Um mesmo homem: o comandante das operações especiais no Iraque, com missão de matar e capturar insurgentes, agora deve derrotar o Talibã no Afeganistão com outros métodos. A margem de erro para os americanos reduziu-se a zero FOTO: PAULA BRONSTEIN_GETTY IMAGES
A longa guerra de Stanley McChrystal
Quem é e o que quer fazer o general que pediu a Obama mais 40 mil soldados para poder ganhar a guerra no Afeganistão
Dexter Filkins | Edição 38, Novembro 2009
O general Stanley A. McChrystal desceu do Black Hawk com o motor ainda ligado e seguiu direto para a cidade. Ele viera até Garmsir, um posto avançado coberto de poeira às margens do rio Helmand, no sul do Afeganistão, para avaliar a guerra que o presidente Barack Obama lhe pedira para salvar. McChrystal tirou o colete à prova de balas e o capacete. Seu rosto, ossudo e austero, parecia fazer parte do deserto à sua volta.
Estava rodeado de guarda-costas — o que é normal para um general de quatro estrelas —, e mais uma variedade de oficiais dos fuzileiros navais encarregados de tomar conta da cidade. Garmsir esteve sob o controle do Talibã até maio de 2008, quando uma unidade de marines invadiu e limpou. Desde então, os britânicos, e em seguida os americanos, vêm controlando a área e tentando, muito lentamente, construir alguma coisa em Garmsir — um governo, um exército, uma força policial — pela primeira vez desde o começo da guerra, há mais de oito anos.
Os fuzileiros em torno do general, entre eles o comandante do batalhão local, fizeram um ar de surpresa, e até de alarme, quando McChrystal removeu seu equipamento de proteção. Mas, à medida que o grupo percorreu a pé as ruas de chão gasto que levam ao bazar de Garmsir, os outros começaram também a tirar seus capacetes.
“Quem são os donos das terras aqui em volta?”, perguntou McChrystal, percorrendo as ruas e espiando dentro de algumas lojas. “São os próprios agricultores ou eles arrendam dos proprietários?”
Era o tipo de pergunta que um sociólogo ou economista poderia fazer. Ninguém tinha uma resposta.
O grupo entrou no bazar. Os afegãos intuíram a chegada de um americano importante e começaram a formar pequenos grupos dentro dos quiosques. O general parou e virou-se para eles.
“Do que vocês estão precisando aqui?”
Um tradutor verteu para o pashto a pergunta do general.
“Precisamos de escolas!”, respondeu um afegão. “Escolas!”
“Estamos cuidando disso”, disse McChrystal. “Essas coisas levam tempo.”
O general caminhou mais um pouco, abordando outro grupo de afegãos. E lhes fez a mesma pergunta.
“Segurança”, respondeu um homem. “Precisamos de segurança. Primeiro a segurança, e depois pode vir o resto.”
“É o que tentamos fazer”, disse McChrystal. “Mas vai levar algum tempo. As coisas levam tempo para dar certo.”
Continuou a fazer perguntas, obtendo sempre as mesmas respostas. Ao fim de algumas horas, ele tornou a vestir o colete à prova de balas e seu capacete, embarcou no Black Hawk e decolou rumo a outra cidade.
As coisas levam tempo para dar certo, mas quanto tempo Stanley McChrystal tem? A guerra no Afeganistão já entrou em seu nono ano. O Talibã, a julgar pelo número dos seus ataques, recuperou boa parte da força perdida desde que os americanos derrubaram seu governo, no final de 2001. Soldados e fuzileiros navais morrem a um ritmo mais acelerado do que nunca. Nos Estados Unidos, a oposição à guerra não para de crescer.
Pior: mesmo depois de todo esse tempo no Afeganistão — depois de tanto dinheiro, de tanto sangue —, a falta de resultados salta aos olhos em todos os pontos do país. Em Garmsir, não há nada que se pareça nem de longe com um Estado moderno capaz de tomar conta das coisas se os Estados Unidos e seus aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte, a Otan, deixassem a área. Basta percorrer uma parte do país para ver como o seu território é vasto e inóspito, e como os esforços têm sido insuficientes.
E há o governo de Cabul. O presidente Hamid Karzai, que num certo momento se tornou o favorito do Ocidente, ao que tudo indica venceu as eleições de agosto passado na crista de uma verdadeira enxurrada de fraudes. Os americanos e seus aliados estão sendo confrontados com a possibilidade de que o governo que estão apoiando, construindo e defendendo seja uma carcaça podre.[1]
Em sua primeira avaliação das condições do país, enviada ao presidente Obama no início do mês passado, McChrystal conclui que o Afeganistão está à beira do colapso e os Estados Unidos, à beira da derrota. Para mudar os rumos da guerra, segundo McChrystal, o presidente Obama tem à sua frente o que pode ser a escolha mais momentosa de sua política externa: a escalada ou a derrota. McChrystal pediu o envio de mais 40 mil soldados americanos — 65 mil já estão lá — e a aceleração do esforço para treinar soldados e policiais afegãos, além de construir um Estado. Se Obama não puder intensificar os combates, sugere McChrystal, melhor desistir desde já.
“Recursos inadequados”, escreve McChrystal, “resultarão provavelmente num fracasso.”
A magnitude da escolha apresentada por McChrystal, e agora posta diante de Obama, é difícil de exagerar. Pois o que McChrystal propõe não é um ataque temporário, ao estilo do Iraque — um rápido influxo de tropas americanas, logo sucedido por uma retirada. O plano de McChrystal é um projeto detalhado para um longo compromisso americano com a construção de um Estado moderno no Afeganistão — onde tal coisa jamais foi vista — e com a instauração da ordem em um lugar famoso pelos vários impérios que derrotou pelo cansaço. Mesmo na melhor das hipóteses, esse compromisso deve consumir, ainda por muitos anos, centenas de bilhões de dólares e acarretar muito mais mortes de norte-americanas e norte-americanos.
Isso, se der certo.
Poucos dias depois de McChrystal enviar seu relatório, me sentei a seu lado no quartel-general de Cabul e ele me pareceu otimista e relaxado. O relatório continuava secreto — ainda não vazara para o público. O furor decorrente ainda estava por vir, assim como os rumores de que McChrystal cogitava renunciar, o que ele acabou sendo obrigado a desmentir de público. A atmosfera não era de tensão — ainda. Só de urgência.
“Aceitei esta função porque me pediram que aceitasse e porque é muito, muito importante”, disse-me McChrystal. “O almirante Mullen” — chefe do estado-maior das Forças Armadas americanas — “recomendou-me especificamente: ‘Vá até lá, veja o que precisa ser feito e me diga do que necessita para isso. Não se deixe constranger por motivos políticos. Só me diga o que é preciso.'”
Os fuzileiros avançavam pela estrada coberta de areia quando os afegãos começaram a aparecer para ver a bomba. Os marines da Companhia Eco do 2º Batalhão do 8º Regimento tinham suado o couro para atravessar 1 quilômetro e meio de plantações inundadas de milho no coração da província de Helmand, antes de poderem subir um promontório rochoso até o posto de observação antes guarnecido por soldados soviéticos. Chegaram à área no início de julho, como parte da grande investida ordenada pelo presidente Obama.
Foi quando eles desceram daquele antigo observatório soviético e enveredaram pela estrada de terra que corre ao longo da aldeia de Mian Poshteh que os afegãos foram surgindo.
Primeiro só um homem caminhando sozinho junto à parede de uma das casas de adobe de Mian Poshteh. Logo ele parou e ficou olhando. Em seguida, outro homem, este numa vala de irrigação, pôs a cabeça de fora para olhar. Duas crianças pararam de brincar e se viraram para assistir.
“Alguma coisa vai acontecer”, disse o sargento Jonathan Delgado, de 22 anos, nascido em Kissimmee, na Flórida.
“Fique de olho naquele cara”, disse o cabo Joshua Vance, apontando. Sua idade também é 22 anos e ele nasceu em Raleigh, na Carolina do Norte.
Mais dois afegãos apareceram. Pararam e ficaram olhando para um ponto da estrada logo à frente dos fuzileiros. Um motociclista passou lentamente por eles, virando a cabeça para vê-los. E então a bomba explodiu. Tinha sido enterrada na própria estrada, mais ou menos 1 metro debaixo da areia, poucos metros à frente dos soldados americanos.
O estrondo da bomba foi seco e grave, e ergueu-se uma nuvem de pó com mais de 20 metros de altura. Ondas de choque da explosão se expandiram para todos os lados, na direção da aldeia e do ponto onde estávamos. Dez fuzileiros da primeira fila desapareceram.
“Fomos atacados! Fomos atacados!”, gritou Delgado, e todos correram para as primeiras filas.
Fuzileiros começaram a emergir cambaleantes de dentro da nuvem. Cobriam os olhos e ouvidos com as mãos.
“Meu Deus, ainda estou aqui”, disse o cabo Matt Kaiser, esfregando as orelhas. Kaiser, de Oak Harbor, em Ohio, estava na linha de frente varrendo o terreno com um detector de minas. “Ainda estou aqui.”
“Ninguém se feriu”, disse Delgado. “Deus do céu, ninguém se feriu.”
Mais jovens continuavam a sair da nuvem, desequilibrados, enquanto outros assestavam suas armas, apontando-as para Mian Poshteh.
O autor do atentado falhara. Alguém, provavelmente escondido em Mian Poshteh, tinha acionado um detonador – preso a um fio ligado à bomba — no momento que os fuzileiros passavam pela estrada. O homem que manejava o detonador errou o instante preciso de acioná-lo. Se tivesse esperado mais cinco segundos, teria matado vários fuzileiros.
Os americanos se juntaram e tomaram o rumo de Mian Poshteh. No começo da guerra, teriam entrado de imediato na aldeia. Teriam derrubado várias portas a pontapés até encontrarem o responsável pela bomba. E o mais provável é que conseguissem encontrá-lo — depois de matar alguns civis e destruir várias casas — fazendo uma série de inimigos. Mas agora os fuzileiros perseguem metas muito diversas.
Caminharam até ficar a uns 10 metros da entrada de Mian Poshteh e o tenente Patrick Bragan gritou: “Mandem cinco homens até aqui. Cinco homens.”
Alguns minutos se passaram e cinco afegãos apareceram. Estavam desarmados e tinham a aparência de homens comuns.
“Não tenho ideia de quem fez isso”, disse um velho chamado Fazul Mohammed.
“Talvez eles tenham vindo durante a noite”, disse outro, chamado Assadullah.
“Só escutei a explosão”, disse um terceiro, chamado Syed Wali.
O rosto do tenente Bragan estava vermelho
Os fuzileiros acabaram desistindo. Quase anoitecia quando começaram a voltar pelo mesmo caminho da vinda, em meio a pés de milho da altura de um homem.
Stanley McChrystal estava sentado à cabeceira de um grupo de mesas dispostas em forma de U numa sala secreta da Base Aérea de Bagram, o principal centro de tráfego aéreo da guerra. Cinco gigantescas telas de vídeo o cercavam. Em cada uma via-se outro general — americano, alemão, holandês, francês e italiano —, cada um deles de uma parte diferente do Afeganistão. Era a reunião matinal de McChrystal, conhecida como o informe do comandante.
Um a um, os generais foram narrando os acontecimentos do dia anterior: uma bomba à beira da estrada em Khost, fogo de armas leves em Ghazni, um soldado britânico morto na província de Helmand. Em seguida, um dos generais europeus começou a falar de um ataque aéreo. Um grupo de insurgentes do Talibã atacara um comboio da coalizão e os soldados pediram apoio aéreo. Um míssil Hellfire, contou o general europeu, destruíra um conjunto de residências afegãs. O general — cujo nome não pode ser revelado devido ao caráter confidencial da reunião — já se preparava para abordar o próximo tópico quando McChrystal o interrompeu.
“Pode dar mais detalhes, por favor?”, pediu o americano.
A voz de McChrystal é mais aguda do que se espera de um general de quatro estrelas.
“Sim, senhor”, respondeu o general europeu.
“Acabamos de atacar um grupo de residências”, disse McChrystal. “E eu gostaria que o senhor explicasse o processo que usou para disparar um míssil Hellfire contra um conjunto de residências onde pode perfeitamente haver civis.”
O comandante europeu olhou para um ajudante de ordens e lhe disse alguma coisa. A morte de civis afegãos, geralmente causada por ataques aéreos irrefletidos das forças americanas e da Otan, transformou-se na questão mais delicada das relações entre os afegãos e seus hóspedes ocidentais. Toda vez que civis são mortos, o Talibã lança uma campanha de propaganda de grande alcance.
“Havia civis nessas residências?”, perguntou McChrystal. Ele estava debruçado sobre o microfone em sua mesa.
O comandante começou a falar, mas McChrystal continuou.
“Quem autorizou o ataque?”, perguntou McChrystal.
Um ajudante de ordens entregou uma pilha de papéis ao general europeu.
“Desculpe, mas o sistema não me permite conseguir esse tipo de informação tão depressa assim”, respondeu o general.
O rosto de McChrystal começou a crispar-se. O costume entre os generais é se tratarem sempre com a mais extrema deferência.
“Bombardeamos um conjunto de residências e só me contam na manhã do dia seguinte?”, perguntou McChrystal. “E não me responda só ‘Está certo, tudo bem’. Eu quero saber como isso aconteceu. Faço questão absoluta.”
O general europeu abaixou os olhos para os seus papéis.
“Na verdade, parece que não foi um míssil Hellfire, mas uma bomba de 200 quilos”, disse ele.
McChrystal tirou os óculos de leitura e correu os olhos pela sala — fitando as telas de vídeo e os demais oficiais americanos.
“Senhores, precisamos entender bem as implicações do que fazemos aqui”, disse ele. “O uso do poder de fogo aéreo contém a semente da nossa própria destruição. Um sujeito com um fuzil de cano longo entra correndo num conjunto de casas, e nossa resposta é jogar uma bomba de 200 quilos em cima delas? As baixas civis não são uma realidade que só interessa à imprensa de Washington. Elas são uma realidade para o povo afegão. Se usarmos nosso poderio aéreo de forma irresponsável, podemos perder essa luta.”
Mais adiante no mesmo dia, enquanto andávamos de carro por Cabul, McChrystal me disse que tinha decidido restringir drasticamente as circunstâncias em que os ataques aéreos seriam permitidos: para todos os efeitos, o uso de bombas e mísseis em áreas habitadas estava banido, a menos que seus homens estivessem correndo perigo de aniquilação.
Em suas primeiras semanas no novo posto, McChrystal emitiu diretivas instruindo seus homens quanto ao comportamento com os afegãos. No cerne de sua estratégia encontram-se três princípios: proteger o povo afegão, construir um Estado e travar amizade com todo mundo que for possível, inclusive os insurgentes. Matar os combatentes do Talibã figura agora entre as coisas menos importantes que se esperam dos soldados da Otan.
“Vocês podem continuar matando Talibãs para sempre”, disse McChrystal, “porque eles não são em número finito.”
Essa estratégia é enfatizada por uma extraordinária noção de urgência — a clareza de que, ao final de oito anos de guerra, a margem de erro para os americanos reduziu-se a zero. “Se cada soldado for autorizado a cometer um erro”, disse McChrystal, “acabaremos perdendo a guerra.”
Embora o Afeganistão não seja o Iraque, o plano de McChrystal lembra em muito o do general David H. Petraeus, que assumiu o comando das forças americanas no Iraque, no início de 2007, quando o país se desintegrava numa guerra civil. Fazia quatro anos que os americanos tentavam esmagar a insurreição iraquiana e só conseguiam o resultado oposto: a insurreição se fortalecia e o país estava à beira da implosão.
Desviando seus esforços para a proteção dos civis iraquianos, as tropas americanas conseguiram isolar os insurgentes de sua base de apoio. Em seguida, os americanos fizeram acordos com dezenas de milhares de ex-combatentes — fenômeno conhecido como o Despertar Sunita — ao mesmo tempo em que ajudavam a formar um exército iraquiano. Depois de uma sangrenta investida inicial, a violência no Iraque caiu para seu nível mais baixo desde o início da guerra.[2]
Petraeus e McChrystal são próximos — e a ligação entre os dois fortaleceu-se durante a provação iraquiana. Petraeus, hoje chefe do Comando Central militar dos Estados Unidos, com responsabilidade conjunta sobre o Iraque e o Afeganistão, apoiou a indicação de McChrystal. “Ele foi um homem-chave da minha equipe no Iraque”, disse-me Petraeus.
Atualmente com 55 anos, Stanley McChrystal é filho de Herbert J. McChrystal Jr., general que serviu na Alemanha durante a ocupação americana e combateu na Coreia e no Vietnã. Stanley foi o quarto de uma família com cinco filhos e uma filha; todos, quando cresceram, entraram para a vida militar ou se casaram com alguém da corporação. “Meu pai sempre foi o soldado que eu queria ser”, disse o general.
Ele se formou em West Point, em 1976, no auge do desprestígio do Exército americano que se seguiu à guerra do Vietnã. Pelos trinta anos seguintes, McChrystal foi subindo na hierarquia, quase sempre servindo nas tropas de elite dos batalhões de Operações Especiais, em unidades como os Rangers. Serviu como oficial de estado-maior e oficial de operações na primeira Guerra do Golfo, e passou algum tempo em Harvard e no Council on Foreign Relations, centro de estudos internacionais sediado em Nova York.
Com seu rosto comprido, descarnado, e seu corpo alto e seco, McChrystal dá sempre a impressão de estar quase sobrenaturalmente alerta — preparado e desejoso de entrar em ação. Submete-se a um ritmo de vida impiedoso, dormindo quatro ou cinco horas por noite e fazendo apenas uma refeição por dia. Corre cerca de 13 quilômetros diários em ritmo acelerado, quase sempre ouvindo um audiolivro. Numa viagem recente de helicóptero, de um dia inteiro percorrendo bases militares pelo Afeganistão afora, McChrystal bocejou o dia todo — o único sinal de sua exaustão. Tomou o tempo todo goles regulares de uma grande caneca de café puro.
McChrystal estava há apenas um mês em seu novo posto quando entrou um dia na área do quartel-general das forças da Otan em Cabul conhecida como os Destille Gardens. Uma série de construções térreas, ligadas por pátios internos e jardins, é a única coisa no quartel-general que lembra uma área de repouso ou recreação. Soldados e fuzileiros — a maioria, oficiais do estado-maior — reuniam-se ali para tomar um café e, no caso dos europeus, um copo de cerveja ou uma taça de vinho. O lugar fica a um mundo de distância da província de Helmand.
O general tinha vindo cortar o cabelo e, enquanto atravessava um pátio interno, passou por uma mesa em que oficiais da coalizão conversavam e bebiam. Segundo vários oficiais presentes, seu rosto demonstrou uma reprovação imediata. Vinte minutos mais tarde, quando atravessou o pátio de volta, com o cabelo recém-aparado, os oficiais continuavam sentados à mesma mesa. Alguns deles cochilavam. O general franziu os lábios. Seis semanas mais tarde, baixou uma ordem proibindo o consumo de álcool no quartel-general das forças da Otan.
Apesar de todo seu ascetismo, McChrystal é capaz de sutilezas que sugerem uma visão mais ampla do mundo. “Se você entrar na casa dele, verá que ele tem uma biblioteca irreal”, contou-me o general de divisão Michael Flynn, chefe dos serviços de informação de McChrystal e seu amigo de longa data. “Você chega perto de um livro, aponta para a lombada e pergunta: ‘Este aqui é sobre o quê?’ E ele começa a discorrer.”
Na sua lista de leituras recentes figura Vietnam: A History, um relato implacável sobre a derrota americana escrito por Stanley Karnow.
Uma das grandes perguntas que pairam em torno de McChrystal é se a sua experiência no Iraque o credencia para o desafio monstruoso que tem pela frente. Por quase cinco anos, ele chefiou o Comando Geral de Operações Especiais, que supervisiona as unidades militares de tropas de assalto americanas, entre elas a Força Delta do Exército e os Seals da Marinha. (Até data muito recente, o Pentágono recusava-se a sequer reconhecer a existência desse comando.)
Como comandante das operações especiais no Iraque, McChrystal não gastou muito tempo tentando seduzir os iraquianos, treinando forças locais ou reforçando o Estado. No Iraque (e, por cerca de um terço desse tempo, no Afeganistão), a função de McChrystal e dos homens sob seu comando foi, quase exclusivamente, matar e capturar insurgentes e terroristas.
Quebrar o ciclo de ataque e vingança era crucial para deter a guerra civil e foi nessa frente, dizem McChrystal e seus colegas, que o Comando de Operações Especiais teve um papel decisivo. Em uma série de intervenções que chegou ao clímax em 2006 e 2007, as tropas de assalto de McChrystal conseguiram desbaratar a Al Qaeda na Mesopotâmia.
“A meta era atingir os quadros centrais da organização — o equivalente, num exército regular, aos oficiais subalternos com maior experiência de combate. Nossa intenção era causar o colapso da rede”, contou-me McChrystal.
Ele disse que, desde o início do outono de 2006 — quando a Al Qaeda estava no auge de sua capacidade homicida —, tinha a impressão de que a organização estava em vias de esfacelamento. “Sentíamos que a Al Qaeda estava a ponto de implodir”, falou ele. “Era uma coisa que dava para sentir. Ficamos acompanhando, sentindo e observando.” Além de sustentarem a guerra civil, os combatentes da Al Qaeda eram vistos como o maior obstáculo à reconciliação entre os sunitas, os americanos e o governo iraquiano. Fazendo a Al Qaeda perder a força, dizem McChrystal e outros, foi possível amainar significativamente a guerra civil, criando assim um espaço que permitiu o sucesso de um movimento mais amplo de reconciliação — o chamado Despertar Sunita.
Mas as operações especiais nem sempre foram impecáveis sob seu comando. Os homens que ele mais desejava capturar, Osama bin Laden e Ayman al-Zawahiri, nunca foram encontrados. Uma das unidades do Comando de Operações Especiais, a Força-Tarefa 6-26, foi citada por maus-tratos a detentos, muitos deles num local conhecido como Camp Nama, em Bagdá. O próprio McChrystal não estava implicado, mas pelo menos 34 membros da força-tarefa foram punidos. “Houve casos em que pessoas cometeram erros e sofreram punições”, disse-me McChrystal. “O que fizemos foi determinar as diretrizes e criar uma atmosfera que fosse desfavorável a acontecimentos daquele tipo.”
Pouco depois de sua chegada ao Afeganistão, em junho de 2009, McChrystal reuniu-se com os comandantes da 82ª Divisão Aerotransportada, que supervisiona uma vasta fatia do leste do país. Os informes, fornecidos pelos oficiais da 82ª, eram sofisticados, mas pouco animadores: a corrupção no governo afegão é ampla, diziam os oficiais, e a insurgência, apoiada pelo Paquistão, é resistente. Cada vale, cada aldeia é diferente, cada um com sua própria colcha de retalhos de tribos e grupos étnicos, cada um com sua própria história. E os americanos precisam conhecer todas elas.
Quando a reunião de informes acabou, McChrystal correu os olhos pela sala. “Senhores, assumi esse posto com doze meses para mostrar algum progresso – e 24 meses para obter um impacto decisivo”, disse ele. “Esse é o prazo que temos para convencer o Talibã, o povo afegão e o povo americano de que seremos vitoriosos. Em 24 meses, precisa ficar óbvio que nos encontramos numa situação de superioridade e que as coisas estão andando na direção certa. E isso não é uma escolha.”
Numa viagem em que percorreu as bases aliadas no Afeganistão, McChrystal repetiu o mesmo mantra para os comandantes ativos nos campos de batalha. O tempo está se esgotando e nem ele nem ninguém nos escalões mais altos das Forças Armadas acredita que a tarefa estará completa nesse prazo.
“A impressão é a mesma que tínhamos no Iraque em 2004”, diz Michael Flynn, oficial imediatamente subordinado a McChrystal. “Em parte porque a insurreição é mais forte e competente do que lá — e não percebíamos o quanto era forte.”
A estratégia que pretendem empregar tem duas pontas: uma mais dura e outra menos.
Na arena militar, McChrystal quer distribuir o maior número possível de homens o mais perto que puder do povo afegão, o que significa fechar algumas das bases menores, situadas em vales remotos, e abrir novas em áreas densamente povoadas, como o vale do rio Helmand. A força militar irá desempenhar um papel central, pelo menos na fase inicial dessa estratégia, enquanto os americanos abrem caminho lutando para chegar em áreas onde ainda não conseguiram entrar.
“A insurreição precisa ter acesso ao povo”, disse-me McChrystal. “E por isso queremos nos instalar literalmente no meio da população. Queremos obrigar os insurgentes a virem em nosso encalço. Fazer com que os agressores sejam eles. Meu objetivo é estar do lado de dentro, olhando para fora — em vez de ficar de fora olhando para dentro.”
E este é o xis do problema: uma estratégia assim, focada na população, exige tropas bem mais numerosas — pelo menos mais 40 mil combatentes. E é essa a decisão posta agora à frente do presidente Obama e de seus conselheiros.
A outra parte da opção militar é um tipo de escolha com que McChrystal tem familiaridade, mas não controla por completo. É sua antiga rotina — matar e capturar insurgentes e terroristas. E boa parte dela está sendo levada a cabo no Paquistão, onde a liderança da Al Qaeda enquistou-se em refúgios seguros, próximos à fronteira com o Afeganistão. Acredita-se que seja lá que tanto Bin Laden quanto Zawahiri se escondem.
No Paquistão, operações da cia com aeronaves não tripuladas Predator tiveram um grande sucesso em localizar e matar os líderes da Al Qaeda e do Talibã. Autoridades americanas afirmam que já foram mortos onze dos vinte líderes principais da Al Qaeda, sem que tenha sido necessário organizar operações militares em grande escala do outro lado da fronteira.
Com seus 180 milhões de habitantes, suas várias dezenas de ogivas nucleares e seus refúgios para a Al Qaeda e o Talibã, o Paquistão é uma incógnita na campanha de McChrystal. “Se nos sairmos bem aqui, isso terá um efeito positivo sobre o Paquistão”, disse-me ele. “Mas se fracassarmos aqui, o Paquistão não conseguirá resolver os seus problemas — e será o mesmo que atear fogo numa pilha de folhas secas bem aqui ao lado num dia de vento forte. Se o Paquistão implodir, teremos muita dificuldade em nos sairmos bem disso tudo.”
O lado menos duro da estratégia tem duas frentes principais: treinar soldados e policiais afegãos e convencer os insurgentes a mudar de lado.
A primeira delas é um projeto vasto, dispendioso e exigente. Depois de oito anos de guerra, as forças afegãs não têm nem o tamanho e nem a capacidade de que precisariam para substituir a Otan. O exército afegão tem cerca de 85 mil soldados, e a força policial conta com mais ou menos 80 mil homens. McChrystal quer que o exército aumente para 240 mil homens e a polícia para 160 mil.
A experiência sugere que não será fácil. No Iraque, a formação das forças de segurança foi ameaçada por várias calamidades: em 2004 e 2005, os soldados iraquianos e a polícia local tendiam a evaporar toda vez que eram atacados. Nos anos seguintes, as forças iraquianas se tornaram mais sectárias, com algumas unidades dominadas pelos xiitas promovendo o massacre de civis sunitas. Foi só muito mais tarde — já no início de 2008 — que o exército e a polícia iraquianos começaram a mostrar alguma promessa de sucesso.
E o Iraque era uma sociedade urbana e instruída. O Afeganistão não é nem uma coisa nem outra. A polícia afegã é majoritariamente considerada corrupta e cúmplice do tráfico de ópio – o maior do mundo. E o general de brigada Richard Formica, que supervisiona o treinamento das forças de segurança afegãs, aponta as dificuldades de se criar um exército em um país onde apenas um em cada quatro adultos é alfabetizado. “E como você pode treinar oficiais da polícia quando eles são incapazes de escrever relatórios de prisão?”
Talvez a ideia mais desconcertante de McChrystal seja a sua convicção de que conseguirá convencer um grande número de membros do Talibã a mudar de lado. Trazer os insurgentes de volta ao rebanho foi, afinal, uma das chaves para impedir que o Iraque mergulhasse de vez num apocalipse. A partir do final de 2006, dezenas de milhares de sunitas membros de várias tribos, muitos deles antigos insurgentes, concordaram em parar de lutar e ingressar na folha de pagamento, geralmente como policiais. Quase de um dia para o outro, a insurreição iraquiana viu-se reduzida aos fanáticos da Al Qaeda e a um punhado de outros combatentes que poderiam ser localizados pelas forças do Comando de Operações Especiais de McChrystal. E esse arranjo instável — muito instável — ainda vem garantindo a paz que se conseguiu instalar no Iraque de hoje.
McChrystal afirma que pretende dar início a um esforço similar no Afeganistão. A ideia, diz ele, não seria tentar converter os líderes do Talibã — o que seria muito improvável —, mas sim seus soldados rasos. A premissa do programa, diz McChrystal, é que a maioria dos combatentes do Talibã não tem um compromisso ideológico muito forte, e podem ser atraídos para o seio da sociedade com promessas de emprego e proteção.
O plano de reconciliação pode acabar atraindo alguns personagens de má fama para dentro do rebanho, mas o general americano não acha que isso seja muito problemático. “Na minha opinião”, disse McChrystal sobre os insurgentes, “o passado deles não tem muita importância. Há quem diga que eles têm as mãos sujas de sangue. Mas para mim, o que deve ser levado em conta é o comportamento futuro. E se eles quiserem, podem até participar do processo político.”
Muitas coisas poderiam atrapalhar os planos de McChrystal: combatentes do Talibã mais intratáveis do que imagina, a natureza fraturada da sociedade afegã e, qualquer que seja a decisão do presidente Obama, a insuficiência de soldados e de tempo. Mas existe coisa ainda pior, sobre a qual nem McChrystal nem seus companheiros civis do governo americano podem exercer muito controle: o governo de Hamid Karzai, já incluído entre os mais corruptos do mundo.
Cada vez mais, porém, tanto McChrystal quanto o presidente Obama e o povo americano são forçados a cogitar a possibilidade de se verem condenados a lutar, a morrer e a pagar por um governo amplamente considerado ilegítimo
Quando cheguei a essa questão numa das minhas entrevistas com McChrystal, achei que este era um dos pontos aos quais ele não tinha dedicado a devida reflexão. E se o povo afegão julgar que seu governo é ilegítimo? Como é que alguém se disporia a lutar por ele?
“Então precisamos fazer tudo para não dar a impressão de que fazemos parte dessa ilegitimidade”, foi a resposta do general. “Eis o ponto fundamental.”
Um grupo de marines chacoalhava por uma estrada de terra em seu blindado Humvee, enquanto a tarde se transformava em noite.
“Um sujeito perdeu as pernas”, disse o sargento David Spaulding, sentado no banco da frente ao lado do motorista. “Estavam atravessando um campo a pé.” O Humvee sacudiu um pouco mais.
“E sabe o cara que levou um tiro na cabeça?”, perguntou o cabo Jeremy Dones, de um dos bancos traseiros. “Foi levado para a Alemanha. Os pais dele também pegaram um avião para lá. E agora desligaram os aparelhos.” Passou-se um instante.
“Parece que outro sujeito voou pelos ares e não conseguem encontrar o cara todo”, disse Spaulding. “Não sabem se acharam todos os pedaços.” Os homens seguiram viagem em silêncio.
Os planos de McChrystal estão sendo postos em prática ao longo das margens do rio Helmand, onde os membros do 2º Batalhão do 8º Regimento de Fuzileiros Navais (o 2/8 Battalion) tentam retomar um trecho de 30 quilômetros de pomares e aldeias em torno da cidade de Garmsir. O 2/8, com seus cerca de 800 homens, faz parte dos 10 mil fuzileiros enviados para a província de Helmand pelo presidente Obama no começo deste ano.
Desde que chegou a este lugar no início de julho, o 2/8 já perdeu treze homens, em sua maioria para bombas caseiras. Mais ou menos o quíntuplo disso sofreu ferimentos. Os fuzileiros combatem praticamente todo dia.
Ainda assim, apesar de todas as dificuldades, o batalhão vem conseguindo um progresso efetivo. O distrito de Garmsir, com cerca de 90 mil habitantes, orgulha-se de ter um governo em funcionamento, com um governador e um conselho local. Há cerca de 300 soldados afegãos em ação na área, comandados por um coronel afegão formado na mesma escola em que estudam os melhores oficiais juniores do Exército dos Estados Unidos. Cerca de 250 policiais afegãos guarnecem as pontes e as barreiras de controle. Várias obras públicas estão em andamento.
E o mais importante é que a cidade de Garmsir e as aldeias que a cercam estão em paz. Fazem parte de uma área com cerca de 10 quilômetros de comprimento por 10 de largura, controlada por marines, ao longo da margem oriental do Helmand. A área é conhecida como “Cabeça da Serpente” devido à sua forma oblonga. Fora de Garmsir, as forças do Talibã cobrem toda a área e desferem ataques constantes. Do lado de dentro, a vida dos afegãos locais é notavelmente saudável.
Garmsir é um lugar devastado e empobrecido. Nenhuma de suas estradas é pavimentada, o que impede os pequenos agricultores de venderem suas uvas e seu milho em mercados fora da cidade. Não existem telefones celulares, eletricidade ou água corrente. Construir aqui uma cidade capaz de funcionar por conta própria levaria muitos anos. Ainda assim, em meio à calma de Garmsir, os primeiros sinais de uma vida normal começam a aparecer.
Num dia de agosto, acompanhei um grupo de fuzileiros à reunião mensal do conselho do distrito de Garmsir. O comandante do destacamento era o capitão Micah Caskey, oficial encarregado das relações civis nascido em Irmo, Carolina do Sul. Aos 28 anos, Caskey já servira por dois períodos na fase mais dura da Guerra do Iraque. Em 2007, deixou os fuzileiros para começar seus estudos universitários almejando dois diplomas, direito e administração, na Universidade da Carolina do Sul. Passou o verão de 2008 estudando direito no estrangeiro. Mas continuou na reserva dos fuzileiros e poucos meses atrás foi reconvocado.
“Eu já tinha um emprego acertado para o verão”, contou-me Caskey. “E agora faz sete meses que estou aqui. Não posso dizer que tenha sido fácil. Às vezes eu realmente fico em dúvida.”
O governador de Garmsir, Abdullah Jan, já tinha chegado antes para a reunião e, juntamente com Caskey e um grupo de fuzileiros, se instalou no pátio da sede do governo distrital, num círculo de cadeiras de plástico. A escolha do governador Jan ocorreu de acordo com o estranhamente centralizado sistema político do Afeganistão: foi nomeado a seu turno por Gulab Mangal, chefe político da província de Helmand, por sua vez nomeado diretamente por Karzai.
A experiência de Caskey no Iraque fica patente desde o início. Demonstra uma invariável polidez e mesmo uma certa deferência diante de Jan. E mais: cada vez que um dos conselheiros chega, interrompe a conversa e se levanta para apertar-lhe a mão.
“A paz esteja com o senhor”, disse Caskey a Jan. “Fico muito satisfeito de tornar a encontrá-lo depois de tanto tempo.”
Um afegão — um dos assessores de Jan — chegou trazendo uma bandeja de chá e bolo enquanto Jan falava.
“Noventa por cento dos habitantes daqui apoiam o governo”, disse Jan a Caskey. “E talvez uns 10% gostem realmente do Talibã.”
O que me pareceu um exagero. Havia bombas demais plantadas à beira das estradas da região — e mesmo no interior da chamada Cabeça da Serpente. Ainda assim, o que Jan dizia parecia válido: depois que a lei e a ordem se instalam, a opinião pública começa a mudar.
“Vocês”, disse Jan, olhando para Caskey e os demais americanos, “chegam aqui, ajudam e depois vão embora. Os afegãos não têm 100% de certeza de que vocês vão ficar. Não sabem se alguém não virá cortar seu pescoço se contarem aos americanos onde uma bomba foi escondida.”
A reunião do conselho começou quando seus dezesseis membros se acomodaram no chão de uma sala ampla e arejada. Caskey e os outros americanos se instalaram no fundo. A agenda para a reunião era determinar as prioridades numa lista de projetos de desenvolvimento que os americanos bancariam.
“Os americanos só vão pagar pelos projetos que nós escolhermos”, anunciou Jan. “O resto é conosco.”
Os afegãos — todos homens — começaram a falar. A primeira escolha foi unânime: as grandes comportas que davam para os canais de irrigação às margens do rio Helmand, construídas por voluntários americanos nos anos 50, precisavam de reparos urgentes. Alguns dos campos estavam secando.
“Faz trinta anos que ninguém cuida desse canal”, disse Hajji Anwar, um dos membros do conselho.
Com a reunião em pleno andamento, Caskey e os outros americanos se levantaram para ir embora. “Só tenho um pedido”, disse Caskey a um mulá. “O senhor estaria disposto a gravar uma mensagem que possamos transmitir pelo rádio, dizendo que combater o governo viola a ideia de Jihad — que não é a Jihad?”
Jan pensou por um instante e assentiu com a cabeça. Caskey e os outros marines afivelaram seus capacetes.
“Que Deus lhe dê um filho igualzinho a você”, disse-lhe Jan.
A escola primária abandonada em Mian Poshteh que serve de alojamento aos 240 fuzileiros da Companhia Eco do 2/8 não tem quartos, camas, eletricidade nem água. É um prédio sujo e vazio, repleto de homens cansados e sujos. Todos dormem no piso da escola, mais ou menos uns doze por sala, ou no chão de terra do lado de fora, sem camisa no calor intenso. Combatem todo dia. E quando os não atacam as forças do Talibã, as forças do Talibã atacam os fuzileiros.
Nenhum americano jamais tinha chegado a um ponto tão ao sul do país, pelo menos não em caráter permanente. Com menos de 8 mil soldados britânicos cobrindo todo o território da província de Helmand, seu número nunca era suficiente para cobrir os deslocamentos. Garmsir fica uns 20 quilômetros mais acima através de uma única estrada de terra, onde os comboios de abastecimento da Companhia Eco costumam sofrer atentados à bomba quase todo dia.
Mian Poshteh parece Garmsir, só que pior. Não existe governo: nem prefeito, nem conselho municipal e nem polícia. Trinta soldados afegãos vivem aqui, e só dez entre eles saem da base juntos de cada vez. Como em Garmsir, os marines vieram para Mian Poshteh com o projeto de constituir um governo — mas antes precisam derrotar as forças do Talibã.
“Não vamos limpar nada que depois não possamos defender”, disse-me o capitão Eric Meador, comandante da Companhia Eco.
Mesmo com 240 homens, não podem defender grande coisa. Quando a Companhia Eco e o resto do 2/8 forem embora no final de outubro, diz Meador, ele gostaria de já ter assumido o controle de um perímetro que se estendesse por uns 2 quilômetros e meio em redor do seu alojamento. “Já seria muito bom”, diz ele. Para o sul, não existe outra base de fuzileiros por perto.
Depois que vemos um lugar como Mian Poshteh — abandonado, destruído e isolado — não fica difícil entender por que McChrystal acredita não ter soldados em quantidade suficiente para fazer o que o presidente Obama lhe pediu.
Um dos dias típicos da Companhia Eco desenrolou-se no final de agosto, quando seus marines partiram a pé para uma aldeia chamada Tarakai. Comandado por um jovem tenente, Patrick Nevins, de 24 anos, de Chapel Hill, Carolina do Norte, o primeiro pelotão da Companhia Eco caminhava através de uma vasta plantação de milho com as espigas pela altura dos ombros. Os campos tinham sido recentemente inundados, de maneira que se transformaram num lamaçal. A caminhada poderia ser mais fácil se os marines usassem as trilhas elevadas usadas pelos agricultores, mas o Talibã adquiriu o hábito de plantar minas nessas trilhas, de maneira que os fuzileiros seguiam por dentro do milharal propriamente dito. A lama em que pisavam era cortada por valetas e fendas. Os capacetes dos fuzileiros subiam e desciam em meio ao topo dos pés de milho.
Os campos, vastos e verdes, estavam vazios de outros homens.
“Parece que todo mundo daqui tirou o dia de folga”, disse Nevins, abrindo caminho em meio ao milho.
Os verões na província de Helmand são longos e impiedosos, e naquele dia a temperatura chegava quase aos 50 graus. Nevins e seus homens avançavam a custo, em meio ao milharal, totalmente equipados com capacetes e coletes à prova de balas. No calor, até as minhas botas se desfaziam.
Enquanto caminhava, Nevins falou-me um pouco sobre ele mesmo. Parecia uma presença improvável naqueles campos da província de Helmand. Seu pai é um cientista envolvido em pesquisas sobre o câncer na Universidade Duke. “Meu pai é muito bom na área dele”, disse Nevins, abrindo caminho em meio à lama e ao milho. “Acho que eu não quis competir com ele.”
Uma hora mais tarde, o pelotão de Nevins saiu do outro lado. Atrás deles deixaram trilhas de pés de milho pisoteados. “Desculpe pelo seu milharal”, disse Nevins a um afegão parado ali perto.
“Tudo bem”, respondeu o homem.
Chegamos a Tarakai e encontramos um grupo de afegãos. Falavam sobre as eleições para presidente do Afeganistão previstas para dali a alguns dias.
“Não vamos poder votar”, disse Hakmatullah, que, como tantos outros afegãos, só tem um nome. “Todo mundo sabe disso. Somos agricultores e não podemos fazer nada que vá contra o Talibã.”
Os outros disseram mais ou menos a mesma coisa. O Talibã tinha mandado avisar que seus homens cortariam o dedo indicador direito de qualquer um que fosse visto pondo um voto na urna. Não que isso fosse muito provável: a área em torno de Mian Poshteh era tão anárquica que o governo afegão nem mandara ninguém para cuidar do registro de eleitores. A zona eleitoral mais próxima ficava em Garmsir.
Mas havia outros assuntos a discutir. “As crianças estão com medo”, disse um dos homens.
E os adultos também. Tarakai era controlada pelo Talibã, que impunha uma taxa sobre o milho e mantinha a cidade sob vigilância permanente.
“Quando vocês forem embora daqui, o Talibã virá à noite e irão nos perguntar qual foi o assunto desta nossa conversa”, disse um aldeão a Nevins. “Se cooperarmos com vocês, eles nos matam.”
“Abrem as nossas barrigas”, disse outro homem.
“Existe alguma coisa que eu possa fazer por vocês?”, perguntou Nevins.
“Não chegue perto das nossas casas”, disse o primeiro aldeão. “Não tente negociar conosco.”
Nevins mostrou-se cortês, mas insistiu. Os americanos tinham chegado ali, e lá haveriam de ficar. “Vou tentar demonstrar respeito e guardar a devida distância”, disse Nevins aos homens. “Mas tenho um trabalho a fazer, e preciso passar por aqui de vez em quando.”
Nos Estados Unidos, o coro é insistente e cada vez mais numeroso: precisamos reduzir nossa presença no Afeganistão. A missão que nos impusemos é difícil demais e cara demais, e já ficamos por lá bem mais tempo do que deveríamos.
Foi o que disse recentemente George F. Will, um famoso colunista. Assim como Rory Stewart, estudioso e diplomata britânico que passou muitos anos na região. E dizem ainda que esta também é a posição do vice-presidente Joe Biden.
A forma exata desse projeto de redução nunca ficou muito clara, mas a ideia é mais ou menos a seguinte: unidades das forças especiais americanas, ajudadas por aeronaves espiãs Predator, podem manter a Al Qaeda permanentemente fora de prumo, enquanto soldados americanos permanecem no país treinando afegãos para servir no exército e na polícia.
O argumento é atraente, claro: apresenta a esperança de que os Estados Unidos sejam capazes de obter o mesmo resultado — a segurança americana — a um custo muito menor. (O destino do povo afegão propriamente dito fica basicamente de fora desta equação.)
Mês passado, visitei Richard Haass, um dos principais proponentes dessa ideia, em seu escritório de Nova York, onde preside o Council on Foreign Relations.
Haass é especialmente persuasivo, em parte porque não pretende ter respostas fáceis. Ao final de oito anos de má gestão e negligência, diz ele, todas as escolhas com que os Estados Unidos se defrontam no Afeganistão são pavorosas. O peso dos fatos, afirma, sugere que reduzir nossas ambições seja a menos terrível das nossas alternativas.
“Nada garante que uma ação mais intensa vá produzir melhores resultados”, disse-me Haass. “E não acredito mais que o Afeganistão seja tão crucial assim para um esforço global contra o terrorismo. Não estou convencido de que a situação de lá possa ser mudada.”
O grosso da liderança da Al Qaeda, assinalou Haass, vive hoje no Paquistão. E é lá que os Estados Unidos deveriam realmente se concentrar — no Paquistão, que possui população seis vezes maior que a do Afeganistão e pelo menos sessenta ogivas nucleares. “Ninguém quer que o Afeganistão se transforme numa esponja, absorvendo uma fatia desproporcional dos recursos do nosso país”, disse ele.
O general McChrystal e a maioria dos demais oficiais superiores do Pentágono dizem que o argumento de Haass é essencialmente ilusório. Caso os Estados Unidos se retirassem substancialmente do Afeganistão, dizem eles, boa parte do país seria rapidamente tomada pelo Talibã, tornando impossível todo o resto — qualquer treinamento ou ação antiterrorista. E a Al Qaeda logo estaria de volta, possivelmente com a mesma importância que tinha antes do 11 de Setembro, e o Paquistão seria provavelmente o próximo passo.
Quando apresentei o contra-argumento de McChrystal a Haass, ele me respondeu que ficava feliz de não estar no lugar do presidente Obama. “Não vamos nos enganar”, disse ele. “Não vamos encontrar nenhuma medida milagrosa que possa produzir resultados amplos e positivos a um custo modesto. Isso é simplesmente impossível.”
E Haass continuou: “Nunca me canso de citar Yogi Berra [folclórico jogador de beisebol da velha-guarda]. ‘Sempre que chegar a uma encruzilhada, siga por ela.’ Aposto que há muitos dias em que Obama acorda, olha para a encruzilhada que o espera e decide que não vai seguir em frente. Já que as duas alternativas são tão ruins.”
Durante sua viagem a Garmsir, Stanley McChrystal reservou algum tempo para um encontro com Abdullah Jan, o governador local. Os dois se encontraram na mesma sede do conselho onde Jan se reunira com o capitão Caskey.
“Diga o que eu posso fazer para melhorar as coisas”, pediu McChrystal.
Jan pensou algum tempo e produziu uma resposta inesperada.
“Vocês precisam morar num prédio, e não num monte de barracas”, disse ele.
McChrystal fitou-o com um olhar descrente.
“Todo mundo em Garmsir sabe que os americanos vivem em barracas, e sabe que vão embora dentro de pouco tempo”, disse Jan a McChrystal. “Vocês precisavam construir alguma coisa permanente — um prédio. Já que vão precisar de muitos anos para o que querem fazer aqui. E só então as pessoas vão acreditar na permanência de vocês.”
McChrystal assentiu com a cabeça.
“Vamos ficar pelo tempo necessário para que os nossos parceiros afegãos estejam em absoluta segurança”, disse ele. “Mesmo que isso leve muitos anos.”
McChrystal fez menção de levantar-se, mas Jan ainda não concluíra.
“O povo afegão está impaciente”, disse ele. “Faz trinta anos que estamos esperando! Não queremos esperar mais. Estamos perdendo a paciência!”
McChrystal conteve um sorriso.
“Pode acreditar”, respondeu ele a Jan. “Muitas das pessoas para quem eu trabalho também estão perdendo a paciência.”
[1] Uma comissão de inspeção eleitoral da ONU concluiu que um terço dos votos da eleição de 20 de agosto era inválido por “evidência clara e inequívoca de fraude”. No mês passado Karzai cedeu à pressão ocidental e concordou em disputar um segundo turno com Abdullah Abdullah este mês.
[2] No mês passado ocorreu o atentado mais sangrento dos últimos dois anos em Bagdá, com 155 mortos e 600 feridos.
* Tradução de Sergio Flaksman.