CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2024
A madre e as moedas
A reserva secreta em ouro de uma religiosa em vias de beatificação
Guilherme Henrique | Edição 214, Julho 2024
Maria Teodora Voiron tinha 24 anos quando desembarcou em Itu, em junho de 1859. Ela havia enfrentado três meses de viagem depois de sair de Chambéry, nos Alpes franceses, rumo ao interior paulista. Assim que chegou, foi ao encontro do bispo de São Paulo, dom Antônio Joaquim de Melo. Ele observou a tez jovial da moça e sentenciou. “Mas é uma criança. Uma criança! Que faremos com uma criança?” Voiron engoliu em seco o desaforo – conta sua biografia, Uma alma de fé, escrita por Olivia Sebastiana Silva.
A surpresa do sacerdote não foi à toa. Voiron fora escolhida para ser madre superiora no núcleo francês da Congregação das Irmãs de São José de Chambéry no Brasil e para comandar o Colégio Nossa Senhora do Patrocínio, a primeira escola religiosa dedicada à educação de mulheres no estado de São Paulo. Dom Antônio duvidou que a jovem fosse capaz de tanto, mas ela deu conta do recado. “Ela não brigou [com o bispo], porque entendia que seu propósito maior era a missão”, diz Luiza Rodrigues, atual madre superiora da congregação e pesquisadora da história da religiosa francesa.
Teodora Voiron não demorou a perceber que o colégio era frequentado apenas pelas filhas dos fazendeiros de café da região. Contrária ao regime escravocrata que ainda vigorava no Brasil, ela abriu as portas da escola para filhas de mulheres escravizadas. “Imagina o que isso significou na época”, afirma madre Luiza, uma senhora de cabelos curtos e brancos, que discorre com placidez sobre o passado e o presente. Voiron morreu em 1925, aos 90 anos, em Itu, e desde então a devoção à madre só se ampliou. Um processo de beatificação foi iniciado em 1945.
No fim dos anos 1960, passando por dificuldades financeiras depois de seguidas reformas no colégio, as Irmãs de São José decidiram se desfazer de alguns móveis antigos. Para calcular o valor das peças, chamaram o avaliador Henrique Luiz Correia, conhecido entre apreciadores de arte e antiguidades. Em um escritório do convento, Correia ficou encantado com uma papeleira feita em jacarandá.
O móvel do século XIX feito no Brasil, mas no estilo português dom José I, tem linhas curvilíneas e gavetas, além de um tampo superior, que quando aberto se transforma em mesa de escrever. Serve ao mesmo tempo para guardar documentos e papéis e como escrivaninha. Fascinado com a papeleira, Correia pensou em comprá-la, mas era muito alto o preço que ele próprio havia fixado para a peça.
Ao terminar seu trabalho de avaliação, o perito preferiu não cobrar do convento. Como uma forma de agradecer pelo serviço, as freiras lhe deram de presente a papeleira. “Correia tremia de emoção: era um presente das freiras! Colocando o móvel em sua sala, um perfume de jasmim invadiu todos os cômodos da pequenina casa”, contou José Claudino da Nóbrega no livro Memórias de um viajante antiquário, publicado em 1984.
Correia tratou de limpar e restaurar o móvel com esmero. De tanto fuçar a peça, percebeu que a papeleira tinha fundos falsos, escondidos entre as gavetas. Ao abrir um desses compartimentos secretos, o perito fez uma descoberta de cair o queixo: encontrou um saco com 714 moedas de libras esterlinas, em ouro 22 quilates. O saco pesava 6 kg. Junto dele, havia um bilhete:
Sei que a vida está difícil e estas libras representam a economia feita por minhas irmãzinhas durante um longo período. Talvez venham a servir para futuras reformas no convento. Itu, julho de 1892. Madre Teodora.
Atordoado, o avaliador ligou para o amigo e colecionador de arte Hélio Mendes de Almeida, que o ajudou a contar as moedas, todas elas devolvidas à congregação. O ouro descoberto foi utilizado na reforma do convento e na expansão da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Nossa Senhora do Patrocínio, construída em 1958.
Correia morreu em 1970, vítima de um enfisema pulmonar. Antes de partir, cedeu às investidas do amigo Eldino Brancante, também colecionador de arte, para que doasse a papeleira ao acervo do Museu do Mobiliário Artístico e Histórico Brasileiro, inaugurado havia pouco em São Paulo e que hoje se chama Museu da Casa Brasileira.
Em Itu, o desejo dos admiradores de Teodora Voiron é que dê certo o seu processo de beatificação – e que ela seja em seguida canonizada. Em 1989, o Vaticano declarou a francesa “venerável”, o que significa que suas virtudes e práticas foram reconhecidas pela igreja. Agora, é preciso que se confirme um milagre.
Dossiês em latim e italiano com histórias de cura estão prontos, mas o processo não é fácil. “Demanda investigação. Sempre que temos algo mais forte, mandamos para o postulador aqui no Brasil”, explica madre Luiza, referindo-se ao responsável por avaliar processos judiciais de beatificação. Quando ele tiver dados suficientes, o documento seguirá para a Itália. “Nosso arquivo tem cerca de 50 mil cartas de pessoas que alcançaram alguma graça após apelos à madre”, ressalta a historiadora Anicleide Zequini, arquivista do Museu Republicano Convenção de Itu.
Zequini e madre Luiza estão organizando um memorial em homenagem a Teodora Voiron que será inaugurado neste mês, no quarto onde a religiosa viveu seus últimos cinco anos, na Igreja Nossa Senhora do Patrocínio, em Itu. A iniciativa faz parte das celebrações do centenário de morte da religiosa francesa, no ano que vem. Espera-se que as homenagens sejam um incentivo para a conquista da sonhada beatificação. No memorial, serão expostos objetos pessoais de Voiron, como seus livros, sua cama e seus móveis. A papeleira não estará incluída na exibição.
A peça, no entanto, pode ser vista até o dia 29 de setembro na exposição Sentar, guardar, dormir, organizada pelo Museu da Casa Brasileira e o Museu Paulista, da USP, no piso Jardim do Museu do Ipiranga, em São Paulo. “É uma exposição que documenta vários Brasis”, diz Paulo César Garcez Marins, curador do Museu Paulista. A mostra reúne 164 móveis dos séculos XVI ao XXI, e a papeleira é um dos destaques, por sua história curiosa.
A historiadora Maria Aparecida Borrego, uma das curadoras da exposição, explica que as casas de antes do século XX não tinham a espacialidade atual, com quartos separados e ambientes diversos. “Muitas vezes, a intimidade e os espaços de privacidade se faziam junto a esses móveis. Por isso é comum encontrar objetos com a característica da papeleira”, diz Borrego. “Nós também achamos fundos falsos no mobiliário que pertenceu a Diogo Antônio Feijó [regente do Império]. Mas não tinha uma moeda de ouro sequer.”