de uma só vez. Quem ainda tinha dúvidas de que a Islândia estava na mão de amadores convenceu-se de vez.
No final de outubro, o PIB da Islândia quando calculado em euro havia se contraído 65%; em coroa, 15%. Setenta e cinco por cento dos arquitetos foram demitidos, todas as construções estavam paralisadas. A venda de automóveis caiu 90% (algumas estatísticas indicam que nenhum carro foi vendido no mês de outubro). Corriam notícias – provavelmente infundadas, mas vivas no pesadelo nacional – de que até 80% das empresas quebrariam em seis meses. Cinquenta por cento dos jovens entre 18 e 24 anos pensavam em emigrar. Quem quisesse viajar, fosse qual fosse o motivo, inclusive negócios, tinha de pedir autorização ao Banco Central para comprar moeda estrangeira. Era quase impossível adquirir oficialmente mais de 700 euros.
Isso é o que todos sabiam. Mais assustador é o que não se sabia. Ao quebrar, o conjunto dos bancos carregava 75 bilhões de dólares nos balanços: 250 mil dólares para cada homem, mulher e criança da Islândia. Seja qual for o tamanho do passivo, ele agora pertence ao país, cujo PIB, em função da volatilidade da moeda, estaria entre 7,5 e 9 bilhões de dólares. Ninguém sabe ao certo a quanto chega a dívida do Icesave, mas há quem diga que supera o PIB. Se os credores – entre os quais 120 municípios ingleses, organizações filantrópicas, hospitais e universidades (só Cambridge depositou 20 milhões de dólares), além de centenas de milhares de pequenos correntistas – forçarem os respectivos governos a cobrar a dívida, a Islândia terá de passar adiante, apenas neste caso, o equivalente a um ano de tudo o que produz. A reparação exigida da Alemanha ao fim da Primeira Guerra, com o Tratado de Versalhes, não chegou a tanto: limitou-se a 85% do seu PIB.
Foi no início de novembro, enquanto o frio apertava e os dias se tornavam mais curtos, que surgiram as primeiras piadas. “Você sabe como salvar um especulador que está se afogando? Não? Ótimo.” “Como se livrar de um banqueiro que bate à sua porta? Basta pagar a pizza.” “Que nome se dá a 500 investidores no fundo do oceano? Um bom começo.”
Nos shoppings vazios os quiosques exibiam camisetas: Oddsson com bigode de Hitler, “Islândia = Banana Republic”, “A Islândia é o país mais quebrado do mundo”. Era um modo de não se desesperar. De fora, vinham notícias de islandeses hostilizados em cidades que antes os recebiam de lojas abertas. Em Copenhague, ao mostrar o passaporte, um islandês ouviu de um policial: “Devolva o meu dinheiro!” Em Londres, um outro foi convidado a se retirar de um restaurante. Lia-se na seção de cartas do jornal em inglês Reikjavík Grapevine: “Talvez seja uma boa idéia vender a Islândia a quem oferecer mais. Porque esta é a única coisa que esses criminosos ainda têm: o país deles.” E ainda: “É bom ver este país corrupto descer pelo ralo, levando junto seus criminosos, seus banqueiros e seus políticos. Temos de colonizar este país e pôr o povo para trabalhar, a salários de fome, claro. E depois de cem anos, quando a dívida estiver paga (inclusive os 9% que nos prometeram sobre os depósitos), a ilha poderia ser usada como campo de provas de uma nova bomba atômica.”
A palavra útrás foi substituída pela palavra kreppa: crise, recessão, aperto – como um espasmo ou um punho fechado. “Nasci em 1979, não sei o que são tempos difíceis”, comentou Bergsteinn. “Mas, agora, todo mundo sabe de alguém que perdeu o emprego. No jornal, aceitamos um corte no salário para não sermos despedidos. É assustador.”
“Não perdemos apenas dinheiro. Perdemos também o orgulho de sermos sensatos, justos, de não sermos vulgares”, diz Thorhallur Vilhjálmsson enquanto caminha pelas vigas de uma obra em construção à beira do oceano, no ponto mais bonito da orla. Ao fundo, coberto de neve, vê-se o Snaefellsjökull, o vulcão extinto por onde os personagens de Julio Verne chegaram ao centro da Terra. “Aqui seria o restaurante”, diz Thorhallur, apontando uma laje nua. Ele é o diretor de marketing do Centro de Convenções e Música da Islândia, o esqueleto mais conspícuo de Reykjavík.
Orçado em 220 milhões de dólares, foi concebido para ser o legado do proprietário do Landsbanki à Islândia. Resultou de um concurso internacional de arquitetura do qual participaram, entre outros, o francês Jean Nouvel e o inglês Norman Foster – venceu o dinamarquês Henning Larsen – e foi projetado para ser um edifício à altura dos prédios públicos que puseram no mapa cidades como Sydney e Bilbao. Os poliedros de vidro que se lançam sobre o mar, como um navio translúcido, seriam o destino das melhores orquestras e dos grandes artistas. Previa-se a inauguração para dezembro próximo.
A incorporadora quebrou no primeiro semestre do ano passado; o banco, seis meses depois. Sobraram Thorhallur, meia dúzia de operários e 28 mil metros quadrados de obra inacabada, além de um site no qual ela aparece concluída, ao lado do hotel cinco estrelas e da nova sede do Landsbanki que ocupariam o terreno contíguo, doado pelo governo. Muitos dizem que a imensa estrutura será o verdadeiro monumento ao fracasso da década. Não há como se esconder do esqueleto. Por causa de sua localização privilegiada, está sempre a duas esquinas do olho.
Thorhallur tem cerca de 40 anos, bochechas rosadas, cavanhaque e jeito de quem passou boa parte da vida ao ar livre. Num filme, faria o papel de lenhador. Descreve a obra com paixão. Imagina-a como a expressão do espírito islandês: um lugar democrático e para todos. “Para nós, ser islandês significava que éramos iguais. Não havia ricos nem pobres. Aí veio a demência, e uns trinta caras ficaram obscenamente ricos. Não estávamos acostumados a isso. Olha ali em cima”, ele aponta, indicando a parte superior das paredes da sala de concertos, cujo pé-direito passa dos 10 metros. “Eles queriam construir camarotes VIPs ali. Quando eu trazia pessoas para visitar a obra, nunca falava disso porque o conceito me constrangia.”
Um dos poucos operários ainda em serviço passa e diz olá num idioma que não é o islandês. Thorhallur prossegue: “E você sabe, há também a questão do zelo, do respeito ao trabalho bem feito. Os milionários não tinham disso. O dono do Landsbanki jamais mencionava os poloneses que estavam construindo esse prédio. Mas bate só nessa parede: é trabalho decente, sólido. Esses caras mereciam receber o crédito e foram esquecidos. Estamos com vergonha de nós mesmos.”
Thorhallur compreende a ambivalência do que diz. Útrás não era apenas uma idéia econômica, mas também a sensação de integrar um corpo maior do que a Islândia. Era uma possibilidade de diálogo com o mundo. A obra que ele defende com alegria reflete o viés arejado da expansão. “Eu sei, sem esses caras nós jamais teríamos a ambição de construir um prédio como esse. É o reverso da medalha. De todo modo, agora eles se foram, os camarotes VIPs foram riscados do projeto e eu sinto que ganhei minha Islândia de volta.” Abre um sorriso: “As pessoas vivem dizendo: Fuck the system! Pois bem, o sistema se fodeu sozinho. A revolução veio, e nós não tivemos de fazer nada.”
Um mês depois da tragédia, no entanto, Davíd Oddsson continuava no poder. Nem ele nem o governo caíram – e aos poucos os islandeses foram substituindo o choque pela raiva. “No princípio ficávamos em casa xingando a televisão. Somos uma nação de fazendeiros deslocados”, diz Thorhallur, “e é isso que os fazendeiros fazem: se fecham em casa e protestam em família. Os franceses vão para a rua porque vivem há séculos em cidades e se acostumaram. Agora, pela primeira vez na história, estamos furiosos. E decidimos ficar furiosos juntos.”
Os primeiros sinais de que a Islândia deixara de ser um país dócil foram anedóticos. Um banqueiro foi expulso de uma academia de ginástica. Outros acharam mais prudente se mudar para Londres. Os que ficaram decidiram imitar Oddsson e o primeiro-ministro Haarde: deixaram de andar na rua e contrataram guarda-costas, fato que os moradores de Reykjavík repetem à exaustão, com o espanto de quem narra a chegada de extraterrestres. “É realmente inédito!”, exclama Ísi, o produtor musical.
O pudor é um sentimento tanto mais forte quanto menor for o grupo. Na Islândia, quando se falha, falha-se diante de todos, paroquialmente. Todo drama acaba sendo familiar, como o cunhado patife que constrange os parentes ao aparecer na ceia de Natal. “Esse é um país muito pequeno, todos se conhecem. Qualquer ida ao supermercado se torna uma jornada épica rumo ao passado, porque é impossível não esbarrar num velho professor da escola ou num colega do pré-primário”, conta Thorhallur. “O primeiro-ministro andava pela rua, a gente acenava. Agora eles não podem nem entrar num restaurante.”
No dia 10 de outubro, um dia depois da quebra do último banco, 200 pessoas se reuniram na frente do Banco Central para reivindicar a destituição de Oddsson. Hördur Torfason era uma delas. Tomando o microfone, disse ao grupo: “Isso não é uma crise financeira, é uma crise política. O protesto não deveria ser aqui, mas na Praça do Parlamento.” Sem saber, ele se transformava, naquele instante, no líder das maiores manifestações da história islandesa. No sábado seguinte uma multidão se aglomerou diante do Parlamento para exigir a renúncia do governo.
Numa sexta-feira em fins de novembro, subi os três andares de um prédio numa rua quieta do centro histórico de Reykjavík. Hördur abriu a porta. Ele tem cerca de 50 anos e lembra o ator Daniel Craig. Seu apartamento é simples e branco; a única cor é o azul do chão. Hördur é cantor, compositor e ator. Define-se como “artista”, e talvez seja o que ainda hoje, em lugares como o bairro de Santa Teresa, no Rio, ou Mauá, na Serra da Mantiqueira, recebe o nome de trovador. Não tem televisão. Toma chá. É corajoso: na Islândia luterana do início dos anos 70, foi o primeiro homem a se declarar publicamente gay.
“Estamos falidos, eles brincaram com o nosso dinheiro”, começa, enquanto ferve água para mais um bule. “Morei na Dinamarca muito tempo, e a cada vez que voltava o choque era maior. A vulgaridade. A partir dos anos 60 a pobreza foi ficando para trás, mas na verdade continuamos modestos nas nossas preferências. Nos tornamos um dos países mais ricos do mundo, mas no início não se conseguia ver a riqueza. E então, nós a vimos. Era como se alguém que tivesse ganhado na loteria passasse a pular com os sacos de dinheiro na mão. Agora acabou. Estão todos com raiva e com vergonha.”
Ele se aproxima da ampla janela que se abre para a baía. À beira-mar, há um prédio inacabado. O guindaste imóvel lembra um bicho. Hördur diz: “Eles iam morar lá, nesses edifícios que desfiguraram a cidade. Esse esqueleto tem dezessete andares. Dizem que vão colocar apenas os vidros, para impedir que o vento destrua o resto. Essa geração não conheceu a adversidade, só o luxo. Eu os chamo de geração adormecida.”
As manifestações canalizaram o descontentamento. Vêm acontecendo todos os sábados, sempre às três da tarde, na frente do Parlamento. Estávamos na véspera do sétimo sábado. Sete dias antes, haviam comparecido 6 mil pessoas: 2% da população.
Às duas e meia da tarde, sob frio intenso e céu baixo, com nuvens carregadas, a Praça do Parlamento ainda estava relativamente vazia. Um homem dava entrevista a uma televisão da Letônia: “Dez sujeitos endividaram meus netos, é por isso que estou aqui. A democracia deixou de existir.”
A praça vai sendo tomada pela multidão e quase todos carregam cartazes. “Nós todos protestamos”, “Davíd [Oddsson] = Rei; Geir [Haarde] = Palhaço; Árni [Mathiesen] = Bobo da Corte”, “Abaixo o capitalismo”. Um homem de 50 anos, desempregado da construção civil, agita uma fotografia de Haarde na qual se lê: “Seu tempo acabou.” “Terrorista”, diz o homem, apontando a imagem do premiê. Um outro que perdeu o carro num acidente – o seguro era do Kaupthing – traz a fotografia de todo o conselho de administração do banco: “Estou aqui por causa deste, e deste, e deste, e deste.”
Uma bandinha começa a tocar marchas fúnebres e marciais. Escritores tomam o palco e lêem trechos de sagas em que as almas penadas e os canalhas são substituídos por políticos e milionários. Gordon Brown aparece vestido de Hitler. Um senhor traz um cartaz que ataca o Baugur, grupo que controla supermercados, jornais e bancos e cujo dono, Jón Ásgeir, talvez seja o mais notório dos neovikings, e, também, o único a permanecer na Islândia para enfrentar os protestos. Rente ao palco, um menino de 10 anos segura uma cartolina que pergunta em várias línguas: “Qual será o meu futuro?”
Às três em ponto, com cada palmo de chão ocupado, todos cantam o hino nacional. Hördur pega o microfone e grita: “Vocês querem derrubar o governo?” A resposta é estrondosa. “Davíd?” “Fora!” “Geir?” “Fora!” “Fora!” “Fora!” Ele passa a palavra a uma estudante de direito cujo rosto de ossos salientes lhe dá uma expressão firme. Com um discurso crescentemente inflamado, ela conclama a população a não pagar as dívidas. As veias de seu pescoço saltam e a voz se quebra sob o esforço dos gritos. Passados dez minutos, ela estica o braço em direção ao Parlamento e conclui, com raiva e desprezo incontidos: “Se dentro de uma semana vocês não saírem, haverá uma revolução!”
No mesmo instante, uma imensa faixa é desenrolada do alto de um prédio e, ruidosa, quase alcança o chão: nela, um lobo chamado FMI engole a Islândia e excreta as palavras educação, saúde, independência. Um rapaz ergue o punho no telhado. Do outro lado da praça, um segundo ativista aparece no balcão do Parlamento e pendura uma placa no gradil. Em letras vermelhas, lê-se: À VENDA. Por sobre as palavras, um carimbo: VENDIDO. O valor: 2,1 bilhões de dólares, a cifra que naquela semana o governo havia acordado com o FMI – era o primeiro país do mundo desenvolvido a recorrer à instituição em mais de trinta anos.
Alguém avisa que um militante havia sido preso na véspera. Alcançara o telhado do Parlamento, não para pendurar placas, mas para substituir a bandeira do país pelo pavilhão de um supermercado do grupo Baugur. O símbolo da rede é um porco. Em meio a gritos, Hördur propõe que as pessoas deixem a praça e se dirijam à chefatura de polícia, onde o rapaz está encarcerado. Cerca de 200 pessoas se põem a caminho.
Uma delas é Thór Jóhannesson, de 33?anos, estudante de literatura prestes a se licenciar como Professor Islandês. Ele está espantado com a dimensão dos protestos: “Quando Oddsson apoiou a invasão do Iraque (chegamos a mandar um soldado – na verdade, uma mulher), 80% dos islandeses se opunham, mas apenas uns 200 protestaram. O que está acontecendo é absolutamente novo. O estado das coisas é o pior possível. Os políticos estão ligados aos banqueiros, que estão ligados aos grandes grupos empresariais. Esse país é um grande incesto. A cada dia se parece mais com a Rússia, só que sem os cadáveres. Uns vinte ou trinta caras são os nossos oligarcas. Tudo foi dado a eles pelo governo, dos bancos às permissões de pesca. O direito de explorar as águas da Islândia pertence agora a quinze ou vinte companhias, só elas têm o direito de pescar comercialmente. E nós perdemos tudo: dinheiro, emprego e vergonha.”
A sede da polícia é um prédio de dois andares, com uma porta de dois panos à entrada. Os manifestantes tentam entrar, mas ela está trancada. Não se vê um único policial. A porta fechada parece uma tática quase infantil para sugerir que ninguém está em casa, impressão reforçada quando as luzes de dentro são apagadas. Volta e meia, percebe-se um vulto semi-agachado que cruza às pressas uma janela.
Começa a chover. Na rua, bloqueada ao trânsito, senhoras e senhores de bengala se juntam aos jovens. Quando um ônibus tenta forçar passagem, um menino de 15 anos abre os braços e se deixa cair sobre o vidro da frente, olho no olho do motorista. Um segundo ônibus tenta passar, e desta vez é uma senhora de meia-idade que se encosta no pára-choque do veículo. Indiferentes à chuva e à noite, todos gritam: “Út med Hauk! Inn med Geir!” Haukur é o rapaz preso; Geir é o primeiro-ministro: “Soltem Haukur! Prendam Geir!”
“Onde estão as pedras?”, Thór Jóhannesson pergunta. “Isso é típico da gentileza islandesa. Ficamos sempre a um passo da verdadeira revolta! Onde estão as pedras?!”, repete, agora aos gritos. Alguém atira um balão de tinta vermelha na fachada do prédio. Depois outro. Um rapaz avança e dá um chute na porta. Uma garota de rosto angelical também experimenta, e, em poucos minutos, dezenas de pessoas se revezam nos chutes.
Dentro, vêem-se as formas agitadas de homens de capacete e viseira. Surgem pedaços de madeira para fazer as vezes de aríete. A porta cede, enquanto um urro coletivo atravessa a rua. Um grupo de jovens se atira para o interior e é contido por gás lacrimogêneo. Pela lateral do prédio surge a tropa de choque: dezenove soldados desarmados que, aos empurrões, ocupam a entrada da delegacia. Diante deles, a um palmo de seus rostos, jovens começam a xingá-los: “Fascistas!” “Traidores!” Ovos são lançados. As gemas escorrem pelas viseiras, pelos ombros. Um rapaz estica o dedo médio e o encosta, obsceno, na viseira de um policial, repetindo em voz baixa, como um mantra: “Fuck you, fuck you, fuck you.”
Thór anda em meio à multidão apertando o braço de quem encontra pela frente: “É histórico! Se a gente conseguir umas cem pessoas para entrar à força e libertar o cara, isso significa que o governo acabou.” O boato de que a manifestação será transmitida ao vivo no jornal das 19 horas reacende o fogo das cento e tantas pessoas que agora, às 17h50, começam a esmorecer diante da chuva mais forte e da fleuma dos policiais. Durou pouco: os caminhões da TV logo se afastam. “Estão indo embora!”, grita Thór. “Isso não é televisão pública, é televisão de Estado!”
Quando tudo parecia levar ao impasse, a tropa de choque abre caminho e do fundo da delegacia surge um rapaz franzino, de capuz e mascarado, vestindo uma camisa do Iron Maiden e carregando uma mochila Nike. É o preso. Há um momento de choque, e então a linha de frente dos manifestantes se atira sobre o rapaz. Ele é erguido nas costas da multidão e, sem tirar a máscara, à moda do subcomandante Marcos, responde às perguntas dos repórteres.
18h10. A revolução não foi televisionada, mas quem esteve diante da sede da polícia nesta tarde gelada assistiu ao que um jornalista descreverá como “a mais eficiente manifestação da história islandesa”. Da multidão, ainda se ouve um grito: “Agora somos franceses!”
Na segunda-feira de manhã, a oposição – débil, sem força – tenta passar um voto de não-confiança ao governo. Fracassa.
Em Reykjavík só se fala do encontro que haverá à noite, no cinema da Universidade da Islândia. Um grupo de cidadãos convocara o governo a dar explicações. No palco, doze cadeiras, uma para cada ministro, e diante de cada uma, em letras garrafais, o nome do titular da pasta. Quem não comparecer se fará presente por sua ausência, pela força de uma cadeira vazia, de um nome. As pessoas discursarão diante dessas ausências.
Ninguém acredita que o governo compareça. Às 20 horas, não há um só lugar vazio no auditório para 1 800 pessoas. Há gente sentada nas escadas, rente às paredes, ao pé do palco. Do lado de fora, no foyer, diante de telões, outras mil se espremem para testemunhar esse lance teatral.
Espantosamente, um a um, os ministros surgem pela lateral do palco. Atordoados, sob vaias, caminham em direção às cadeiras e buscam seus nomes. Apenas quatro permanecem vazias. A que mais se destaca, a de Oddsson, exibe um DAVÍD imenso, em letras gordas e pretas. Até mesmo o primeiro-ministro Geir Haarde aparece. Seu lugar é ao lado de Oddsson, e durante as horas de agonia ele se apoiará várias vezes no espaldar da cadeira do político do qual não passa de uma sombra.
Era a primeira vez, desde o início da crise, que o governo se dispunha a dar alguma satisfação à sociedade. Fechara-se em si mesmo desde outubro, desconsiderara os protestos. Não dera entrevistas – e agora comparecia a uma audiência pública que seria transmitida ao vivo pela televisão. A estratégia das cadeiras vazias parecia ter surtido efeito.
Um jornalista comenta que o incidente na delegacia os obrigou a vir; só ali teriam percebido a gravidade da situação. Outros dizem ainda que já se decidira, caso eles não aparecessem, que os manifestantes se dividiriam em grupos para ir à casa de cada um deles. Não havia escapatória.
Ao contrário do esperado, a palavra não é dada imediatamente aos ministros. Um mestre-de-cerimônias toma o microfone, vira-se para os oito e diz: “Hoje vocês terão de ser honestos. E terão de responder com suas próprias palavras, não com discursos preparados por homens de marketing.” Irônico, faz gracejos e a platéia se põe a rir. Logo fica evidente que não se trata de uma sessão de esclarecimentos, mas de humilhação pública. Orador após orador sobe ao palco para ler discursos preparados de antemão. Um professor de economia exige a demissão sumária dos membros de conselho dos bancos (apenas os presidentes-executivos haviam perdido o emprego), proposta recebida com palmas e bravos.
Haarde assiste a tudo com a cabeça enterrada nos ombros, olhos pregados na platéia, desafiador. É traído em seu nervosismo pelo pé que não cessa de tamborilar. Um empresário declara que “o sistema político deve ser purgado, o que só acontecerá com novas eleições”. Pede, explicitamente, a renúncia do governo. É ovacionado de pé. Polidamente, até o primeiro-ministro bate palmas. Uma cientista política declara que a Islândia será doravante conhecida por três palavras: saga, gêiser e kreppa. E acrescenta, referindo-se diretamente aos oito homens sentados a um metro de distância: “Se vocês não admitirem que os protestos são legítimos e não dialogarem com os manifestantes, poderá haver distúrbios e violência na Islândia.” Não são jovens que confrontam o governo, mas acadêmicos, profissionais liberais, empresários, homens de terno e gravata, mulheres de tailleur. Uma jovem desempregada toma o microfone e, com fúria indisfarçável, vira-se para o primeiro-ministro e ordena: “Geir, renuncie!”
Noventa minutos depois de iniciada a sessão, os oito ministros ainda permanecem mudos, alguns de olhos no chão. Finalmente alguém entregará o microfone a Haarde para que ele responda: “Por que vocês não renunciam?” O primeiro-ministro explica que o momento é grave demais. Há uma operação de salvamento em curso, negociações complexas com o Reino Unido e o FMI, e uma eleição significaria uma ruptura desse processo. A ministra das Relações Exteriores se manifesta: “Talvez vocês que estão aqui não representem a maioria do povo islandês.” É a maior vaia da noite. No dia seguinte, o líder da oposição dirá que apenas a ministra da Educação teve a decência de se desculpar pela tragédia.
A esquizofrenia política era evidente. O primeiro-ministro batia palmas para a demissão de si próprio. A ministra que desafiou o público havia declarado, dias antes, que se não estivesse no governo também iria para a rua protestar. O ministro do Comércio pediu a demissão de Oddsson. E o FMI, chamado às pressas, se apresentou para salvar um país que até então seguira a mais ortodoxa política de liberalização econômica.
Às dez em ponto a sessão foi encerrada.
O gabinete de Steingrímur Sigfússon, líder da Esquerda Verde, o maior partido de oposição, está instalado no 2º andar de uma pequena casa atrás do Parlamento. Sigfússon lembra um velho militante de 68 – cavanhaque, sandália e meias. Entre uma frase e outra, deita uma pitada de rapé na concha da mão e aspira. Tem pedido a saída do primeiro-ministro, mas, entre o governo a que se opõe e o mundo que deu as costas ao seu país, fica com o governo.
“A crise chegou de forma tão violenta que se transformou em force majeur, um conceito do direito internacional que se aplica a países que sofrem guerras ou crises sistêmicas. É exatamente o que aconteceu aqui”, enfatiza. Nesses casos, suspendem-se as leis vigentes. “Qual era o nosso dever? Quanto devíamos pagar? Precisávamos dos tribunais para arbitrar, mas eles não deixaram. No momento em que a nossa moeda desapareceu e deixamos de ter dinheiro até para importar comida, a Inglaterra e a Holanda bloquearam o acordo com o FMI e não o aceitariam enquanto não déssemos garantias de que o dinheiro dos depositantes deles seria devolvido. Ficamos reféns desses países. Sou crítico do FMI. Perdemos nossa independência, eles vão ditar nossas políticas públicas; o governo já anunciou um corte de 10% no serviço de saúde. Mas admito que, depois da catástrofe de outubro, tornou-se inevitável ir ao Fundo. Era isso ou voltar à década de 30.”
Sigfússon acredita que parte da calamidade decorre de a quebra dos bancos ter ocorrido no momento mais crítico da crise mundial. “Em outubro, quando Brown declarou que éramos terroristas, o sistema já estava completamente bambo. O sinal foi muito claro: ‘Se algum país ou banco estiver pensando em dar calote, é melhor reconsiderar. Vejam o que aconteceu com a Islândia.’ Éramos ideais para servir de exemplo: um país que podia ser destruído sem causar grande transtorno. Fomos as Falklands de Gordon Brown.”
As manifestações populares o assustam. “Eu realmente preferiria que superássemos essa crise de modo pacífico.” Ao encerrarmos a conversa, ele conclui com espanto na voz: “Essas manifestações são de fato históricas. Nós não somos franceses.”
Do lado de fora, sob a chuva, um grupo de mulheres se dá as mãos e cerca a sede do governo, onde Geir Haarde dá expediente. À beira da calçada, sem grades, o chalé lembra mais um restaurante rústico do que um epicentro do poder. Os funcionários que deixam a casa pela única porta da frente se espremem entre os poucos degraus e o círculo de mulheres. Não há polícia. A dois passos, uma ótica substituiu os óculos da vitrine por um imenso cartaz: “Obrigado, Gordon, por destruir nossa economia.”
“Como você veio parar aqui?”, pergunto a Luciano Dutra, 35?anos, funcionário do INSS islandês. Ele sorri: “Como quase tudo no Brasil, a culpa foi de um argentino.” Jorge Luis Borges. Ao abandonar o curso de letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, resolveu traduzir os sonetos de Borges e se deparou com a paixão do escritor pelas sagas islandesas. Constatando não haver traduções delas para o português, candidatou-se a um bacharelado na Universidade da Islândia. Chegou em 2002. Aprendeu o idioma, concluiu o curso e começou a tradução das sagas, “um trabalho de mais ou menos dez anos”.
“Este talvez seja um dos países mais extrativistas do mundo”, observa. “Pensa bem: pesca e energia. Ninguém cuida de cardumes nem planta energia. Aí, dez anos atrás, eles decidiram mudar tudo. Em menos de uma geração, migraram de uma economia baseada em recursos naturais para uma economia de serviços. Não deu certo.”
Uma das funções de Dutra é processar certificados de seguridade social européia para pessoas que estejam pensando em emigrar. “Apareciam umas vinte pessoas por semana pedindo esses certificados. No último mês, foram mais de 200. Há um movimento de êxodo em massa. Ouvi falar de dois islandeses que foram para a Polônia trabalhar em olarias para mandar euros para as famílias aqui.”
É o reverso de tudo, como se a Islândia tivesse passado para o outro lado do espelho. No dia 21 de novembro os jornais publicaram a notícia de que haveria uma feira de empregos na prefeitura. No primeiro dia, mais de 2 mil pessoas se apertavam num espaço pequeno demais para abrigá-las. Jovens e velhos, homens e mulheres, trabalhadores braçais e universitários disputavam folhetos distribuídos pelos expositores: “Viver e trabalhar na Lituânia”, “Informações gerais sobre o trabalho na Holanda”, “Engenheiros para o Mar do Norte”.
Um grupo de portugueses pensa em se transferir para a Noruega, depois de terem sido todos despedidos de uma empresa de calefação. “Cheguei aqui há dois anos, era o paraíso”, conta o marceneiro José de Souza. Trouxe a mulher, o filho, o sogro, o cunhado, o amigo do cunhado. “Tinha trabalho para todo lado. Agora acabou. Meu último salário vai ser o de dezembro.” Seu colega, o brasileiro Adilson Mendanha, mineiro de Ipatinga, está na Islândia há sete anos. “Esse país foi sensacional. Cheguei a mandar de 15 a 17 mil reais por mês para o Brasil. Comprei uma casa enorme e tenho um jipe Cherokee, mas agora devo deixar a Islândia em abril.”
Diante da barraca da Lituânia, um islandês pergunta: “Quais são as áreas?” A representante responde: “Balconista, cozinheiro, garçom, motorista de empilhadeira.” O olho do rapaz acende: “Motorista de ônibus.?” “Também, mas você precisa falar a língua.” Ele parte desanimado. Uma empresa escandinava de petróleo oferece 300 vagas para engenheiros. Em menos de duas horas já recebeu trinta e poucos currículos, muitos escritos ali mesmo, com apoio da coxa ou da parede.
“Foi húbris, excesso”, admite Árni Mathiesen, o ministro das Finanças, na sede do ministério – uma casa extremamente acanhada, como tudo na Islândia. Seu gabinete é tão estreito que as cadeiras da mesa de reunião batem constantemente contra a parede. Ao ouvir um “Como vai?”, respondeu: “Aguentando firme.” Concede que nem ele sabe quanto deve o país. “Só daqui a três ou quatro anos, quando terminarmos o processo de liquidação dos bancos, saberemos o tamanho da nossa dívida. E se não conseguirmos passá-la adiante, reprivatizando os bancos, estaremos na rua da amargura.”
Mathiesen parece aliviado com o fim dos anos de delírio. “Olha, antes de tudo isso, nós levávamos uma vida boa aqui”, lembra, referindo-se à época em que a Islândia vivia dos seus cardumes e ele era o ministro da Pesca. Foi mais um a migrar do setor pesqueiro para as finanças.
Ísi Thórhallson, o produtor musical, traz à tona a pergunta que angustia o país: o que significará ser islandês depois da hecatombe? “Agora que deixamos de ser cool, nos demos conta de que não passamos de uma ilha no Mar do Norte. Nos últimos dez anos surgiram muitas oportunidades, mas na hora em que o barco afundou, nós dissemos: ‘Fodam-se os estrangeiros!’ O governo só garantiu os depósitos em coroas islandesas. Então, sim, roubamos. Eles depositaram nos nossos bancos e no fim das contas não pudemos pagar. Não éramos tão bons quanto pensávamos. Os milionários agora viraram vilões, mas antes eram heróis. Ser banqueiro era cool. Ninguém parou para pensar: ‘Por que diabos?’ Não era melhor eles serem chatos? A gente deveria achar mais sensato confiar dinheiro a um cara prudente, não a um porra-louca. Mas não, eles eram cool. Ninguém desconfiou, e muito menos criticou. Nem os artistas. Eles também estavam no bolso dos banqueiros. Recebiam patrocínio, eram contratados para tocar. Foi uma festa. Quebramos a cara, todos nós.”
O professor Gudmundur Jónsson é cauteloso na hora de atribuir responsabilidades. “Reluto em dizer que temos todos a mesma parcela de culpa. É absurdo achar que o islandês comum é responsável pela crise. Faltou prudência, mas não é esta a causa do que nos aconteceu.” De fato, a dívida dos islandeses não se compara à dos bancos. Ainda assim, nas ruas nem sempre fica claro se as pessoas estão protestando contra a farra ou contra o fim dela.
O país vive o dilema de querer ou não ser novamente a Islândia de modestas expectativas. “Há o risco de nos sentirmos irrelevantes e provincianos”, disse Jón Steinsson, de Columbia. Até Hördur Torfason, que todos os sábados comanda a resistência ao governo, vive o conflito: “Há 33 anos, quando eu disse publicamente que era gay, o mundo veio abaixo. Isso aqui era a Idade Média. Por isso passei anos na Dinamarca.” Hördur fugiu da velha Islândia e protesta contra a nova.
Björn Hrafnsson, um jornalista especializado em economia, não tem dúvida. Num café na Praça do Parlamento ele explica: “Ninguém mais quer ser um país de pescadores. Estamos assustados, com raiva, mas não queremos voltar ao passado. Em dois ou três anos, teremos de reprivatizar os bancos e fazer tudo de novo.” Será difícil. Kristján Davídsson, um executivo do Glitnir, despedido em outubro e recontratado semanas depois para liquidar o banco, me disse no mesmo dia em que decretou oficialmente a moratória da instituição: “Os bancos serão reprivatizados, mas, por conta da falta de confiança, não teremos acesso a grandes linhas de crédito. Seremos bancos pequenos, que emprestarão apenas o que os islandeses forem capazes de poupar. Com isso não se vai muito longe. Não construiremos mais nada.” Um diplomata estrangeiro resumiu: “Eles vão ter de pescar muito.”
Para muita gente, a primeira salva de útrás foi dada em dezembro de 1998, quando o Parlamento cedeu à pressão do governo de Oddsson e aprovou uma lei espantosa. Não se tratava da privatização de um serviço público, mas do patrimônio genético islandês.
Sendo tão isolada, a população da Islândia descende dos mesmos vikings que desembarcaram ali no século IX. Todo islandês é capaz de montar sua árvore genealógica até aqueles primeiros homens e mulheres. Essa herança comum é um dos grandes tesouros da medicina moderna. Doenças podem ser rastreadas ao longo de gerações, e suas causas genéticas, se existirem, identificadas. Todo câncer de mama na Islândia tem origem numa única mutação genética ocorrida no século XVI, no DNA de um monge chamado Einar.
Em 1996, um neurologista e professor de medicina de Harvard fundou uma empresa habilitada a usar esse imenso banco de dados genéticos para identificar patologias e desenvolver tratamentos. Fez apenas uma exigência ao governo: que a propriedade intelectual das descobertas fosse sua. Dois anos depois o governo aprovou o projeto, e cedeu então à DECODE, a empresa fundada por Kári Stefánsson, o direito não só de explorar os prontuários médicos do serviço nacional de saúde – meticulosamente preservados desde 1915 –, mas sobretudo de se apropriar, para fins científicos e comerciais, das informações genéticas da população. Foi a primeira vez na história que se concedeu esse direito a uma empresa.
A comunidade científica se opôs violentamente. Já a população islandesa, ou 95% dela, cumprindo um dever que julgava cívico, respondeu à convocação da DECODE e doou voluntariamente o seu sangue. A empresa possui hoje um banco de dados com a história familiar de praticamente todas as 800 mil almas que já viveram na Islândia. Nos últimos anos, 70% das descobertas que relacionam uma mutação genética a determinada patologia – de esquizofrenia a câncer de pulmão, de dependência da nicotina a diabetes – foram feitas nos laboratórios da empresa, em Reykjavík.
Kári Stefánsson trabalha numa sala imensa. Da sua mesa, através das janelas amplas, vê as montanhas geladas que cercam a baía de Reykjavík. Com mais de 1,90m, vestido de preto, em contraste absoluto com o branco alvíssimo de sua barba e do cabelo viking, tem perto de 60 anos e a vitalidade de um touro. Parece ter atravessado a vida com a certeza de que foi sempre o animal mais belo e inteligente da sala. Dizem que é o homem mais brilhante da Islândia, opinião que não se preocupa em refutar. É simultaneamente agressivo (“Você é de fato tão mau jornalista quanto parece?”) e sedutor (“Ninguém compreendeu melhor o que está se passando aqui”), uma combinação não tão rara em homens que gostam de ser temidos e temem não ser gostados. Vaidoso de sua inteligência e de sua erudição, é capaz de interromper uma resposta para recitar, na íntegra, poemas de Auden ou de Octavio Paz.
“Não posso responder”, diz com condescendência mal disfarçada, ao ser indagado se a empresa que fundou deu início ao processo desenfreado de desregulamentação. “Não posso responder pelo simples fato de que a pergunta não faz sentido e é uma absoluta tolice. Como me comparar a essa gente que destruiu o meu país? Eu investi na Islândia. Eles investiram fora, tomando dinheiro emprestado e dando o povo islandês como garantia. Eu trouxe cientistas para cá, transformei este lugar no laboratório genético mais importante do mundo. E eles? O que deixaram?”
Boa parte dos islandeses perdeu dinheiro com Stefánsson. Quando a DECODE lançou ações na Nasdaq – foi a primeira companhia islandesa a abrir o capital numa bolsa estrangeira –, o governo incentivou toda a população a investir nela. Era uma atitude patriótica. Lançadas a 30 dólares, as ações em pouco tempo caíram para vinte e hoje valem menos de um dólar. A empresa está à beira da ruína. Em outubro, não cumpriu todas as suas obrigações junto aos credores. O tempo de maturação de uma empresa de biotecnologia é longuíssimo, e a crise mundial secou o fluxo de investimentos.
Em sua imensa mesa, olhando pelas enormes janelas, Stefánsson não dá sinais da derrocada. Talvez imagine que venceu como cientista e perdeu apenas como empreendedor. Tem ojeriza a ser comparado aos outros – aos igualmente derrotados. “Quando Auden veio aqui, quase não havia o que comer. Ele fala disso. Eu vivia com fome até mais ou menos o período de Natal, quando as coisas melhoravam um pouco. Meus heróis eram os antigos poetas. Éramos isto: uma nação que lia os poetas. Nessa última década, viramos uma nação de especuladores. Eles eram desinteressantes, repulsivos e extremamente vulgares. Agora a vulgaridade acabou. Ninguém passará fome. Vamos nos ajudar, como sempre fizemos, e sairemos desta situação como um povo muito melhor. Espero estar aqui para ver.”
Sabendo que seu interlocutor precisa ir embora, Kári Stefánsson se levanta e estende a mão: “Boa viagem.” No caminho até o aeroporto passo diante de no mínimo setenta guindastes, todos imóveis, pairando sobre bairros fantasmas. Não era feriado.