Doutor Boni: "A qualquer momento, cada um de nós pode estar numa das várias posições: de potencial doador, de parente ou de paciente esperando por transplante." FOTO: EGBERTO NOGUEIRA_ÍMÃFOTOGALERIA_2013
A morte e a vida
Na hora triste da morte, um médico que trabalha como coordenador de doação de órgãos busca dar prosseguimento à vida
Reginaldo Boni | Edição 88, Janeiro 2014
Em 1999, o nefrologista Reginaldo Boni fazia um estágio em transplante de rins em Madri quando entrou no cinema depois de um dia cansativo. Tinha apenas uma vaga ideia do que iria assistir. O filme começava com a morte trágica, na Espanha, do filho de uma coordenadora de transplantes – profissional que organiza o processo de doação de órgãos, operação complexa que inclui a identificação de possíveis doadores em hospitais; a conversa com as famílias depois de constatada a morte encefálica, com vistas a que autorizem a doação; e a realização de exames que atestem se é possível usar os órgãos e tecidos de um doador. Aquela sessão de cinema ajudou a firmar o interesse de Boni pela atuação dos coordenadores, uma especialização que na época era nova no Brasil. Hoje, ele trabalha em dois serviços ligados à doação de órgãos do estado de São Paulo.
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3 DE SETEMBRO, TERÇA-FEIRA_Hoje completo 45 anos. Faz um dia claro e estou dirigindo pela Rodovia Castello Branco em direção à capital paulista. É curioso como o trânsito pode mudar a percepção humana. Quando chego a São Paulo, depois de um fim de semana em Botucatu, não entendo por que as pessoas buzinam tanto. Acho que acontece o mesmo quando volto para o interior: percebo que outros motoristas questionam por que estou tão impaciente. Esse percurso de 230 quilômetros tem sido uma rotina há quatro anos. Trabalho como coordenador de dois SPOTs, Serviços de Procura de Órgãos e Tecidos:[1] desde 2007 na Santa Casa de São Paulo e desde 2010 no Hospital das Clínicas da Universidade Estadual Paulista, a Unesp, de Botucatu.
O telefone toca e paro no acostamento para atender. É a Guareide, meu grande amor, me parabenizando. Fico emocionado ao me lembrar de Lorenzo, de 6 anos, e de Luiza, de 3. Só entendemos nossos pais quando nos tornamos pais.
Ainda na estrada, recebo a notícia do SPOT da Santa Casa de que dois rins de um doador de ontem serão transplantados. Esse SPOT cobre uma área com mais de cinquenta hospitais, que atendem uma população de mais de 3 milhões de pessoas, e possui a maior taxa de doação do estado de São Paulo – são mais de 45 doadores para cada milhão de habitantes. Países como Espanha e Croácia, líderes mundiais em doação de órgãos, chegam a 35 doadores por milhão de habitantes.[2] O SPOT da Santa Casa tem onze enfermeiros que trabalham como plantonistas, quatro biomédicos que realizam a retirada de córneas e poucos escriturários. Ah, eu sou o médico!
O trânsito está infernal e chego à Santa Casa à uma da tarde. Insisto com a Priscila Fukunaga, chefe dos enfermeiros e meu braço direito, que o plantonista do dia deve realizar a busca ativa de potenciais doadores – pacientes cujo exame clínico indicou morte encefálica –, visitando hospitais da nossa área. Isso já é uma rotina em muitos países. Quando implantamos essa metodologia, em 2007, o número de doadores anuais subiu de 30 para mais de 180 em três anos.
São quase seis da tarde, e o telefone segue tocando. Agora um enfermeiro do Rio Grande do Sul compartilha as dificuldades para se chegar ao diagnóstico de morte encefálica em um jovem de 19 anos, vitimado pela violência do trânsito. Concluo que naquele caso, por causa da ausência de um dos olhos, não seria protocolarmente possível fazer esse diagnóstico.
O diagnóstico de morte encefálica no Brasil leva em consideração tanto a morte do tronco quanto a dos hemisférios cerebrais. Podemos pensar em uma árvore onde o tronco é o tronco cerebral, responsável por manter a respiração e algumas capacidades como tossir, enquanto os hemisférios cerebrais são copas cheias de folhas e flores, os neurônios mantidos por galhos que podem mudar de lugar a cada brisa – os galhos representariam as conexões neuronais. Para saber se o tronco está vivo, é preciso testar reflexos como a tosse, a respiração, a contração das pupilas e alguns movimentos oculares. Para testar os hemisférios cerebrais, são necessários exames como o eletroencefalograma, a arteriografia ou um ultrassom específico, o Doppler transcraniano.
Vou à Unidade de Tratamento Intensivo. Acabamos de receber um chamado. É um doador potencial de 51 anos que teve como causa da morte um derrame cerebral, tecnicamente chamado de AVCH, Acidente Vascular Cerebral Hemorrágico. Esclareço algumas dúvidas do médico plantonista sobre a manutenção desse possível doador, que já está em uma situação de grande instabilidade clínica, podendo culminar numa parada cardíaca. Quando isso acontece, já perdemos a possibilidade de utilizar qualquer órgão para transplante.[3]
Fico na Santa Casa até oito da noite. Estou exausto da viagem, da falta dos filhos e da distância de casa.
4 DE SETEMBRO, QUARTA-FEIRA_São três da manhã quando toca o telefone debaixo do meu travesseiro. Já não me assusto mais com as chamadas noturnas. Fico preocupado quando elas não acontecem. O potencial doador teve parada cardíaca e perdemos a possibilidade de doação. Sento na cama e penso em como evitar que isso aconteça. Hoje teremos uma avaliação do SPOT. Discutimos pontos que precisam ser melhorados, entre eles a capacitação dos profissionais de saúde. É preocupante: poucas escolas médicas preparam seus alunos para enfrentar a morte e conversar sobre isso com as famílias.
Recebemos uma notificação de outro hospital. É um senhor de 71 anos. Converso com a médica e ressalto que para ser doador não há limite de idade. Hoje já falamos de idade cronológica e idade biológica. A biológica se refere à nossa condição clínica e aos hábitos de vida que temos. Alguém pode estar com 71 anos e ter idade biológica menor, por ter dieta adequada, praticar esportes, não fumar etc.
O possível doador tem parada cardíaca antes que seja possível entrevistar a família.
6 DE SETEMBRO, SEXTA-FEIRA_Chego à Santa Casa e vou à UTI. Existem dois potenciais doadores. Um com um tumor cerebral e outro com um AVCH. Geralmente, a existência de tumores impede a doação, mas há alguns tumores do sistema nervoso central que são exceções. Outros casos em que a doação fica impossibilitada são os de infecções generalizadas que não respondem a tratamento, e quando o paciente tem doenças transmissíveis pelo transplante, como Aids, hepatite e tuberculose.
Um hospital de Guarulhos informa sobre um terceiro doador potencial. Dos três doadores possíveis hoje, um tem parada cardíaca antes da conclusão do diagnóstico de morte encefálica, a família do segundo recusa a doação, e a terceira família dá seu consentimento.
Temos um doador de 55 anos e um relógio implacável à espreita. Dou a orientação para que realizem a tipificação de compatibilidade. Nesse exame, são determinados os tipos de Antígenos Leucocitários Humanos (HLA, na sigla em inglês) – uma proteína que está na superfície de todas as células do organismo – tanto do doador quanto dos receptores. O exame define quem serão os melhores receptores para o transplante renal. Também solicito que sejam feitas as sorologias, testes para verificar a presença de doenças infectocontagiosas. A retirada dos órgãos e tecidos – os rins, as córneas e o fígado – ocorre antes mesmo dos resultados de HLA e já com os resultados das sorologias negativos.
Aqui me obrigo a uma pausa para entender os motivos da negativa de uma das famílias. Em vida, o possível doador era contra a doação de órgãos. Essa é uma razão frequente, que muitas vezes pode encobrir, como uma névoa, motivos mais intrigantes. Às vezes, os parentes não acreditam na morte encefálica, ou o medo de tê-la por perto é tão grande que torna difícil aceitá-la. Por outro lado, a perda irreparável de um paciente pode despertar no médico tamanho sentimento de frustração e derrota que ele se torne incapaz de conceber que, dessa morte, algo bom possa ser produzido. Nesse caso, custa ao médico iniciar o processo que pode levar à doação de órgãos. Estou convicto de que conversar com os familiares e apoiá-los, independentemente da decisão final sobre a doação, pode ajudá-los na vivência do luto; entender que a doação é um bem para a sociedade – só ela possibilita a realização de transplantes – pode ser uma forma de consolo.
São quatro da tarde. Saio correndo para pegar um voo para Cuiabá. Há cerca de três anos, formamos um grupo chamado Life’s Donor [Doador de Vida], que se dedica à capacitação profissional na área de doação de órgãos e tecidos. Graças a um programa do Comitê Estratégico para o Desenvolvimento de Novos Centros de Transplante no Brasil, do Ministério da Saúde, coordenado pelo doutor Silvano Raia, colaboramos com a formação de especialistas em estados como Acre, Amazonas, Pará, Paraíba, Rio Grande do Norte e, agora, Mato Grosso. Faremos um curso para 32 profissionais da saúde em pleno 7 de Setembro. A independência de muitos pacientes que aguardam por um transplante começa na identificação de um doador.
O avião decola. Começo a revisar uma das aulas, e, enquanto procuro fotos para ilustrá-las, encontro uma de quando eu ainda tinha cabelo! Estou ao lado de Amado Andrés, Beatriz Gil e Juan Carlos Herrero, em 1999, quando fazia um estágio de transplante renal no Hospital 12 de Octubre, em Madri. Num dia daqueles, entrei no cinema para assistir ao que estivesse passando. Não gosto de ler sinopses de filmes: elas roubam toda a visão despretensiosa. Começou o filme: Tudo Sobre Minha Mãe. Surpreendentemente para mim, o início mostrava a atuação dos coordenadores de transplante na Espanha, em especial a trágica morte do filho de uma das coordenadoras, que treinava médicos e enfermeiros na dura tarefa de entrevistar as famílias para que autorizem a doação de órgãos. Quase dez anos depois de assistir ao filme, conheci a enfermeira Carmen Segóvia, que ajudara Almodóvar a escrever o roteiro. Fizemos uma forte amizade e, várias vezes, atuamos juntos em seminários para capacitar profissionais no Brasil.
7 DE SETEMBRO, SÁBADO_Começo dois dias de curso em Cuiabá, com ênfase no treinamento para a entrevista com as famílias que devem decidir sobre a doação de órgãos de pacientes declarados mortos. A entrevista deve ser realizada em local tranquilo, fora da UTI e com os parentes sentados. O entrevistador deve conhecer tudo o que ocorreu com o potencial doador e as etapas do processo de doação. Deve também ser capaz de esclarecer as dúvidas da família e apoiar a decisão tomada, seja ela qual for. É o momento que o profissional da saúde tem para ajudar os parentes na vivência do luto e para comunicar que a doação de órgãos é um direito que o sistema de saúde deve garantir, e não uma obrigação.
Durante o curso, o celular no vibrador toca sem parar. Três recusas, entre elas a da família de uma criança de 4 anos que, vítima de um traumatismo craniano, está em morte encefálica. É uma situação difícil, antinatural e que requer toda a calma para ajudar quem perdeu o chão. Luiza, que fará 4 anos daqui a um mês, me vem à cabeça imediatamente. Durante a simulação de entrevista familiar do curso, sou o pai que perde um filho de 5 anos em um acidente de bicicleta. Choro de verdade. No almoço, ligo em casa e tudo está bem.
8 DE SETEMBRO, DOMINGO_Chegamos de volta a São Paulo às onze da noite. São quase 100 quilos de materiais e equipamentos. Carregamos macas, suportes, painéis e dois manequins simuladores de doadores, que apelidamos de Wanderley e Margareth.
Em Cuiabá, utilizamos os casos que estavam ocorrendo como exemplos reais para a discussão do processo de doação. Esse processo, que já é complexo, pode se converter em algo muito complicado se as etapas forem executadas de forma anárquica. Identificado o potencial doador, o diagnóstico de morte deve ser claramente estabelecido. Somente após o diagnóstico deve ser realizada a entrevista com a família. Se no afã de agir rápido apenas parte da família que pode decidir for entrevistada, podemos contribuir para a geração de um conflito familiar que terminará na recusa à doação.
Como havia deixado o carro no estacionamento do Aeroporto de Guarulhos, volto para Botucatu dirigindo pela Castello Branco. Paro no posto, tomo um café e ligo para o SPOT de Botucatu: sem doadores. Setembro é o mês da doação de órgãos e o dia 27 é o Dia Nacional do Doador. Fala-se muito dos resultados, sobretudo do aumento do número de transplantes.[4] Eu não gosto do tom comemorativo. No meu entendimento, é um período em que todos – eu, meus pais, meus filhos, minha família, sua família – podemos refletir sobre os benefícios que a sociedade poderá ter com a atitude solidária da doação. Hoje, mais de 9 mil pessoas no estado de São Paulo esperam por um órgão. No Brasil, são em torno de 39 mil pessoas.
10 DE SETEMBRO, TERÇA-FEIRA_Hoje teremos dois doadores. Do segundo, é possível a obtenção de ossos, além dos órgãos. Quando falo disso, muitas pessoas se assustam. É uma cirurgia em que somente ossos longos como o fêmur são retirados. Depois é feita a reconstrução, com a colocação de próteses. A doação não mutila o corpo, e os trâmites funerários podem ocorrer normalmente.
11 DE SETEMBRO, QUARTA-FEIRA_De manhã me telefona o meu pai, João Boni, um funileiro perfeccionista e pai dedicado de mais de 70 anos, que, antes de perguntar como estou, pergunta onde estou (a caminho do trabalho em São Paulo). Minha mãe, Antonia, me atualiza com as últimas notícias familiares e recomenda que eu me apegue a Deus para enfrentar a vida.
13 DE SETEMBRO, SEXTA-FEIRA_Chego tarde a Botucatu e passo pelo Hospital das Clínicas. Recebo o aviso de um possível doador em Bauru, a cerca de uma hora daqui. Passo as orientações ao enfermeiro e fico conectado. Durante a madrugada, a família é entrevistada e dá o seu consentimento. É uma jovem vítima de acidente de carro.
14 DE SETEMBRO, SÁBADO_Ativo o roaming internacional do celular e arrumo as malas para ir a um simpósio dos coordenadores de transplantes do Panamá. Participo como professor, e em pouco tempo chego a uma constatação comum a muitos hospitais brasileiros. A falta de identificação dos potenciais doadores, a demora na realização do diagnóstico da morte encefálica e as dificuldades inerentes à comunicação da morte são problemas frequentes. O tratamento para essa situação pode estar baseado na capacitação técnica e na remuneração de profissionais dedicados à doação de órgãos e tecidos.
18 DE SETEMBRO, QUARTA-FEIRA_Um acidente fere gravemente uma funcionária do Hospital das Clínicas. O quadro é sugestivo de morte encefálica. O diagnóstico de morte é realizado. Na entrevista com a família, a manifestação é clara e emocionada em prol da doação. No dia seguinte, os órgãos serão transplantados em pacientes da lista de espera.
Já na estrada para São Paulo, escuto Marisa Monte: “Amar alguém só pode fazer bem.” Isso resume muito a decisão das famílias de doar. Na maioria das vezes, tomar a decisão é difícil, mas inúmeras famílias se sentem confortadas com a doação. Outro ponto é que qualquer um de nós pode estar, em algum momento da vida, em uma das várias posições: de um potencial doador, de um parente ou de um paciente esperando por um transplante. Já assinei a doação de córneas de minha avó materna e vi dois primos não serem transplantados por falta de órgãos.
19 DE SETEMBRO, QUINTA-FEIRA_Chego cedo à Santa Casa. Como faço ao menos uma vez por semana, assino todas as cartas de agradecimento aos parentes dos doadores. São palavras simples, porém sinceras: “Prezado senhor, permita-nos agradecer o ato de solidariedade de vossa família expressada com a doação de órgãos. Em nome dos pacientes que foram beneficiados, agradecemos.”
Tenho escrito essas palavras desde 2006, e conto como cheguei aqui. Em 1999, quando estava prestes a terminar a residência em nefrologia, estagiava no Hospital do Rim e Hipertensão, em São Paulo. Ali tive a honra de ser convidado pelo doutor José Osmar Medina Pestana a colaborar na Organização de Procura de Órgãos da Escola Paulista de Medicina.
Nos primeiros meses de 2003, participei do Congresso da Sociedade Catalã de Transplantes, onde apresentei um trabalho sobre a potencialidade de doação em São Paulo. Depois da apresentação, veio uma série de perguntas, principalmente do doutor Martí Manyalich, um dos principais responsáveis pelo sucesso da doação de órgãos na Espanha. Durante o almoço, ele se sentou ao meu lado e perguntou: “Você gostaria de passar um ano trabalhando na Espanha?” Eu, nervoso, respondi: “Não!” E emendei: “Eu gostaria de passar a vida toda!” Rimos.
O congresso terminava no dia seguinte. Por aquelas coincidências que não chegamos a entender, na van que me levava ao aeroporto também estava o doutor Manyalich. Fomos conversando e fiquei empolgado. No Brasil, conversei com a Guareide e decidimos aceitar o convite. Chegamos em meados de 2003, eu como médico da coordenação de transplantes do Hospital Clínic de Barcelona, e a Guareide como médica da oncologia. Lá comecei o doutorado. Estudava a influência de máquinas de perfusão na preservação de rins de doadores falecidos. Nessa máquina, os rins são irrigados com um líquido frio por mais de seis horas.
O resultado foi promissor e instituímos essa metodologia no Hospital Clínic. Isso me levou a colaborar em outros projetos na Espanha. Hoje sou coordenador acadêmico em Barcelona e no Brasil do curso TPM, que significa Transplant Procurement Management, ou, em português, Transplante, Procura e Manejo. É o principal curso reconhecido pelo Conselho da Europa na formação de profissionais da doação de órgãos e tecidos. Eu e Manyalich nos tornamos grandes amigos.
Em 2006, por entender que poderia colaborar mais com a Terra Brasilis, retornamos. Tive novamente a sorte de encontrar amigos: Luiz Augusto Pereira e Sonia Coria, dois obstinados pelo trabalho, me receberam na Central de Transplantes de São Paulo.
21 DE SETEMBRO, SÁBADO_Participo de mais um treinamento do Life’s Donor, desta vez em Teresina, quando recebo a notícia de um novo potencial doador em São Paulo. É uma mulher de 39 anos com um tumor cerebral cujo tipo desconhecemos. A família é consultada e autoriza a doação. Oriento que a doadora seja levada ao centro cirúrgico e que, imediatamente depois da retirada dos órgãos, o tumor cerebral seja completamente extraído, o que é feito pelo doutor Felipe Vilar, neurocirurgião que colabora conosco. O estudo conclui que o tipo do tumor permite a utilização dos órgãos para transplantes.
Com isso, coração, fígado, pâncreas e rins são transplantados com sucesso. Tudo acontece muito rapidamente, uma vez que o coração deve ser utilizado em menos de seis horas. O fígado e o pâncreas têm até doze horas para serem transplantados e os rins, pouco mais de 24 horas.
22 DE SETEMBRO, DOMINGO_Termino o orçamento do SPOT da Santa Casa para 2014. Somando todos os procedimentos pagos pelo SUS na atividade de doação de órgãos, e subtraindo os gastos do SPOT, fecharemos 2013 com déficit financeiro. É preocupante, mas a alta administração da Santa Casa entende que o benefício social justifica manter o serviço funcionando, e atua junto ao governo para solucionar o problema. A adequação dos valores pagos pelo SUS poderá ser uma saída, já que trabalhamos com uma estrutura suficiente e comprometida com o atendimento 24 horas por dia.
23 DE SETEMBRO, SEGUNDA-FEIRA_O dia ainda não amanheceu. Um homem de 52 anos tem declarado o diagnóstico de morte encefálica na Santa Casa. A causa é um tumor cerebral. Novamente, temos que realizar a retirada do tumor imediatamente após a retirada dos órgãos. Se pudesse parar o relógio por algumas horas… Mas não posso. O jeito é correr para que a biópsia chegue ao Serviço de Patologia, que o resultado saia e que possamos transplantar os órgãos. A Central de Transplantes é avisada.
Cada um dos doadores é sempre comunicado à Central Estadual de Transplantes. Utilizando um sistema informatizado, a Central consegue em poucos minutos saber o destino dos órgãos. O sistema garante a alocação segura, ética e justa dos órgãos doados. A Central, ao receber a informação do doador, identifica os receptores e consulta as equipes transplantadoras a fim de que se organizem as cirurgias de retirada e os transplantes. Tudo isso no prazo de seis horas. Algumas vezes, um órgão não encontra receptor em São Paulo. Cabe à Central oferecê-lo à Central Nacional, que buscará receptores em outros estados. Eticamente, o anonimato dos doadores deve ser preservado, assim como a privacidade dos receptores. As famílias não são informadas sobre quem receberá os órgãos doados.
Sentado na cama, em meio ao turbilhão de acontecimentos, a porta do quarto se abre e Lorenzo me intima: “Papai, por que você não desliga o telefone?” Ele se senta ao meu lado, eu o abraço e digo que algumas vezes precisamos conversar ao telefone quando o dia ainda não amanheceu.
Meio da tarde: os órgãos são transplantados.
24 DE SETEMBRO, TERÇA-FEIRA_Faltam três dias para o Dia Nacional do Doador de Órgãos. A imprensa começa a pedir entrevistas. A maioria delas com um tom bastante positivo, mas hoje um repórter me pergunta: “Doutor, quer dizer que a obrigatoriedade do uso do cinto de segurança e a Lei Seca têm atrapalhado muito o serviço de vocês na doação de órgãos?” Inspiro, expiro, e respondo: “O uso do cinto de segurança e a proibição de beber e dirigir são medidas efetivas que evitam a morte de milhares de pessoas, o que é altamente positivo para a sociedade. Se não fossem adotadas, um enorme prejuízo seria causado. Portanto, devemos apoiá-las.”
Em outras entrevistas pude explicar: o diagnóstico de morte encefálica no Brasil está claramente estabelecido desde 1997, quando foi publicada a Resolução nº 1480 do Conselho Federal de Medicina. Por uma lei de 2001, a doação só ocorre com o consentimento familiar, mesmo que em vida tenhamos manifestado o desejo de ser doador. Por isso, conversar sobre o tema com a família é fundamental. A decisão dos parentes no momento da entrevista pode ser ajudada por essa iniciativa.
25 DE SETEMBRO, QUARTA-FEIRA_Recebemos a informação de que há um possível doador, de 11 anos. Os pais, solidariamente, autorizam a doação. Alguns fatos nos carimbam com tinta permanente. Em 1999, entrevistei a mãe adotiva de uma menina de 5 anos, e ela me pediu doze horas para decidir. Agradeci e tentei apoiá-la. Saí do hospital e fiquei esperando o táxi. Fazia um calor sufocante. Nesse momento, senti uma mão no meu ombro direito. Virei-me. Era a mãe. Não sei o que foi mais poderoso, seu toque, seu olhar ou suas palavras: “Deus não deixou que eu tivesse filhos; eu não quero que outras mães sofram a perda de seus filhos que precisem de um transplante. Eu quero doar.” Abracei-a. Ambos estávamos emocionados.
Naquela época, embora a doação tivesse caráter presumido (ou seja, quem não se opunha a ser doador o seria independentemente do desejo da família), realizávamos a entrevista familiar e acatávamos a decisão das famílias. Desde 2001, a lei caracteriza a doação como “consentida”, ou seja, o que vale é a decisão de parentes de até segundo grau, da linha reta ou colateral, e a do cônjuge.
Por outro lado, o que seria feito se os pais dessas crianças mortas não tivessem autorizado a doação? Devemos manter o corpo conectado a equipamentos de ventilação e outros ou devolvê-lo prontamente à família? Se o morto se converte em doador, os órgãos são retirados e o corpo (depois de dignamente recomposto) é devolvido à família. No caso de não ser doador, o adequado é que o corpo também seja devolvido imediatamente aos parentes. Mas isso, na sociedade, ainda sofre resistência. Manter uma pessoa morta em um leito de UTI, quando os familiares já decidiram pela não doação de órgãos, pode ser compreendido como uma prática médica inadequada, no meu entender. Embora já exista legislação que respalde a suspensão de todas as medidas de manutenção e suporte ventilatório do morto, muitos colegas relutam em fazer isso.
Lembremos o caso da jovem Eloá. Vítima de violência brutal em outubro de 2008, ela teve o diagnóstico de morte encefálica estabelecido (e novamente saliento que isso é morte!). Foi um episódio marcante não só pela agressividade e a exposição que a jovem sofreu, mas também pelo desconforto que senti ao ouvir noticiado: “Caso a família de Eloá autorize a doação, realizaremos a retirada dos órgãos. Caso contrário, não vamos desligar os aparelhos porque eutanásia é crime no Brasil.”
Essa confusão não pode se perpetuar na sociedade. A eutanásia trata da suspensão do tratamento de pessoas vivas e não é prática legal no país. Aqui falamos de mortos. Pessoas mortas (em morte encefálica) podem ser doadoras e, se não forem, têm o direito de ter interrompida qualquer modalidade de suporte. Aliás, a morte, em seu conceito atual, é sempre encefálica. Mesmo quando o coração para primeiro – em consequência de um infarto, por exemplo – a morte acontece no momento em que o cérebro deixa de ser irrigado e todas as suas funções param, incluindo a que comanda a respiração. É por isso que uma pessoa em morte encefálica cujo coração segue batendo – porque está recebendo oxigênio por meios artificiais – está morta.
26 DE SETEMBRO, QUINTA-FEIRA_Recebo vários telefonemas durante a noite, com informações sobre um potencial doador de 63 anos. São obtidos os rins e o fígado seis horas depois da entrevista familiar.
27 DE SETEMBRO, SEXTA-FEIRA_Sentado na sala de entrevista familiar do SPOT da Santa Casa, arrumo a gravata. Raramente uso gravata, mas em ocasiões especiais ela cai bem. Participo todos os anos na Santa Casa do ato ecumênico em agradecimento às famílias dos doadores. Invariavelmente, esse é um dia de muita reflexão. Às dez da manhã, o sino da capela do pátio interno toca por vários minutos. Muitos se aproximam. A capela está quase cheia. Sou chamado para falar. Digo o que sinto, intensamente. Agradeço às famílias dos doadores que ali estão pela generosidade extrema e falo das dificuldades de tomar essa decisão. Vejo a maioria dos rostos e lágrimas, muitas de tristeza, outras de alívio, como no caso dos pacientes transplantados. Não posso deixar de comentar o papel dos líderes religiosos, que, embora representem diferentes crenças, sempre concluíram que a doação era uma decisão que expressava intenso amor pelo próximo.
Termina a cerimônia. Sou chamado pelo provedor da Santa Casa para atender um casal. Um senhor e uma senhora de meia-idade me falam da dor da perda. Sua filha de 12 anos havia sido doadora meses atrás. Estamos todos emocionados. A filha deles também se chama Luiza.
Volto para o SPOT e prefiro ficar quieto. Vejo com Priscila os últimos detalhes do curso TPM que começa em 5 de outubro, no Rio de Janeiro. O doutor Eduardo Rocha, que foi por vários anos coordenador da Central de Transplantes do Estado do Rio, é o grande responsável por possibilitar que o TPM ocorra no Brasil. Eduardo é um entusiasta. Há quatro anos temos formado, em cada edição, mais de cinquenta profissionais cariocas e de outros estados.
28 DE SETEMBRO, SÁBADO_Planejo atividades com minha família em meio a novos telefonemas e à informação de dois possíveis doadores. Uma das famílias autoriza a doação. A esperança, que deve ser uma constante, não termina com a morte. Hoje, alguém viverá.
[1] O estado de São Paulo tem dez SPOTs, que, com sede nos principais hospitais públicos e filantrópicos, cobrem todo o estado. O coordenador de um SPOT é geralmente um médico que, à frente de um grupo de profissionais de saúde especializados, organiza todas as etapas da doação de órgãos em sua área. Em 2009, o modelo foi regulamentado pelo governo federal e começou a ser implantado em outros estados, que utilizam a denominação Organizações de Procura de Órgãos e Tecidos, ou OPOs.
[2] No Brasil, a taxa em junho de 2013 era de 13,3 doadores por milhão de habitantes, com grande variação entre os estados. Distrito Federal, São Paulo, Santa Catarina, Ceará e Paraná atingiram a taxa de 20 doadores por milhão, meta nacional para 2017 e semelhante ao índice da Noruega.
[3] No Brasil, a doação acontece depois de constatada a morte encefálica, mas quando o coração do doador ainda está batendo. Há países que também trabalham com o chamado “doador com coração parado”, em que os órgãos são utilizados depois de procedimentos de preservação.
[4] Em 2012 foram realizados 7 457 transplantes de órgãos no Brasil (excluindo transplantes de medula, ossos e tecidos como córnea e pele). O aumento em relação a 2003 foi de 68%.
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