O governo quer comprar imagens de satélite da Amazônia em alta resolução para orientar os fiscais, embora o Ibama não dê conta de atender aos milhares de alertas de desmatamento que recebe todo ano de quatro sistemas de monitoramento. CRÉDITO: PLANET LABS INC.
A guerra contra o termômetro
Quando chegam más notícias sobre o desmatamento, os governos atacam o emissário
Bernardo Esteves | Edição 156, Setembro 2019
As imagens de satélite acusavam um aumento desenfreado do desmatamento na Amazônia. Em face do número alarmante, autoridades trataram de desqualificar a instituição responsável por calcular a perda de florestas, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. “O Inpe está mentindo a serviço de alguém”, disparou um governante em entrevista ao Estado de S. Paulo.
A frase caberia perfeitamente na boca do presidente Jair Bolsonaro, que no começo de agosto, após questionar dados de desmatamento divulgados na imprensa, pediu a cabeça do diretor do Inpe, o físico Ricardo Galvão. Daquela outra vez, porém, a acusação veio do então governador de Mato Grosso, o produtor rural Blairo Maggi, à época no PR. O calendário marcava janeiro de 2008; o presidente era Luiz Inácio Lula da Silva, e a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva.
Um plano lançado pelo governo em 2004 havia reduzido a perda de floresta em quase 60% em apenas três anos, mas as motosserras e correntões estavam de volta à Amazônia. Quem flagrou a virada foi o Deter, um sistema do Inpe implantado naquele ano e que desde então monitora o desmatamento em tempo real, enviando alertas diários para as autoridades ambientais do governo federal e dos estados.
O número de alertas disparou no Pará, em Rondônia e principalmente no Mato Grosso de Blairo Maggi. O governador discordou dos dados do Inpe e mobilizou uma equipe de sua Secretaria do Meio Ambiente para contestá-los. Alegou que, só no município de Marcelândia, a área que de fato tinha sido desmatada entre abril e setembro seria oito vezes menor do que dizia o Inpe. Alinhado com Maggi, Lula afirmou à imprensa que havia “alarde” na divulgação dos dados do Inpe, e determinou que fossem reavaliados.
Foi Marina Silva quem lhe propôs um tira-teima: por que não usar um helicóptero do Exército para sobrevoar as áreas com divergências? Preparou-se então um voo do qual participaram também ministros como Tarso Genro, da Justiça, e Gilberto Câmara, então diretor do Inpe, além de fiscais ambientais e policiais federais. O grupo decolou na tarde de 30 de janeiro da Base Aérea do Cachimbo, no sul do Pará. Voou “num helicóptero Jaguar enorme, com capacidade para umas trinta pessoas”, conforme o relato do biólogo João Paulo Capobianco, ambientalista que à época era secretário–executivo e comandava o combate ao desmatamento no Ministério do Meio Ambiente. Maggi embarcou em Mato Grosso e sobrevoou junto com o grupo áreas questionadas por sua equipe.
Ficou difícil sustentar que não havia desmatamento. “Quando chegamos à região de Marcelândia foi um choque”, contou Capobianco. “Estava tudo queimado, foi das coisas mais impressionantes que vivi.” Maggi não quis dar entrevista para esta reportagem. Na época, o governador alegou que se tratava de queimadas antigas, mas Capobianco ainda se lembra do cheiro de fuligem que sentiu. “Foi dito e feito, o Inpe estava certo”, disse Marina Silva à piauí, ao evocar o episódio numa entrevista recente. “Salvaguardamos a instituição.”
O voo encerrou a controvérsia, mas não conteve o avanço do desmatamento, que naquele ano subiu 11% na Amazônia. Diante da alta apontada pelo Deter, o governo baixou um decreto com medidas que cortavam o oxigênio dos contraventores. Concentrou a fiscalização nos municípios com as maiores áreas derrubadas, corresponsabilizou os compradores de produtos cultivados em terras desflorestadas e cortou o crédito rural para os produtores que estivessem em desacordo com a lei ambiental.
Blairo Maggi perdeu o cabo de guerra com Marina Silva, mas seguiu pressionando Lula para modificar o decreto, que era visto como prejudicial para o agronegócio. A ministra não abriu mão do texto original. “A única coisa que poderia conter a pressão sobre o governo para revogar as medidas era um fato político que mobilizasse a opinião pública”, afirmou Marina. Ela avaliou que sua demissão poderia ser esse fato, e entregou o cargo a Lula em maio de 2008. “Eu não ia ficar esquentando cadeira. Como disse em 2006, perco o pescoço, mas não perco o juízo.” O cálculo se mostrou acertado. O sucessor, Carlos Minc, condicionou sua ida ao governo à manutenção do decreto, e Lula não o alterou.
O episódio por pouco não custou ao Inpe a atribuição de medir o desmatamento, como contou Gilberto Câmara, cientista da computação que hoje está à frente do secretariado do Grupo de Observações da Terra, um órgão técnico sediado em Genebra que reúne representantes de mais de cem países. Em meio à crise de 2008, Lula disse a Câmara que estava pensando em tirar o monitoramento do Inpe, “porque está dando muito problema”. Câmara respondeu que o movimento poderia colocar em xeque a credibilidade dos números. “Quem vai acreditar no dado que vai sair?” Lula refletiu e desistiu da mudança cogitada. “Mas não me cause mais problemas”, acrescentou.
Por volta do ano 69 a.C., o rei Tigranes, da Armênia, recebeu de um emissário a notícia de que as tropas da República Romana, chefiadas pelo cônsul Lúcio Licínio Lúculo, estavam prestes a invadir seus domínios. O monarca ficou tão desgostoso que mandou decapitar o portador da má notícia. A história, narrada pelo historiador Plutarco, talvez seja o mais antigo relato sobre um estadista que, ao ouvir um anúncio desagradável, decide voltar sua fúria contra o mensageiro. Não faltou quem evocasse essa imagem quando o presidente Jair Bolsonaro mandou demitir Galvão.
Como em 2008, o mensageiro da vez trazia dados coletados pelo Deter, que apontou a explosão do desmatamento na Amazônia nos primeiros meses do governo Bolsonaro. A imprensa noticiou que a área desmatada na Amazônia tinha aumentado 34% em maio, 88% em junho e 278% em julho, na comparação com os mesmos meses do ano passado. Bolsonaro questionou a veracidade dos números e reclamou que deveria ter tido acesso antecipado aos dados. “Não posso ser pego de calças curtas.” Os números estavam disponíveis na plataforma TerraBrasilis, que o Inpe mantém na internet. São enviados primeiro às autoridades ambientais, que recebem alertas diários, e só cinco dias depois são abertos ao público.
Os dados não eram “mentirosos”, como o presidente alegou em julho a jornalistas estrangeiros, nem “manipulados”, conforme afirmara antes o general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional. Galvão e seus colegas do Inpe tampouco estavam agindo “a serviço de alguma ONG”, como afirmou o presidente. Mas a dúvida foi lançada. Um artigo publicado em julho no site de jornalismo ambiental Mongabay argumentou que exageros na imprensa dão a Bolsonaro mais munição em sua guerra contra o jornalismo, a ciência e o meio ambiente.
Mas num ponto de sua crítica Bolsonaro tinha razão: não se deve comparar, com dados do Deter, o desmatamento mês a mês, pois a ocorrência de nuvens pode comprometer a observação do território pelo satélite. O sistema foi desenvolvido para apontar com agilidade as áreas que estão sendo desmatadas. Para calcular com precisão a área derrubada, o Inpe tem outro sistema de monitoramento, o Prodes, que usa imagens de maior resolução e determina a taxa anual de desmatamento. “A comparação correta a se fazer com o Deter é entre o desmatamento acumulado ao longo do ano e o mesmo período no ano anterior”, afirmou Câmara, um dos criadores do sistema.
Os números são negativos para o governo mesmo se adotarmos a recomendação de Câmara. De acordo com o Deter, o desmatamento acumulado entre agosto de 2018 e julho de 2019 aumentou 49,5% em relação ao mesmo período um ano antes. A taxa anual calculada pelo sistema Prodes, a ser anunciada até dezembro, trará uma estimativa mais precisa da área desmatada.
“Vai aumentar, e vai aumentar mais no futuro”, afirmou o engenheiro agrônomo Adalberto Veríssimo, cofundador da ONG Imazon. “Não estamos vendo o pior, ainda não explodiu.” Veríssimo contou que têm surgido focos de desmatamento em áreas de floresta antes intocadas, como no extremo Oeste do Pará ou na Calha Norte do Rio Amazonas. “Para combater esse desmatamento vai ser preciso mobilizar muito mais equipes e helicópteros. Monitorar é a parte fácil.”
O Imazon, sediado em Belém, desenvolveu um programa independente de monitoramento por satélite da Amazônia, o SAD. Os dados do sistema confirmam a tendência de alta apontada pelo Deter, mas num patamar mais modesto: o desmatamento teria aumentado 15% entre o período que vai de agosto de 2018 a julho de 2019 e o mesmo intervalo um ano antes. Para o ambientalista, questionar os sistemas de monitoramento acaba desviando tempo e energia que seriam mais bem empenhados em atividades de combate ao problema. “Ficamos discutindo mapas e termômetros sem ver que de fato tem febre e tem infecção.”
A causa da infecção, continuou Veríssimo, está na atuação de garimpeiros, madeireiros e grileiros à margem da lei. “Na Amazônia, o desmatamento não é tão associado à atividade produtiva, está mais ligado ao crime organizado.” Por isso, argumentou, medidas que funcionaram no passado, como o corte de financiamento para produtores que desmatam, serão inócuos contra agentes que já estão na ilegalidade. “O Brasil está contratando um problema muito sério.”
É difícil não enxergar no crescente desmatamento observado pelo Deter a impressão digital do Capitão Motosserra, como Jair Bolsonaro se definiu em tom irônico a jornalistas, ao falar da imagem negativa que dele têm os ambientalistas. O presidente desautorizou fiscais que combatem o desmatamento, quer reduzir unidades de conservação e abrir terras indígenas para mineração. Comprou briga com Noruega e Alemanha, os dois principais doadores de um fundo bilionário que financia iniciativas para manter a floresta em pé. Juntos, os dois países cancelaram quase 300 milhões de reais em doações para projetos na Amazônia.
O discurso de Bolsonaro contra a “indústria das multas” estimula o crime ambiental e encontrou eco entre seus apoiadores e aliados políticos. No Acre, os desmatadores ganharam o aval do próprio governador, Gladson Cameli (PP), que determinou que fossem ignoradas as infrações emitidas pelo órgão ambiental estadual. “Não paguem nenhuma multa, porque quem está mandando agora sou eu”, disse o governador. “Não vou permitir que venham prejudicar quem quer trabalhar.”
O ministro do Meio Ambiente é o advogado Ricardo Salles, um ex-diretor da Sociedade Rural Brasileira condenado em primeira instância por improbidade administrativa quando foi secretário do Meio Ambiente em São Paulo. No Ministério, Salles desmantelou a secretaria que atuava contra o desmatamento e exonerou a maior parte dos diretores regionais do Ibama, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, responsável pela fiscalização ambiental. O número de multas por desmatamento e outros crimes ambientais contra a flora aplicadas nos estados da Amazônia Legal entre janeiro e agosto deste ano caiu 42% em relação ao mesmo período em 2018. É o menor valor para esse intervalo desde 2010.
Salles não quis dar entrevista para esta reportagem; quando entrevistado em maio para outra matéria (“O meio ambiente como estorvo”, piauí_153, junho), o ministro negou que estivesse desarticulando as políticas ambientais do país, jogou no colo dos antecessores a culpa pelo sucateamento da fiscalização e atribuiu as críticas em relação à sua gestão às ONGs que perderam acesso aos recursos do governo.
O Deter foi um dos trunfos do plano de prevenção e combate ao desmatamento na Amazônia do governo Lula. Um dos objetivos do programa desenvolvido em 2004 era intensificar a fiscalização no campo. O Ibama dispunha de um efetivo de agentes recém-contratados por concurso, mas ignorava as áreas onde eles eram mais necessários. Os números anuais do Prodes forneciam, desde 1989, um retrato detalhado das regiões em que ocorrera desmatamento, mas quando chegavam às mãos dos fiscais já era tarde demais para agir. “O Ibama trabalhava às cegas na Amazônia”, disse João Paulo Capobianco.
O Ministério do Meio Ambiente encomendou então ao Inpe um serviço que mostrasse em tempo real as áreas que estavam sendo desmatadas. Seis meses depois, já havia uma primeira versão do novo sistema, ainda em fase de testes. Os alertas eram divulgados para o público trinta dias depois de processados pelo Inpe. “Os dados estavam lá para qualquer cidadão ver, virou sexo explícito”, comparou Capobianco. Marina Silva fez questão de deixar abertos os dados. “Eu não queria ficar com o pires na mão diante do ministro da Fazenda sabendo que o mundo estava se acabando”, justificou a ex-ministra. “Queria que fôssemos constrangidos.”
O Deter deu ao governo um conhecimento inédito sobre o território brasileiro. “Acabou o poder discricionário do funcionário do Ibama e estreitou radicalmente a margem de manobra para corrupção, leniência e improbidade administrativa”, disse Capobianco. Com o aperto na fiscalização e outras ações do governo, como a criação de unidades de conservação e o estímulo a atividades econômicas sustentáveis, o desmatamento da Amazônia caiu 84% em oito anos. “O Deter foi o principal elemento que viabilizou esse conjunto de políticas públicas”, afirmou o ambientalista. Em 2004, foram derrubados quase 28 mil km2 de floresta; em 2012, o índice caiu para 4,6 mil km2. O desmatamento aumentou 65% desde então: a taxa de 2018 – 7,5 mil km2 – foi a mais alta dos últimos dez anos.
A princípio, o Deter usava imagens captadas por um sensor a bordo do satélite Terra, lançado pela Nasa, a agência espacial norte-americana. As imagens não tinham resolução muito alta (cada pixel representa um quadrado de 250 por 250 metros) e permitiam apontar desmatamentos apenas em áreas superiores a 25 hectares (o equivalente a 25 campos de futebol). Já o Prodes, em comparação, usa imagens de melhor resolução feitas por outro satélite da Nasa, o Landsat-8, que permitem apontar cortes em áreas a partir de 6,25 hectares (cada pixel representa um quadrado de 30 por 30 metros).
A resolução limitada não impediu que o Deter orientasse as ações de fiscalização nos anos de maior redução dos cortes ilegais na Amazônia. “Naquele momento os desmatamentos aconteciam em áreas muito grandes, quase sempre maiores que 100 hectares”, disse o pesquisador Cláudio Almeida, coordenador do monitoramento da Amazônia no Inpe, numa palestra realizada em agosto. Com o tempo, os contraventores se adaptaram e passaram a derrubar áreas menores, que o Deter não flagrava. “Nosso trabalho fez avançar a técnica do desmatamento”, afirmou Almeida, um agrônomo especializado em sensoriamento remoto.
O Inpe contra-atacou em 2015, quando o Deter passou a usar as imagens de melhor resolução do CBERS-4, um satélite que o Brasil construiu em parceria com a China, num programa de cooperação que já tem 31 anos. As regiões monitoradas são fotografadas uma vez a cada cinco dias, e agora o sistema consegue identificar áreas derrubadas a partir de 3 hectares. “Ninguém desmata áreas pequenas assim na floresta”, disse Almeida na palestra. “O cara não se dá ao trabalho de montar uma equipe, botar motosserra e trator.” O cientista contou que a área média desmatada no Pará tem 18 hectares. Com a nova resolução, o Deter foi capaz de identificar mais de 95% das derrubadas de árvores naquele estado em 2018.
O Inpe não atendeu, por problemas de agenda, o pedido da piauí para visitar o centro onde são analisadas as imagens de desmatamento da Amazônia. O diretor interino não estava disponível para entrevista, e questões enviadas à assessoria de imprensa não foram respondidas.
No final dos anos 1980, a devastação da Amazônia chamou a atenção da imprensa internacional e se tornou objeto de preocupação do mundo. A floresta queimava a olhos vistos, mas ninguém sabia ao certo o tamanho do estrago. Até então, o Brasil só tinha feito dois levantamentos completos do desmatamento em seu território, em 1975 e 1978, além de estudos de escopo mais limitado. Em 1989, um relatório elaborado por Dennis Mahar, economista sênior do Banco Mundial, concluiu que o Brasil já tinha derrubado 12% da Amazônia, ou seja, quase 600 mil km2 – uma área maior que a da França (descontados seus territórios ultramarinos). A culpa pela devastação, apontou o economista, era das políticas do governo federal que incentivavam a pecuária e a mineração na Amazônia e enxergavam o desmatamento como forma de valorização da terra. Com base no relatório, o Banco Mundial interrompeu o pagamento de empréstimos para projetos do governo de ocupação da Amazônia.
As autoridades brasileiras julgaram exagerados os números, mas, como não dispunham de um dado oficial recente, não puderam refutar o Banco Mundial. “Como o governo não controlava a divulgação dos dados de desmatamento, não tinha como enquadrar o problema e evitar as críticas”, afirmou Raoni Rajão, professor de gestão ambiental na UFMG que investigou a história do monitoramento do desmatamento no Brasil. Pego de calças curtas, como diria Bolsonaro, o governo José Sarney decidiu que passaria a produzir dados anuais para controlar a narrativa sobre o desmatamento. A tarefa foi confiada ao Inpe, o centro de pesquisas espaciais criado em 1961, em São José dos Campos (SP). Em março de 1989 foi criada uma força-tarefa com 32 especialistas – a primeira equipe do Prodes –, e os resultados vieram à luz um mês depois.
O presidente chamou a imprensa nacional e estrangeira para anunciar pessoalmente a boa notícia no Congresso Nacional. O Inpe estimou que, de 1979 a 1988, a cada ano haviam sido derrubados pouco mais de 21 mil km2 da Amazônia. A área total desmatada era de 251 mil km2 – pouco maior que a do Reino Unido. Isso correspondia a 5% da Amazônia Legal, um percentual bem menor que o citado no relatório de Mahar.
Os dados do Banco Mundial se baseavam em projeções matemáticas bem menos consistentes que as imagens de satélite. Mas o governo tratou de apresentar os seus dados sob uma luz conveniente, como descobriu Maurício Tuffani, então repórter da Folha de S.Paulo. O jornalista mostrou que os números não incluíam áreas desmatadas no Pará e no Maranhão, estado de Sarney, além de desmatamentos feitos até a década de 1960. Se incluídas as áreas omitidas pelo Planalto, o total derrubado pulava para quase 359 mil km2 (ou uma Alemanha), estimativa que o Inpe veio a reconhecer. Depois o número foi corrigido para 377 mil km2, o que dá quase 8% da Amazônia Legal. “No fim das contas o Mahar não tinha exagerado tanto assim”, afirmou Tuffani numa entrevista recente, ponderando que, desde então, o Inpe passou a divulgar seus dados de forma transparente. “Virou outra coisa de lá para cá”, disse o jornalista, que hoje edita o site jornalístico Direto da Ciência.
Como uma espécie de PIB para o meio ambiente, a taxa anual de desmatamento é um indicador que traça o diagnóstico da situação da floresta, permite orientar as políticas públicas e avaliar o sucesso das ações de combate. No plano internacional, é o cartão de visitas do Brasil nas negociações multilaterais para combater o aquecimento global. Acabar com o desmatamento ilegal até 2030 é a principal meta do país no Acordo de Paris, assinado em 2015. A derrubada da floresta e o que quase sempre vem depois, a agropecuária, são as atividades responsáveis pela maior parte das emissões brasileiras dos gases que aquecem a atmosfera.
Depois do número apresentado por Sarney, o Inpe continuou calculando o desmatamento anual com os mesmos parâmetros. A matemática Thelma Krug, pesquisadora que ocupava a diretoria responsável pelo Prodes quando o sistema foi criado, contou que o trabalho de análise era analógico. “A classificação era feita minuciosamente em papel, e a unidade mínima de desmatamento era 1 mm2”, afirmou. O Inpe nunca mudou a unidade mínima de mapeamento, para poder continuar comparando os dados atuais com os números do passado. “O Prodes é a maior série histórica consistente do seu tipo no mundo”, afirmou Krug.
A taxa anual do Inpe contabiliza apenas as áreas de corte raso, ou seja, aquelas em que a mata foi totalmente cortada. “É um número extremamente conservador”, disse Gilberto Câmara. Para evitar falsos positivos, ele explicou, o Prodes só inclui áreas em que não há ambiguidade na interpretação. “É o melhor dado que o governo poderia ter.”
Antes, os governos divulgavam quando bem entendiam a taxa anual de desmatamento. Em 1993, no governo Fernando Collor, o levantamento não foi feito. O governo Fernando Henrique Cardoso só revelou no começo de 1998 o dado referente a 1995, e aproveitou para anunciar junto o número de 1996 e uma projeção para 1997. Compreende-se o atraso: em 1995 tinha sido derrubada uma área nunca mais superada desde então, de 29 mil km2. Ao divulgar os dados, o ministro do Meio Ambiente, Gustavo Krause, ressaltou a redução conseguida em 1996 (18 mil km2) e a projetada para o ano seguinte (13 mil km2). “Deram ênfase ao número menor e não falaram nada sobre o desmatamento recorde”, disse João Paulo Capobianco, que estava presente no anúncio e abandonou a cerimônia para denunciar a manipulação numa entrevista para a tevê.
Os ambientalistas apelidaram as solenidades de divulgação do Prodes de “a contabilidade da desgraça”. “Era sempre uma cena fúnebre em que descobríamos quanto se destruiu no passado”, contou Capobianco, que frequentava os anúncios como cofundador do Instituto Socioambiental. Em 2003 – quando o ambientalista estava do outro lado do balcão, representando o governo –, os dados do Prodes passaram a ficar disponíveis na internet para o público e a ser divulgados num seminário em que eram avaliados por pesquisadores e ambientalistas, junto com a equipe do Ministério do Meio Ambiente. Desde então, a taxa anual é apresentada no fim do ano, antes da Conferência do Clima da ONU.
O Brasil virou referência na área de sensoriamento remoto, como é chamado o estudo das imagens de satélite. “O sistema de monitoramento do Brasil causa inveja no mundo”, escreveu Eli Kintisch para a revista Science em 2007. “Os outros países estão correndo atrás do Inpe, nenhuma outra instituição de governo faz o que eles fazem”, disse à piauí o norte-americano Matthew Hansen, que coordena um programa de monitoramento global do desmatamento na Universidade de Maryland. “No nosso campo eles são o padrão-ouro.” O cientista considerou os ataques de Jair Bolsonaro aos colegas brasileiros uma politização indevida das imagens de satélite. “Não somos advogados a favor ou contra o desmatamento, estamos rastreando um sinal biofísico vindo do espaço e produzindo dados”, afirmou. “Deixem os caras trabalhar!”
Em 1989, quando o fogo na Amazônia foi parar nas manchetes mundiais, José Sarney anunciou um plano de combate ao desmatamento e a criação do Ibama, órgão federal responsável pela fiscalização ambiental. No governo Fernando Henrique Cardoso, um ano depois de alcançado o recorde da taxa anual, o presidente assinou uma medida provisória que elevava de 50% para 80% a reserva legal nas propriedades rurais da Amazônia – a porção de terra na qual o produtor é obrigado a manter a vegetação nativa. “Os governos que têm por prioridade o combate ao crime ambiental reagem sem desmontar a ciência, fortalecendo as instituições e trabalhando de maneira integrada, inclusive com os militares”, disse à piauí Izabella Teixeira, que foi ministra do Meio Ambiente de 2010 a 2016, nos governos Lula e Dilma Rousseff.
No dia 21 de agosto, o Ibama publicou um edital para a contratação de serviços de monitoramento por satélite da Amazônia. O governo busca uma empresa que forneça imagens diárias com resolução espacial de 3 metros, além de alertas de desmatamento para áreas de pelo menos 1 hectare. Interessados tinham oito dias úteis para enviar suas propostas; organizações da sociedade civil de interesse público e instituições sem fins lucrativos foram proibidas de participar.
As imagens que o governo quer comprar estão além das capacidades do Deter. Um serviço disponível comercialmente que atende às especificações do edital é o fornecido pela Planet, uma empresa fundada por ex-cientistas da Nasa em São Francisco, nos Estados Unidos. A companhia tem na órbita da Terra uma rede com cerca de 140 satélites de pequeno porte que permite produzir imagens diárias para venda a empresas e agências de governo. O Ibama está fazendo um teste gratuito das imagens Planet, que ilustraram o dossiê que Ricardo Salles montou para contestar os dados do Deter, e o ministro já recebeu funcionários da representante brasileira da empresa, a Santiago & Cintra Consultoria.
Ricardo Galvão, ex-diretor do Inpe, acredita que a resolução especificada pelo governo não é adequada para o que se pretende verificar com as imagens. “Não se mede a distância Rio-São Paulo com uma régua de 10 cm”, ele disse a Salles nos bastidores de um debate na GloboNews. Uma resolução menor seria mais apropriada para identificar a derrubada de árvores cuja copa pode chegar a 20 metros, argumentou. Falando à imprensa dias depois, o físico afirmou que os números de desmatamento só são confiáveis porque são feitos por uma instituição do governo que não está vinculada à pasta responsável pela fiscalização. “O ministro está caindo no canto da sereia dos vendedores.”
Por um ano o governo do Pará usou um sistema de alertas de desmatamento com base em imagens dos satélites Planet cedido pela Santiago & Cintra. Ao fim do período, decidiu não contratar os serviços da empresa, após avaliar que as imagens e os alertas gratuitos a que já tem acesso, incluindo os do Inpe, eram suficientes para combater o crime ambiental. “Para grandes desmatamentos, o que quase sempre é o caso na Amazônia, não há necessidade de imagens de tão alta resolução”, disse Mauro Almeida, secretário de Meio Ambiente do Pará.
O governo federal já quis contratar o serviço de monitoramento por satélite no passado. Em 2017, durante a gestão de Michel Temer, o Ministério do Meio Ambiente lançou uma licitação com essa finalidade cuja estimativa de preço era de 78,5 milhões de reais. O edital suscitou críticas porque contemplava tarefas que o Deter já realizava. Uma auditoria da Controladoria-Geral da União apontou falhas graves no planejamento e concluiu que não haviam sido feitos estudos preliminares que justificassem a contratação. O edital acabou suspenso.
Desde o começo do ano, Salles fala em comprar imagens de melhor resolução. Indagado se fazia sentido gastar recursos escassos para duplicar um serviço que o Inpe já fazia bem, o ministro disse em maio que Deter e Prodes continuariam em operação. “Queremos dar um passo a mais e agregar informações que conciliam dados de planos de manejo, de licenças estaduais de supressão de vegetação, dados que permitam um planejamento estratégico.” O edital lançado em agosto último, no entanto, não menciona essas informações.
Há quatro sistemas de satélites fazendo o monitoramento em tempo real da Amazônia e gerando alertas de desmatamento. Só o governo tem dois: além do Deter, do Inpe, há um sistema operado pelo Exército, ambos integrados com as autoridades ambientais federais e estaduais. Dados também são captados, de modo distinto, pelo SAD, do Imazon, e pelo Glad, da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos. Assim como o Deter e o SAD, o Glad tem apontado um aumento pronunciado no desmatamento da Amazônia, embora não tenha dados consolidados para os últimos doze meses. “Estamos contando a mesma história usando sensores diferentes, é só olhar a tendência”, disse o coordenador Matthew Hansen.
Ibama, ICMBio e secretarias de Meio Ambiente dos estados amazônicos recebem em seus computadores os alertas gerados por todos esses sistemas. Desde junho, podem contar também com os alertas do MapBiomas, plataforma criada por uma rede de ONGs, universidades e empresas. A novidade é que, a partir dos alertas rotineiramente emitidos pelas outras plataformas, o sistema cruza informações de vários bancos de dados e gera com rapidez laudos que podem orientar o trabalho dos fiscais, incluindo a localização da área desmatada, a data da ocorrência e a identificação do proprietário. Os laudos incluem imagens de alta resolução tiradas pelos satélites Planet das áreas desmatadas, antes e depois do corte. Os dados e alertas do MapBiomas são fornecidos gratuitamente para as instituições interessadas em usá-las. O serviço já vem sendo adotado por oito estados, por órgãos federais, como o Ibama, pelo Ministério Público Federal e pelo Tribunal de Contas da União.
Se não faltam olhos sobre a Amazônia, o mesmo não se pode dizer de braços e pernas. Nos últimos doze meses, o Deter emitiu quase 44 mil alertas de desmatamento para a Amazônia. O volume é muito superior à capacidade de fiscalização dos órgãos ambientais. Os quadros do Ibama vêm sendo enxugados ano após ano – o número de fiscais caiu 40% desde 2010, com menos de oitocentos agentes para cobrir todo o território nacional. “Faltam homens para atender a tantos alertas”, disse Suely Araújo, que dirigiu o Ibama durante a gestão de Michel Temer.
A pesquisadora Thelma Krug, do Inpe, ocupou a secretaria do Ministério do Meio Ambiente responsável pelo combate ao desmatamento entre 2016 e 2017. Nesse período, ela quis saber do Ibama que proporção dos alertas do Deter gerava operações de fiscalização – responderam-lhe que cerca de 1%. “Com o corte do orçamento e tudo que tem acontecido no Ibama, esse número deve ter caído ainda mais”, avaliou. “Não é comprando imagem que você vai parar o desmatamento.” Indagado pela piauí sobre o número de alertas do Deter que geraram ações de fiscalização desde janeiro, o Ministério do Meio Ambiente não se manifestou.
Não há data prevista para o anúncio da taxa anual de desmatamento. O governo não vai querer pagar a conta sozinho. “O aumento do desmatamento não é da minha gestão”, disse Salles à piauí. Poderá também tentar lançar dúvidas sobre o número, na esteira dos questionamentos de Bolsonaro ao Inpe. “O ataque irresponsável ao Deter lançou uma cortina de fumaça”, avalia a ex-ministra Marina Silva. “Quando vierem os dados do Prodes para confirmar o desmatamento, já estarão desacreditados.”
Ricardo Magnus Osorio Galvão, o diretor do Inpe exonerado a mando de Bolsonaro, foi festejado nas redes sociais após reagir aos ataques de Jair Bolsonaro. Com uma franqueza poucas vezes vista entre aqueles que são alvo das críticas presidenciais, o físico declarou ao Estado de S. Paulo que Bolsonaro tinha tomado uma atitude “pusilânime e covarde” e se portara “como se estivesse numa conversa de botequim”. O vistoso bigode grisalho de Galvão passou a ilustrar memes que ironizavam o governo e seus ataques à ciência.
O entrevero com o presidente conturbou a vida pessoal do pesquisador de 71 anos. Em meio a mensagens de solidariedade de colegas no Brasil e no exterior, ele recebeu o telefonema de um brigadeiro da ativa constrangido com as declarações do presidente, conforme disse ao jornal O Vale, de São José dos Campos (foi procurado também por uma associação de donos de botequim, receosa que sua imagem saísse arranhada do episódio). Em poucos dias, a imprensa lhe dedicou uma atenção que nunca tinha tido em quase meio século de trajetória acadêmica – nos últimos dias, parou de contar o número de entrevistas que deu, depois de ter concedido a vigésima.
Galvão fez carreira na Universidade de São Paulo, onde montou um grupo de pesquisa que estuda fenômenos ligados à fusão nuclear. No Rio de Janeiro, dirigiu o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas entre 2004 e 2011, e em 2016 foi nomeado diretor do Inpe, em São José dos Campos, cidade onde mora. Seu sucessor será apontado a partir de uma lista tríplice apresentada por um comitê de busca a ser montado por Marcos Pontes, ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. Enquanto isso, foi nomeado como diretor interino do Inpe o oficial da Aeronáutica Darcton Policarpo Damião. Embora tenha escrito uma tese de doutorado sobre o desmatamento na Amazônia, Damião disse ao Globo que o aquecimento global “não é a sua praia”, e que não tirou conclusões sobre o assunto.
Com a exoneração, Ricardo Galvão voltou para a USP, onde é professor titular desde 1990. No regresso à instituição, fez uma conferência sobre autonomia e liberdade científica, numa sexta-feira de agosto, para um auditório repleto de professores e estudantes curiosos para ouvir o físico que virou personagem do noticiário. Galvão evocou sua saída do Inpe em tom emocionado e interrompeu a palestra mais de uma vez, à beira das lágrimas. Foi longamente ovacionado ao final, quando disse que o país não vai voltar às trevas da ditadura “porque a comunidade acadêmica e o povo brasileiro não se calarão”.
Galvão queixou-se da falta de interlocução do Inpe com o Ministério do Meio Ambiente e projetou no telão ofícios que ele enviou e ficaram sem resposta. “Não houve nenhum contato formal do Ibama com o Inpe nessa gestão”, afirmou. O físico evocou ataques anteriores ao Deter e citou o voo de helicóptero que pôs fim às acusações de Blairo Maggi. Disse que a mesma solução poderia ser dada aos questionamentos do presidente. “Mandei a sugestão por escrito, mas o governo não quis fazer”, disse o cientista.
Numa conversa com a imprensa ao fim da conferência, Galvão disse que só se manifestou 24 horas após as críticas de Bolsonaro, pois esperava que Marcos Pontes saísse em defesa dos dados do Inpe – o ministro da Ciência não confrontou o presidente e afirmou depois que compreendia o estranhamento do chefe com os números do desmatamento. Perguntado sobre o que faria dali em diante, Galvão disse que queria dar aulas e conversar com os alunos. “E parar de dar entrevistas.”
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