Um parlamento nada ecológico: quando Arthur Lira foi eleito para presidir a Câmara dos Deputados, com apoio dos ruralistas e bolsonaristas, qualquer utopia de equilíbrio foi sepultada CREDITO: ANGELI_2009
A metamorfose
Como um projeto de lei passou da defesa ao desmonte da política ambiental
Roberto Kaz | Edição 179, Agosto 2021
O projeto de lei nasce bom, e o homem o corrompe. Pelo menos assim foi com o projeto de lei registrado na burocracia do Congresso Nacional como PL nº 3729. Apresentado em 2004 pelo então deputado federal Luciano Zica (PT-SP), o PL tentava criar uma lei geral que protegesse o meio ambiente do impacto provocado por obras de grande porte, como estradas, portos, hidrelétricas e barragens. Em seu parágrafo inicial, dizia o seguinte: “Esta lei disciplina o processo de licenciamento ambiental e sua aplicação pelos órgãos integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente.”
O texto tramitou por dezessete anos a passos lentos, com um parecer aqui e outro acolá, até ser aprovado às carreiras no último mês de maio, depois de passar por uma repaginação completa promovida pelo deputado Neri Geller (PP-MT), um apoiador do presidente Jair Bolsonaro. Na versão de Geller, o que um dia nasceu como uma iniciativa da bancada ambientalista acabou virando um salvo-conduto para empreiteiras fazerem o que bem entenderem com o meio ambiente. Apelidado de “mãe de todas as boiadas”, o PL nº 3729, que praticamente extingue o licenciamento ambiental, agora tramita no Senado, sob relatoria da senadora Kátia Abreu (PP-TO), uma liderança histórica da bancada ruralista.
Embora abrigue 13% das florestas do mundo, o Brasil não tem uma lei bem definida sobre o licenciamento ambiental. Conta apenas com penduricalhos: o artigo 10 da lei nº 6938, de 1981; a lei complementar nº 140, de 2011; e algumas resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que teve seu poder radicalmente reduzido no começo do governo Bolsonaro. A legislação é vaga, e o resultado é uma sobreposição de regras federais, estaduais e municipais, que produzem muita confusão e tornam o licenciamento mais lento, já que o assunto, com frequência, acaba sendo judicializado.
“Nossa ideia era estabelecer limites claros, para que não houvesse dúvida”, explicou o ex-deputado Zica, um petroleiro aposentado que coordenou a Frente Parlamentar Ambientalista naquele ano de 2004. “Não dá para uma barragem ser licenciada só por um município, ou uma usina ser licenciada só por um estado, se o impacto geográfico é muito mais amplo”, continuou. O rompimento da barragem de rejeitos de Mariana, ocorrido em 2015, está aí como prova: a obra foi licenciada pela Fundação Estadual do Meio Ambiente de Minas Gerais, mas o acidente afetou dezenas de municípios no Espírito Santo.
A ideia do PL de Zica, portanto, era criar uma lei geral, estabelecendo de maneira definitiva quais agentes públicos, e em que âmbito, seriam responsáveis por aprovar atividades ou obras de grande impacto. Protocolado na Câmara dos Deputados em junho de 2004, o PL foi encaminhado às comissões de Finanças, Meio Ambiente e Constituição e Justiça, e logo mergulhou num limbo. Foram doze anos de tramitação lenta, até que passasse por três modificações radicais. A primeira ocorreu em 2016, com um parecer do deputado Mauro Pereira (MDB-RS). A segunda foi em 2019, com uma nova versão proposta pelo deputado Kim Kataguiri (DEM-SP). A terceira e última aconteceu em 2021, pelas mãos do deputado Neri Geller. “Levei um susto quando um jornalista me procurou para comentar. Fui ver o projeto e pensei: ‘Que monstruosidade estão fazendo?’”, contou Zica.
Na forma como foi aprovado na Câmara, o PL propõe que quase toda obra tenha o direito de trocar o Estudo de Impacto Ambiental – um procedimento lento, que precisa ser fiscalizado por órgãos reguladores como o Ibama – por documentos de autodeclaração. Ou seja, o empreiteiro interessado em erguer uma usina ou duplicar uma estrada preenche uma papelada dizendo que não haverá impacto, e fim de papo. “Minha esperança é de que o Supremo Tribunal Federal consiga barrar”, disse Zica.
Embora o direito escrito seja tão antigo quanto a civilização romana, o direito ambiental não tem nem cinquenta anos. Surgiu no pós-guerra, um período de relativa estabilidade política, em que brotaram aos montes projetos de infraestrutura para reconstruir o Japão e os países da Europa. “Com o tempo começou-se a perceber que o impacto dessas obras era alto”, disse o advogado e ambientalista Rodrigo Agostinho, deputado federal pelo PSB de São Paulo. O cenário era agravado pelo boom das indústrias químicas, que haviam crescido durante a Segunda Guerra Mundial e transferido suas instalações para países menos desenvolvidos, onde as restrições eram menores. Nos anos 1980, Cubatão, em São Paulo, ganharia o título de cidade mais poluída do mundo.
Em 1972, já antevendo esse tipo de situação, a Organização das Nações Unidas (ONU) patrocinou a Conferência de Estocolmo, na Suécia – o primeiro encontro multilateral voltado exclusivamente à discussão do meio ambiente. O tema era tão novo que apenas 16 dos 113 países participantes tinham algum órgão central para gerir assuntos ambientais. Um deles eram os Estados Unidos, então presidido pelo republicano Richard Nixon. “O Nixon foi o primeiro presidente a sancionar uma lei instituindo o licenciamento ambiental”, disse o ambientalista Fabio Feldmann, ex-deputado federal e autor do capítulo da Constituição de 1988 sobre meio ambiente. “Sempre cito esse caso para rebater a ideia de que essas iniciativas de defesa do meio ambiente são de esquerda.”
Naquele ano de 1972, o Brasil era presidido pelo general Emílio Garrastazu Médici, o ditador que deixou três marcas indeléveis: repressão sangrenta, pujança econômica e ocupação predatória da Amazônia. Logo, a postura da delegação brasileira na Conferência de Estocolmo foi de “atenção e cautela”, segundo um relatório de 36 páginas assinado pelo então ministro do Interior, general José Costa Cavalcanti. No texto, endereçado a Médici, o general explicava que a preocupação ambiental dos países mais ricos poderia decorrer de “fatores de natureza estritamente política”.
“O Brasil foi conservador, chegou a convidar indústrias poluidoras a se instalarem aqui”, contou Feldmann, acrescentando, no entanto, que o país fez uma concessão: criou um comitê, no governo federal, para gerir assuntos ligados ao meio ambiente (a concessão tinha motivos econômicos, já que o Banco Mundial começara a condicionar empréstimos a algumas normas ambientais). No ano seguinte, o secretário-geral do Ministério do Interior, Henrique Brandão Cavalcanti, instituiu a Secretaria Especial do Meio Ambiente (Sema), que seria comandada pelo biólogo e advogado Paulo Nogueira Neto, um professor da Universidade de São Paulo (USP), já então muito respeitado na área de conservação. “Recebi um telefonema do Henrique Cavalcanti, dizendo que acabara de vir do Palácio do Planalto, onde o presidente Médici assinara minha nomeação”, escreveu Nogueira Neto em seu diário, em janeiro de 1974. “Lá pelas 19h15, quando estava a caminho de casa, ouvi na Voz do Brasil o anúncio oficial da nomeação. Não me contive e bati palmas no carro. ‘Viva!’, gritei.”
Nogueira ficaria no comando da Se-ma – que mais tarde se tornaria o Ibama – por doze anos. Teve papel fundamental na elaboração da lei nº 6938 de 1981, de iniciativa do Poder Executivo – aquela que é usada até hoje para legislar sobre o licenciamento ambiental.
Aprovar um projeto de lei é um processo darwiniano, em que sobrevivem não os melhores, e nem os mais fortes, e sim os mais aptos – ou seja, aqueles que se adaptam à composição política do Parlamento daquele momento. Em 27 anos como deputado federal, Jair Bolsonaro apresentou 171 propostas. Como era um parlamentar pitoresco, do baixíssimo clero, conseguiu aprovar apenas duas. Hoje, o mesmo conjunto de propostas seria recebido com tapete vermelho: estaria perfeitamente adaptado ao discurso de capitães, majores e reacionários de toda sorte eleitos em 2018, na esteira do meteoro político que foi a campanha presidencial do próprio Bolsonaro.
Um projeto de lei pode ser apresentado por um deputado ou um senador, mas também por comissões, pelo presidente da República, pelo procurador-geral da República, pelo Supremo Tribunal Federal, por tribunais superiores ou por qualquer cidadão (nesse caso, com o apoio, via assinatura, de 1% do eleitorado). O homicídio qualificado, por exemplo, foi caracterizado como crime hediondo por causa de um projeto de lei apresentado pela autora de novelas Glória Perez, depois do assassinato da sua filha, a atriz Daniella Perez, em 1992.
Assim como uma criança, um projeto de lei não nasce pronto. Ele amadurece e ganha corpo na medida em que começa a tramitar nas comissões da Câmara e do Senado, onde vai recebendo emendas, que podem acrescentar, suprimir ou substituir partes do texto inicial. Dessa forma, uma proposta que começa propondo a legalização da maconha pode muito bem resultar na criminalização do consumo, a depender das mudanças ocorridas em sua tramitação. “Depois que termina o nosso mandato, o projeto continua lá, e a gente perde o controle”, disse o ex-deputado Luciano Zica, o progenitor – mas não o preceptor – do PL nº 3729 de 2004, o do licenciamento ambiental.
O PL nº 3729 teve uma infância, por assim dizer, suave. Entrou na Comissão do Meio Ambiente em 2004, e saiu cinco anos depois, em 2009, mais robusto, acrescido de outros cinco projetos de lei, que lhe foram apensados (assim como um objeto físico, um PL exerce uma força gravitacional sobre os demais: quando a temática é parelha, o mais antigo atrai os que lhe são contemporâneos). Em seu parecer, o relator Ricardo Tripoli (PSDB-SP), então presidente da comissão, apresentou um novo texto, substitutivo. “A questão do licenciamento ambiental […] vem sendo discutida nesta Câmara dos Deputados há mais de duas décadas, sem que nenhum projeto de lei tenha sido transformado em lei até o momento”, escreveu, no relatório. “É evidente que a falta de uma lei federal vem provocando diversos questionamentos quanto à constitucionalidade e à legalidade das normas ora em vigor, além de conflitos de competência que, muitas vezes, extrapolam o âmbito administrativo e batem às portas da Justiça.”
Naquele ano de 2009, Luiz Inácio Lula da Silva caminhava para o fim do seu segundo mandato na Presidência da República, com uma aprovação em torno de 80%. O ambientalista Carlos Minc era o ministro do Meio Ambiente, depois dos cinco anos em que a pasta ficara sob os cuidados de Marina Silva, a mais importante liderança ambiental do país. Entre mortos e feridos, o ar que se respirava era favorável. O PL nº 3729 parecia ter um belo futuro pela frente.
Promulgada no ocaso da ditadura militar, em 1988, a Constituição brasileira é tida como um documento progressista do ponto de vista ambiental. Entre seus 250 artigos há um, o de número 225, que garante a todos o “direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”. Não é trivial: o texto diz que o equilíbrio ecológico é um direito tão básico quanto o de não ser torturado, ou o de se expressar – mesmo que haja um abismo entre a teoria e a prática.
O artigo 225 é dividido em sete parágrafos. O primeiro deles, o mais extenso, diz quais são os deveres do poder público para assegurar a preservação do meio ambiente. Está lá: “Exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental.” O texto foi redigido pelo ex-deputado Fabio Feldmann. “Eu coordenei essa parte da Constituição porque fui praticamente o único deputado eleito com uma plataforma ambiental”, contou.
Uma vez promulgada a Constituição, Feldmann tratou de apresentar logo um projeto de lei que detalhasse como seria o licenciamento ambiental, pois a Constituição só trata do tema de modo amplo e genérico. “O meu projeto praticamente copiava a resolução do Conama sobre licenciamento, que já estava em vigor”, contou. “Tentei enquadrar tudo em uma lei porque assim teria menos chance de ser modificado.” Em português atual: lei resiste a reforma infralegal; resolução do Conama, não.
O projeto de lei, de nº 710, foi apresentado na Câmara em 1988. Passou por três comissões, mas não chegou a ser votado. Dezesseis anos depois, Luciano Zica fez uma versão modernizada do projeto de Feldmann e apresentou sua proposta, batizada de PL nº 3729.
Para que uma obra de grande porte ganhe uma licença ambiental ela precisa ser submetida a um eia-Rima – sigla para Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental. O eia-Rima é um procedimento lento e caro, que precisa ser bancado pelo empreiteiro, a quem cabe provar que seu projeto terá um impacto justificável. Quando concluído, o relatório precisa ser submetido à consulta pública – para que qualquer cidadão tenha o direito de se manifestar – e à avaliação de algum órgão ambiental, que emitirá um parecer contrário ou favorável. O órgão varia de acordo com o tamanho e o impacto do empreendimento: o Rodoanel Mário Covas, em São Paulo, por exemplo, foi avaliado pela Cetesb, a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo. A Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, foi avaliada pelo Ibama.
Grandes obras estão ligadas a grandes interesses políticos, mas a avaliação de um eia-Rima é feita sempre por um corpo técnico, de servidores públicos, que não podem ser demitidos do cargo. Ou seja: não raro um eia-Rima acaba sendo rejeitado. Em 2019, um (hoje estranho) alinhamento astral em torno da construção de um autódromo uniu o presidente Bolsonaro, o então governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, e o então prefeito da capital fluminense, Marcelo Crivella. O autódromo, que ainda contava com o endosso do chefão da Fórmula 1, o empresário Chase Carey, seria erguido sobre um trecho de Mata Atlântica no bairro de Deodoro, um subúrbio carioca. Apesar de toda a pressão – presidente da República, governador, prefeito e diretor executivo da Fórmula 1 –, o relatório foi rejeitado pelo grupo técnico de cinco engenheiros ambientais do Instituto Estadual do Ambiente do Rio de Janeiro, o Inea.
O licenciamento ambiental já obrigou uma concessionária a construir um viaduto só com plantas sobre um trecho da BR-101, no estado do Rio de Janeiro, para que uma população de micos-leões-dourados pudesse circular entre duas áreas de conservação. Obrigou uma fábrica de salsichas a mudar um projeto arquitetônico, também no estado do Rio de Janeiro, para proteger uma população de peixes.
“O licenciamento é um processo de negociação, em que você muda o projeto”, explicou Feldmann. “Mesmo o projeto de Belo Monte, que costuma ser criticado, foi modificado dramaticamente, diminuindo a área a ser inundada.” O ex-deputado explicou que o licenciamento obriga o governo e o empreendedor a ouvirem a sociedade. “Com todos os defeitos, o eia-Rima é um instrumento democrático. Antes construíam uma rodovia na frente da sua casa e pronto. Agora, não. É por isso que governos não gostam de licenciamento.”
Com frequência, um político é visto reinaugurando uma obra já pronta, para colher os louros da empreitada. A transposição do Rio São Francisco, por exemplo, teve trechos inaugurados por Lula, Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro. Com projetos de lei não costuma ser tão diferente. A publicação de um parecer, em uma comissão do Congresso, não impede que outro parlamentar faça um novo relatório, se o presidente da comissão permitir. Como o mandato de um presidente de comissão é de um ano, um PL acaba tendo vários pareceres, que vão se sobrepondo aos anteriores.
O caso do PL nº 3729 é exemplar. Depois do parecer de 2009 escrito pelo deputado Ricardo Tripoli, o PL ganhou uma versão nova, ainda naquele ano, feita pelo deputado pernambucano André de Paula, na época do PFL. Em 2013, sofreu outras duas repaginadas: a primeira do ruralista Valdir Colatto (MDB-SC), que deixou o texto mais amigável ao agronegócio, e a segunda do deputado Penna (PV-SP), que o trouxe de volta à defesa ambiental. Em outubro de 2015, o projeto foi finalmente votado na Comissão do Meio Ambiente – não sem antes ganhar mais um parecer, feito uma vez mais pelo deputado Tripoli. Aprovado por unanimidade, o projeto foi então encaminhado à Comissão de Finanças e Tributação.
Em condições normais, o PL nº 3729 teria passado por mais uma bateria de disputas e relatórios em sua nova comissão. Mas as circunstâncias mudaram em novembro de 2015, com o desastre de Mariana, provocado pela mineradora Samarco, uma subsidiária da Vale. O rompimento de uma barragem com ampliações mal licenciadas despejou 62 milhões de m3 de rejeitos de mineração no Rio Doce, matando dezenove pessoas e incontáveis animais, na maior tragédia ambiental da história do Brasil. Duas semanas depois, um grupo de deputados requereu ao então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que colocasse em regime de urgência a tramitação de outro projeto de lei, o de nº 1700, de 2011, que também versava sobre legislação ambiental. Mas como esse projeto havia sido apensado ao PL nº 3729, o próprio 3729 passou a ter o status de urgente.
O regime de urgência é uma espécie de cercadinho vip dos projetos de lei, em que um texto passa a tramitar com mais rapidez, alheio às regras pesadas que governam a vida de um PL comum. Um projeto de lei só pode entrar em regime de urgência em casos específicos – como para reagir a uma situação de calamidade pública, tal qual ocorria em Mariana. E uma vez que isso acontece, o texto ganha o direito de ser votado em plenário sem a necessidade de aprovação prévia nas comissões parlamentares. Em termos práticos, a urgência permite que um relator mude radicalmente o texto, e o coloque na ordem do dia, sem a chancela de seus colegas de comissão parlamentar. Foi exatamente o que fez o então deputado Mauro Pereira (MDB-RS), com o PL nº 3729.
“O Mauro Pereira era um deputado muito ligado ao agronegócio e à Confederação Nacional da Indústria”, contou a advogada Suely Araújo, que presidiu o Ibama durante o governo Temer e hoje integra o Observatório do Clima, uma coalizão de ONGs da área ambiental. “Ele mudou radicalmente o texto, dando o tom que carrega até hoje.” No parecer em que justificava as mudanças, Pereira utilizou trechos de um relatório apresentado um ano antes pelo deputado Moreira Mendes (PSD-RO), na Comissão de Agricultura: “Estudo promovido pela Confederação Nacional da Indústria, junto a mais de quinhentos representantes empresariais, apontou o licenciamento ambiental como um dos aspectos estratégicos a serem melhorados para conferir maior competitividade para a indústria nacional […]. O Banco Mundial aponta que no setor elétrico, por exemplo, o custo de ‘lidar’ com as questões ambientais e sociais representa em média 12% do valor das obras de construção de usinas hidrelétricas.” Citou que o tempo médio de licenciamento de uma obra vultosa, como uma usina hidrelétrica, era de dez anos. “Na usina de Belo Monte foram investidos mais de 5 bilhões de reais para o atendimento das condicionantes socioambientais”, apontou.
Pereira enumerou, em seguida, as propostas que havia incorporado ao seu parecer: “Destaco a previsão de ritos de licenciamento simplificados, a dispensa de licenciamento, […] a restrição a somente um pedido de informações complementares por parte do órgão ambiental […] e a definição de prazos para a emissão e para a validade das licenças ambientais.” Como estava em regime de urgência, o projeto foi encaminhado, sem votação, à Comissão de Constituição e Justiça, onde recebeu um parecer favorável do então deputado Marcos Rogério (DEM-RO), que hoje integra a tropa de Bolsonaro na CPI da Pandemia no Senado. “O PL pulou essa etapa relevante, onde havia a possibilidade de se chegar a um acordo”, disse o advogado Maurício Guetta, do Instituto Socioambiental. “Se desvirtuou, virou um projeto de ameaça.”
Apesar de estar na ordem do dia desde o momento em que entrou em regime de urgência, o PL nº 3729 aguardou mais de cinco anos até ser votado no plenário. Com o afastamento de Eduardo Cunha da presidência da Câmara em maio de 2016, a Casa passou a ser comandada pelo deputado carioca Rodrigo Maia, então filiado ao DEM. Maia foi eleito para um mandato-tampão, e reeleito duas vezes, em 2017 e 2019. De perfil moderado, ele priorizou pautas que tinham maioria ampla, como a reforma trabalhista.
Para ser votado, portanto, o PL nº 3729 precisaria gerar um consenso entre as diferentes bancadas. José Sarney Filho, então ministro do Meio Ambiente no governo Temer, montou uma força-tarefa para dar ao texto um tom que fosse consistente e politicamente viável. A ideia era entregar um relatório ao deputado Mauro Pereira, para servir de base a um novo parecer, que ele apresentaria para votação em plenário.
“Foram dezenas de reuniões, com gente de ao menos treze ministérios”, contou Suely Araújo, então presidente do Ibama. “Tínhamos feito concessões, reduzindo bastante o texto, faltavam só alguns pontos de dissenso, e o Mauro Pereira parecia disposto a negociar.” O Ministério do Meio Ambiente abriu mão da exigência de licença ambiental para toda e qualquer atividade ligada ao agronegócio. Em contrapartida, pedia que os ruralistas cedessem quanto ao autolicenciamento e à tentativa de preterir as populações originárias, como indígenas e quilombolas, que precisam ser consultadas caso uma obra afete seu território. “Não era ideal para ninguém, nem para nós e nem para eles, mas valeria a pena para diminuir a insegurança jurídica.”
Com o texto final em mãos, Sarney Filho foi negociar pessoalmente com o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, o então deputado Nilson Leitão (PSDB-MT). Propôs um armistício: o texto iria a plenário sem risco de sofrer emendas de última hora de nenhum dos dois lados. Leitão não aceitou, assim como lideranças do setor industrial, como lembrou o deputado Ricardo Tripoli: “O presidente Michel Temer disse a mim e ao Zequinha Sarney, em uma audiência, que ele estava de acordo com o projeto, mas que dois ministros ainda precisavam aceitar: o das Minas e Energias e o dos Transportes.” Não houve acordo. “Eles queriam anistiar segmentos das áreas deles. Mas eu e o Zequinha dissemos: ‘O que vocês querem é impossível, não dá para isentar de multas áreas específicas num projeto de lei.’”
Sem consenso, o texto de Mauro Pereira ficou como estava, e o ministro Sarney Filho se colocou publicamente contra o projeto. A votação, que estava na marca do pênalti, voltou ao meio de campo. “O projeto de lei tem que estar maduro para ser votado; se passa do ponto apodrece”, disse Suely Araújo, lamentando o desfecho. “O texto do Mauro Pereira era bem melhor diante dessa coisa do Neri Geller que foi aprovada. E olha que eu não gostava nem um pouco do texto do Mauro Pereira.” Três anos depois, Rodrigo Maia instalaria um grupo de trabalho, para tentar mais uma vez chegar a um consenso. Para a relatoria, escolheu o deputado Kim Kataguiri, do DEM de São Paulo.
“Quando vi que havia uma pressão do agro para dar andamento ao projeto, criei o grupo de trabalho para fazer o texto avançar sem tanto retrocesso, e com mais controle”, disse Rodrigo Maia (à diferença das comissões temáticas, o grupo de trabalho tem prazo de validade, e está diretamente ligado à presidência da Câmara). “O Kim foi escolhido justamente por não representar nenhum dos lados.” Kataguiri confirmou: “Era uma pauta que mexia muito com a opinião pública, e o Rodrigo Maia não queria ninguém que já tivesse um lado marcado. Foi a minha falta de relação com a pauta que fez com que ela chegasse a mim.” (A falta de relação ficou no passado; hoje, Kataguiri tem defendido todos os PLs contrários ao meio ambiente pautados por Arthur Lira.)
O grupo ouviu dezenas de pessoas entre defensores do meio ambiente e do agronegócio em junho e julho de 2019. Kataguiri apresentaria três versões do texto ao longo daquele período, tentando contemplar gregos e troianos. Mas em agosto, quando as audiências já haviam terminado, apresentou uma quarta versão, totalmente favorável à indústria e ao agronegócio. “Essa versão rompeu com todo o processo de negociação que ele mesmo havia conduzido. Soou como se estivesse manipulando os participantes”, disse o advogado Maurício Guetta, que assessorou o grupo de trabalho em nome do Instituto Socioambiental. O texto final permitia o autolicenciamento e autorizava a ampliação de grandes obras sem a necessidade de haver um novo Estudo de Impacto Ambiental. Também reduzia a participação de órgãos como a Funai e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), além de extinguir a avaliação de impactos indiretos (por vezes, o impacto social decorrente de um empreendimento – pobreza, migração, criminalidade, epidemia – é tão ou mais grave que o ambiental).
“O terceiro relatório do Kim era bem razoável, mas a ganância da indústria não o deixou seguir adiante”, lamentou o deputado Rodrigo Agostinho, que integrava o grupo de trabalho. “Cansamos de ter reuniões, para no final sair esse texto horroroso.” A quarta versão foi pautada por conversas de Kataguiri com a Frente Parlamentar da Agropecuária, com o ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, com o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes e com a assessora Rose Hofmann, secretária de Apoio ao Licenciamento Ambiental e à Desapropriação da Casa Civil. “Nas três primeiras versões, o deputado soltava um novo texto a cada rodada de audiência pública. Mas não houve audiência entre a terceira e a quarta versão, acho que por causa de recesso do Legislativo. Por isso deu essa sensação de ruptura”, defendeu Hofmann. “O problema foi de comunicação.”
Dias depois, dezenas de ONGs – entre elas, o Greenpeace, a WWF-Brasil, o Observatório do Clima e a Fundação SOS Mata Atlântica – publicaram uma carta. “O deputado Kim Kataguiri, designado relator do projeto de lei sobre licenciamento ambiental (PL nº 3729/2004) pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, deu uma guinada de 180 graus, rompeu acordos anteriormente firmados e apresentou, de última hora, um substitutivo que torna o licenciamento exceção, em vez de regra”, diziam, acusando o deputado de sacrificar “o equilíbrio e o consenso para dar lugar a entendimentos às escuras, em detrimento da população.” A carta citava dez pontos críticos acrescentados por Kataguiri, e responsabilizava Rodrigo Maia. “A lambança final do relator deixa mal o presidente da Câmara que, ao designá-lo, orientou o contrário: que todos os esforços mirassem o consenso. A opção pelo confronto e desmonte generalizado do licenciamento ambiental – principal instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente –, se não for imediatamente corrigida, rebaixará a agenda própria do Legislativo à condição de correia de transmissão das políticas predatórias do Executivo.”
Acuado, Kataguiri chegou a chamar os deputados do setor ambiental para uma nova rodada de negociação. “Nós condicionamos a reabertura das conversas a que as mudanças fossem feitas sobre o terceiro texto, e não o quarto, onde já sairíamos perdendo em todos os pontos”, contou Guetta, acrescentando que a exigência deixou Kataguiri enfurecido. “Vocês acham que são maioria?”, perguntou o deputado, segundo o relato.
Kataguiri defende-se, dizendo que nunca houve quebra de negociação. “Para mim foi só um texto que não estava de acordo com as convicções deles como o terceiro texto estava. Se houvesse acordo na terceira versão eu não precisaria mudar. Mas ela foi muito criticada pelos órgãos estaduais de meio ambiente, pela indústria e pelo agronegócio. Por isso, fiz a quarta.” Ele disse que chegou a esboçar uma quinta versão, em que voltava a incluir a avaliação de impactos indiretos, e a limitar o direito ao autolicenciamento. Mas já não havia negociação possível.
Rodrigo Maia terminaria sua passagem pela presidência da Câmara sem avançar a agenda do licenciamento ambiental. Quando Arthur Lira (PP-AL) foi eleito para sucedê-lo, com apoio da bancada ruralista e do governo Bolsonaro, qualquer utopia de equilíbrio foi sepultada. Em março último, entrou então em cena o deputado Neri Geller (PP-MT), que durante nove meses foi ministro da Agricultura no governo Dilma e cujos irmãos, envolvidos com o agronegócio, já foram investigados por grilagem. Geller ganhou a relatoria do PL nº 3729 e mandou ver.
O jornalista Claudio Angelo é coordenador de comunicação do Observatório do Clima. Por acaso havíamos marcado uma conversa por vídeo na tarde de 11 de maio. Quando a imagem pipocou na tela, Angelo se mostrava derrotado, com a cabeça apoiada na mão direita: incrédulo, murmurou que o presidente da Câmara, Arthur Lira, havia pautado para o dia seguinte a votação em plenário do PL nº 3729. O parecer do deputado Neri Geller ficara pronto na véspera, 10 de maio, uma segunda-feira. Ou seja: a bancada ambientalista teve dois dias entre a leitura do novo substitutivo e a votação final.
“Peguei um voo para Brasília assim que eu soube do agendamento”, disse o deputado Rodrigo Agostinho, que presidiu a Comissão de Meio Ambiente até março deste ano, quando o posto foi assumido pela bolsonarista Carla Zambelli (PSL-SP). “Eu achava que, depois dos desastres de Mariana e Brumadinho, a gente não teria a votação de um projeto como esse, tão permissivo. Mas foi lá e teve.” Agostinho chegara a conversar com assessores do deputado Neri Geller nos dois meses em que o relatório estava sendo elaborado. “A assessoria ouviu todo mundo, mas não apresentou o texto para nenhum de nós antes de torná-lo público.” A versão final teve dedo da Confederação Nacional da Indústria e de setores do agronegócio. “O ministro Tarcísio também trabalhou muito nos bastidores para viabilizar isso.”
O parecer de Geller era uma versão do último texto de Kataguiri, mas grotescamente piorado, o que levou toda sorte de associação civil – da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) à SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) à Abrampa (Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente) – a demandarem que Arthur Lira o retirasse de pauta. O repúdio foi endossado por uma carta, assinada por nove ex-ministros do Meio Ambiente dos governos Collor, Itamar, Fernando Henrique, Lula, Dilma e Temer.
“O substitutivo ora comentado abre uma série de exceções ao licenciamento de inúmeras atividades econômicas […] de forma a praticamente criar um regime geral de exceção ao licenciamento, com forte ênfase ao autolicenciamento, uma novidade até então sequer debatida com a sociedade”, alertavam os ex-ministros, para em seguida destrinchar treze pontos graves, dentre os quais:
- A dispensa de licenciamento para uma seleta lista de obras, como redes de energia elétrica, estações de tratamento de água e usinas de reciclagem de resíduos da construção civil, além da pecuária extensiva;
- O autolicenciamento geral e irrestrito a “qualquer empreendimento não qualificado como de significativo potencial de impacto”. Ou seja, à maioria absoluta dos empreendimentos, incluindo até barragens de rejeitos como as de Mariana e Brumadinho;
- A exclusão da análise de impactos diretos e indiretos sobre Unidades de Conservação. Ou seja, se uma obra na hidrelétrica de Itaipu afetar o Parque Nacional do Iguaçu, pior para o parque;
- A terceirização, para estados e municípios, de definições complementares à lei. Ou seja: abre-se a possibilidade de haver regras muito distintas, a depender do local;
- E, cereja do bolo, a autorização, sem a necessidade de licenciamento, para a ampliação de hidrelétricas e estradas, “empreendimentos cuja implantação historicamente causa mais de 95% do desmatamento na Amazônia”.
“Eu acho que esse texto é a favor do país”, defendeu-se Geller, por telefone. “Cinquenta por cento do Brasil não tem saneamento básico, e ainda querem complicar as regras para construir estação de esgoto.” Disse que o projeto não vai resultar em mais desmatamento. “Mas não dá para deixar para a Funai embarreirar uma obra como a da rodovia que liga Manaus a Boa Vista.” Para ele, seu texto nada mais é do que a versão de Kataguiri com três alterações – daí, portanto, a justificativa torta para que a votação fosse pautada no dia seguinte à apresentação do relatório. “A matéria já vinha tramitando desde 2004. Foram anos de negociação e debates diuturnos.”
Geller considera a reação dos ex-ministros do Meio Ambiente um exagero. “Tem alguns ex-ministros ali que são muito amigos meus. E vários deles nem tinham lido o nosso relatório.” Ele disse que chegou a conversar, a posteriori, com alguns signatários da carta – dentre eles, o embaixador Rubens Ricupero, ministro do Meio Ambiente durante o governo FHC, que teria contemporizado o tom da carta.
“Não, eu nem conheço esse deputado”, respondeu Ricupero, também por telefone, quando lhe contei o relato de Geller. “A nossa carta foi preparada com o apoio de gente que conhece muito bem o assunto, sobretudo a Izabella Teixeira, uma das últimas ministras do Meio Ambiente, no governo Dilma. Li com atenção tudo que foi discutido a respeito. A minha convicção é a mesma de quando assinamos.”
No fim das contas, a votação do PL nº 3729 ocorreu na madrugada de quarta para quinta-feira, 13 de maio. O deputado Rodrigo Agostinho disse ter ficado dezesseis horas na Câmara, tentando negociar. “A gente teve que trabalhar com redução de danos. O Neri Geller ficava de piadinha, falando que não adiantava nada. Teve hora que não tinha nem presidente na sessão, e eu tive que presidir, ao mesmo tempo em que lutava contra aquele texto. Era um tal clima de já ganhou que eles nem se sentiam na obrigação de estar lá.” O otimismo dos ruralistas decorria também de uma mudança no regimento da Câmara, feito horas antes da votação, por meio de um projeto de resolução que diminuiu radicalmente o poder que um deputado ou um partido tem de obstruir uma pauta. O texto passou por 300 votos a 122. “Os ruralistas estão com a visão errada de que é preciso ‘tratorar’. E os ambientalistas vão pagar um preço grande por não terem topado aquele texto do Kim”, disse-me o ex-presidente da Câmara, Rodrigo Maia.
Apesar de ser tratado como “a mãe de todas as boiadas”, o PL nº 3729 não é o único projeto de desmonte ambiental a voar em céu de brigadeiro na Câmara dos Deputados de Arthur Lira. Em junho, a Comissão de Constituição e Justiça, presidida pela über-bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF), aprovou o parecer do PL nº 490 de 2007, que diminui radicalmente os Territórios Indígenas. O texto diz que só vale a demarcação daquelas terras que estavam ocupadas – com provas – em 1988, ano em que foi promulgada a Constituição. Mas nem toda aldeia tem prova de que estava ocupada em 1988 (e muitos indígenas fugiram ou foram expulsos de suas aldeias no período militar). Além disso, indígenas são chamados de povos originários porque estavam aqui na origem deste país, muito antes da chegada dos portugueses. É injusto, portanto, estabelecer o ano de 1988 como marco temporal para a posse das terras.
Hoje, terras indígenas são protegidas por uma série de regras que não vigoram em outras áreas. Por exemplo: elas só podem ser atravessadas por uma estrada ou uma rede elétrica caso haja anuência dos próprios moradores. Na prática, um afrouxamento na proteção indígena significa um “libera geral” para a construção civil, mineração, garimpo, agricultura, pecuária, e por aí vai. Em última instância, é um convite ao desmatamento. O projeto agora vai para voto em plenário.
O outro projeto do pacote das boiadas é o de nº 2633, de 2020, que anistia 19,6 milhões de hectares de terras invadidas – a área, estimada pelo Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia), equivale a quatro vezes o estado do Rio de Janeiro. Em termos práticos, o PL entrega florestas a grileiros, que passam a ter o direito de derrubá-las e comercializá-las com o aval do governo. Em julho, a Câmara aprovou, por 330 votos, um requerimento de urgência para levar esse PL ao plenário (além dos suspeitos de sempre, o PSDB e o PDT endossaram o voto da bancada da agropecuária). O texto final deve ser votado em agosto, na volta do recesso legislativo.
“A gente sabia que eles iam passar tudo o que pudessem no primeiro semestre, porque no segundo tem queimadas, e no ano que vem já tem eleições”, explicou o advogado Maurício Guetta, do Instituto Socioambiental. “O licenciamento, a grilagem e a mineração em terras indígenas estão na lista de 35 propostas que o governo apresentou como prioritárias, quando deu apoio à eleição do Arthur Lira.” A instalação da CPI da Pandemia, em abril, tornou o desmonte ainda mais fácil. Com a atenção do país voltada à investigação no Senado, Lira viu o caminho aberto para pautar a agenda da bancada ruralista (ele não respondeu aos pedidos de entrevista).
Quanto ao PL nº 3729, ele agora tramita no Senado, onde precisa ser referendado em plenário, para então ser enviado novamente à Câmara, onde receberá os retoques finais. Caso seja aprovado nessas duas etapas – o que não haverá de surpreender – será então encaminhado ao presidente da República, para ser sancionado.
Em tempos normais, o procedimento no Senado não seria tão rápido. Aos moldes do que ocorreu na Câmara, o PL precisaria tramitar por comissões específicas – como as de Meio Ambiente e Constituição e Justiça – antes de ser votado em plenário. Desde março do ano passado, no entanto, as comissões estão paralisadas, em função da pandemia (o argumento é de que os senadores são mais velhos do que os deputados, e portanto mais vulneráveis à Covid-19). Resultado: todo projeto que chega à Casa tem gozado do privilégio de ser votado diretamente em plenário. Basta que receba um único parecer.
Em junho, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), nomeou a pecuarista Kátia Abreu (PP-TO) como relatora. Ex-ministra da Agricultura no governo Dilma e ex-presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Abreu é também mãe do senador Irajá Silvestre Filho (PSD-TO), autor de um projeto de lei em favor da grilagem. Em fevereiro deste ano, a senadora passou a ocupar a presidência da Comissão de Relações Exteriores. Especula-se, no Senado, que a relatoria de um PL ligado ao meio ambiente pode funcionar como um “passaporte verde” a ela num momento em que a Amazônia chama a atenção mundial. “A expectativa é de que ela melhore o texto, até porque não fica pior do que o que saiu aqui da Câmara”, disse o deputado federal Alessandro Molon (PSB-RJ).
Kátia Abreu não quis ser entrevistada. Mas em junho participou de um debate, a convite da Fundação Fernando Henrique Cardoso, com a ex-ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira e com a ex-presidente do Ibama Suely Araújo. A conversa foi acalorada, mas respeitosa. Abreu explicou que pequenos e médios produtores – 86% do total – são os que mais sofrem com as regras do licenciamento ambiental. “Os grandes produtores têm estrutura de advogados e conseguem resolver.” Disse que o excesso de normas gera corrupção, e reclamou que ações como mitigação e compensação ambiental não deveriam recair sobre o empreendedor. Reclamou, sobretudo, das regras que dificultam o asfaltamento de estradas que passam próximo a áreas protegidas. Citou o caso da BR-158, que vai do Pará ao Rio Grande do Sul, e poderá ter um custo adicional de 180 milhões de reais para ser desviada de um Território Indígena. “O país tem condição de pagar isso?”, perguntou. “Quando a estrada passa dentro da minha fazenda, ou eu faço por bem ou eu faço por mal, porque ela vai passar de qualquer jeito. Por que não pode pagar um benefício para o índio, que vive em petição de miséria?”
Na conversa, Abreu deu a entender que é grande a pressão para que o projeto seja votado. “A maioria do Senado quer aprovar o texto do jeito que está, Suely”, revelou, dirigindo-se a Suely Araújo. “E sabe por quê? Eles nem sabem do projeto, mas estão por aqui com estrada que não sai, com Unidade de Conservação que atrapalha o asfalto, com a licença para criar peixe que não conseguem obter. O pote vai enchendo.” Ainda assim, Abreu se disse disposta ao diálogo. “Precisamos sentar juntas para resolver os detalhes, tirar a prova dos nove, tanto de um lado quanto do outro, da produção, da construção e da proteção ambiental. Eu sou parceira.”
Maior autoridade ambiental do país, Marina Silva estava entre os nove ex-ministros que subscreveram a carta contra o PL nº 3729. Conversamos pelo telefone em 14 de julho, dia seguinte à aprovação, na Câmara, do requerimento de urgência para a votação do projeto de lei que anistia a grilagem. “O que está ocorrendo é a corrupção normativa”, ela disse. “Você pega o crime e muda a lei para deixar a lei em conformidade com o crime.” Citou os casos de Mariana e Brumadinho. “Se você estabelece que os empreendedores poderão fazer obras como aquelas, que passam a estar em conformidade com a lei por meio de um autolicenciamento, é porque a lei passou a estar de acordo com o crime.” Lamentou como Arthur Lira assumiu a liderança do desmonte ambiental depois da demissão de Ricardo Salles, que deixou o Ministério do Meio Ambiente sob a suspeita de participar de um esquema de exportação de madeira ilegal da Amazônia. “Agora tem um Salles 2 no Congresso, e lá é um Salles coletivo.”
O embaixador Rubens Ricupero corroborou: “Estão mexendo no arcabouço legal, que é mais grave do que as portarias que o Salles publicava. Aquilo era fácil de derrubar porque era manifestamente ilegal. Mas agora mudam a legislação. Diante do que ocorre no mundo, é um absurdo que ainda haja gente tão cega no Brasil, levando adiante um retrocesso tão grande.” Ricupero lembrou que em julho a temperatura atingiu mais de 54ºC na Califórnia. “E não é só lá. Houve casos, assim, decorrentes da mudança climática, em lugares como o Canadá e a Sibéria. O Brasil está um pouco fora do planeta.” Enfatizou que está com 84 anos de idade. “Nunca julguei que ainda em vida veria um espetáculo tão melancólico.”
Ex-governador da Bahia e ex-ministro da Casa Civil no governo Dilma, Jaques Wagner (PT-BA) preside a Comissão de Meio Ambiente no Senado. “Tive uma conversa particular com o Pacheco”, contou, referindo-se ao presidente da Casa, Rodrigo Pacheco. “Disse a ele que era importante o Senado se distinguir do governo federal nesses temas. O mundo já está de olho na gente, se passar a ideia de que todos aqui tocam a mesma música, aí desistem.” Wagner disse ter requerido a Pacheco que o texto aprovado na Câmara passasse por sua comissão antes de ser votado em plenário. “Se o projeto ficou dezessete anos na Câmara, para que tanta pressa de ser votado no Senado?” Em tom de lamento, lembrou que o PL nº 3729 tinha um teor favorável ao meio ambiente quando foi apresentado em 2004 pelo ex-deputado Luciano Zica, seu correligionário. “Fico me lembrando daquela frase: ‘Se soubessem como fazem as salsichas e as leis, as pessoas não dormiriam.’”