ILUSTRAÇÃO: EMILIANO PONZI
A onda
Uma tragédia no México
Francisco Goldman | Edição 75, Dezembro 2012
Era julho de 2007. A casa que eu tinha alugado em Mazunte, uma cidade de praia em Oaxaca, na costa mexicana do Pacífico, tinha tamanho suficiente para acomodar os muitos amigos que minha mulher, Aura Estrada, e eu esperávamos para passar pelo menos uma parte das duas semanas lá, conosco e mais Fabiola – Fabis –, prima de Aura, e seu namorado, Juanca. Originalmente, uma amiga de Aura, Mariana, também viria, mas estava com problemas de dinheiro e nos disse que não poderia tirar férias. E, de qualquer maneira, não queria ir para Mazunte, porque as ondas de lá eram grandes demais. Como? Mazunte é uma praia segura! Foi assim que todos respondemos a Mariana. Como Mazunte está situada numa reentrância curva que barra as ondas e reduz seu tamanho, ímpeto e força, é considerada segura para os banhistas. Perto de Puerto Escondido, Ventanilla e San Agustinillo, abertas para o oceano, ficam as praias perigosas. Entrar no mar numa delas equivale a pôr a vida em risco. Mas nós todos adorávamos Mazunte. As ondas de lá podiam até ser altas, mas não me assustavam. Pareciam iguais às de Wellfleet, em Cape Cod, no Massachusetts, onde aprendi a pegar jacaré na adolescência.
Poucos anos antes de conhecer Aura, estive em Puerto Escondido para passar o Réveillon do milênio com alguns amigos. Quando chegamos lá, só se falava de uma onda fora do comum que, na véspera, tinha atirado três surfistas nas pedras da ponta da praia, matando os três. Na primeira manhã, dei um mergulho e depois fui tomar café num bar da praia, onde o garçom me contou que, da última vez que entrara no mar, tinha saído sangrando dos dois ouvidos. Naquela noite, no meu quarto de hotel, fiquei deitado na cama escutando as ondas, que agora me soavam como se esmigalhassem ossos.
Só fui entrar de novo na água em Puerto Escondido mais de quatro anos depois, quando Aura e eu fizemos uma aula de surfe num fim de semana prolongado que passamos lá. Uma onda me pegou de surpresa na hora em que eu me acocorava em cima da prancha, me derrubando. Minha cabeça bateu no fundo de areia com uma força que me deixou tonto, transmitindo o impacto a toda minha espinha. Atordoado e trêmulo, fui me sentar na praia. O instrutor riu. Disse que Aura tinha mais talento natural para o surfe do que eu. Ela estava estendida numa prancha, e o instrutor, de pé com água pela cintura, a puxava de um lado para o outro como uma criança num trenó, e depois a soltava para deslizar na espuma reluzente de ondas que tinham quebrado longe da areia. Depois ficamos sabendo que ele não era um instrutor autorizado. Tinha mentido para nós, pegando as pranchas emprestadas na loja de um amigo, este sim dono de uma escola de surfe autorizada. Nossa aula acabou quando a mãe do amigo chegou gritando na praia, dizendo para o rapaz que ele ia acabar nos matando, e mandou que devolvesse as pranchas imediatamente.
Foi nesse fim de semana que pedi Aura em casamento. Àquela altura estávamos juntos havia quase um ano, e morávamos no Brooklyn, apesar da diferença entre as nossas idades e situações: ela tinha 27 anos, era da Cidade do México e terminava o curso de literatura latino-americana na Universidade Columbia, graças a uma bolsa da Comissão Fulbright; eu tinha 49 anos, nascido em Boston, filho de imigrantes russo e guatemalteco, trabalhava como jornalista e escrevia um romance. Levava comigo na viagem um anel de diamante que escondi no cofre do quarto, esperando o momento certo. Toda manhã, Aura e eu tomávamos o ônibus para ir à praia em Mazunte, e pensei em fazer o pedido de casamento lá mesmo. Mas onde eu poderia esconder o anel quando fosse para a água? Sempre me preocupei com os ladrões naquela praia.
Na última noite da viagem, eu ainda não tinha feito o meu pedido. Meu pescoço estava rígido e dolorido depois daquela aula de surfe. Peguei um resfriado, e o camarão estragado que tinha comido na noite anterior me causava espasmos no estômago. Tudo que consegui comer no restaurante do hotel, na hora do jantar, foi uma canja, e fiz uma margarita render o máximo possível. Ainda assim, eu não podia voltar para a Cidade do México, onde estávamos passando o verão, sem ter pedido Aura em casamento. Pedi licença para me levantar da mesa e fui até o quarto. Caía uma chuva fina, uma dessas garoas mornas dos trópicos que mais parecem o ar saturado de umidade do interior de uma nuvem, suave como seda contra o rosto. E podia ser ainda mais romântico, pensei, fazer o pedido ao ar livre, na praia, sob aquela chuva. Abri o cofre, peguei o anel e guardei no bolso. Aura entrou no quarto. “Vamos até a praia”, eu disse. “Por quê?”, perguntou ela. “Não quero ir. Está chovendo.” “É só um chuvisco”, respondi. “Venha, temos que ir. Eu quero te pedir uma coisa.” Ela olhou para a minha mão no bolso e sorriu. “Peça aqui mesmo”, disse ela, rindo. “Ay mi amor, o que é isso no seu bolso?” “É sério”, respondi. Tirei a caixinha do bolso e encostei um joelho no chão.
Numa daquelas manhãs, a bordo do micro-ônibus a caminho de Mazunte, tivemos a companhia de um mexicano que morava na Suécia e tinha vindo passar as férias com sua mulher sueca. Ele estava sentado em frente a Aura, do outro lado do corredor, e protagonizava um fervoroso e ininterrupto monólogo sobre o México e suas praias. A Suécia tem muitas vantagens, mas nenhuma praia como Mazunte! Chegou a recitar uma longa lista de frutas tropicais que cresciam na costa; entre elas, enfatizou, cinco variedades diferentes de banana. Nunca tinha estado antes em Mazunte. Tanto ele como a mulher usavam chapéus de caubói novos em folha. Aura adorou aquele ar de nerd desajeitado – As melhores praias do mundo! Cinco variedades de banana!
Mais tarde, estávamos sentados na praia quando surgiu um burburinho. Ouvimos pedidos de socorro e vimos banhistas correndo para ajudar alguém que tinha sofrido um acidente. Fomos também, e encontramos o mexicano da Suécia deitado de bruços numa poça relativamente rasa de água, debatendo-se e esperneando como se estivesse a ponto de se afogar. Foi carregado até a praia e depositado na areia, onde ficou deitado, tossindo, cuspindo e arquejando, com a mulher agachada ao seu lado. Alguém nos contou o que houve. Ele foi derrubado por uma onda e, aparentemente desorientado depois de ficar encoberto, acabou bebendo água e entrando em pânico, mesmo depois que a onda recuou, deixando-o praticamente na praia. Ele estava bem. Voltamos para as nossas cadeiras. Mais tarde, vimos o mexicano e a mulher passarem por nós arrastando os pés, com os chapéus de caubói, carregando suas coisas. Nós nos despedimos, mas só a mulher respondeu; o afogado continuava com os olhos fixos na areia, tomado pela depressão. Depois, rimos da lembrança do sueco-mexicano – uma história engraçada e triste sobre os perigos de um entusiasmo ingênuo, mais que um episódio de perigo real.
Para a nossa viagem do verão de 2007, reservamos passagens no ônibus noturno de primeira classe que ligava a Cidade do México a Puerto Escondido, cujos bancos praticamente se transformavam em leitos. Juanca precisava trabalhar nos dias seguintes, mas viria ao nosso encontro no fim de semana. Na sexta-feira anterior à nossa partida, Aura, matriculada no mestrado, além do doutoramento, mostrou-me um esboço de um conto que estava escrevendo, “La vida está en otra parte”, sobre um professor injusto. Elogiei muita coisa no conto, mas disse a Aura que o fim estava chegando cedo demais. No dia seguinte, à uma da tarde, eu estava saindo da academia quando recebi uma mensagem de Aura no BlackBerry: “Fabiola está aqui… preparei ovos e café para ela. Ainda estou tomando café e trabalhando no meu conto, que já mudou bastante. Você falou a verdade ontem, quando disse que eu sou uma artista? Ou só estava querendo me agradar????”
Respondi: “Claro que eres una artista, mi amor, de máxima sensibilidad e inteligencia.”
E a troca de mensagens me lembrou de uma conversa que tivemos no nosso primeiro encontro, quase quatro anos antes.
“É um robô?”
Aura me mostrava um desenho que tinha feito, de um par de sapatos de amarrar cercado de minúsculas notas manuscritas e traços de linhas oblíquas e onduladas. “São sapatos que atendem quando você chama”, ela disse.
“Está querendo dizer que basta você chamar ‘Ei, sapatos, venham cá’ que eles vêm andando na sua direção?”
“Isso mesmo”, respondeu ela. “Bem, você não pode estar muito longe. E eles não conseguem subir nem descer escadas.”
Estávamos sentados no sofá do apartamento onde ela tinha crescido, em Copilco. O caderno dela estava aberto em seu colo. Os sapatos tinham sido invenção dela, mas na época eram apenas uma ideia. O mecanismo robótico seria incorporado aos sapatos, ela explicou. A engenharia envolvida no deslocamento era complicada, ela disse, “mas imagine um pentâmetro iâmbico sincronizado”.
“É uma invenção incrível”, comentei. Ela abaixou a cabeça como um orgulhoso cavalo de circo, e agradeceu. Tínhamos nos conhecido em Nova York, nove meses antes, presentes à palestra de um conhecido em comum. Aura, na época, vivia em Providence, e era bolsista na Universidade Brown. Trocamos nossos dados, e mandei para ela um exemplar do meu romance mais recente, mas não tive resposta. Achei que ela tinha detestado o livro. Mas tudo bem – ela era jovem demais. Melhor esquecê-la. Então, no fim de agosto, ela de repente apareceu em El Mitote, um lugar manjado, onde boêmios e cheiradores se reuniam, perto do bairro de Condesa, na Cidade do México. (Eu sempre alugava um apartamento barato por lá, quando queria passar um tempo longe de Nova York.) Eu bebia no balcão com uns amigos, e lá surgiu ela, bem na minha frente. Eu tive a impressão de que a enxergava através de um nevoeiro – a fumaça dos cigarros, mais minha embriaguez e o meu espanto tímido. “Por que você nunca respondeu meu e-mail?”, ela perguntou. Eu disse que nunca recebi e-mail dela. Mas ela tinha me mandado um e-mail, insistiu, em que me agradecia pelo livro e dizia que estava voltando para Nova York. Eu não achava que ela fosse o tipo de pessoa que deixava de agradecer por um livro, ou achava? “Mas não sei o que pode ter acontecido com esse e-mail”, respondi. “Deve ter se perdido.”
Aura me contou que estava partindo dali a três dias para Nova York, onde começaria seus estudos na Universidade Columbia. A notícia me provocou uma erupção silenciosa de fagulhas. Eu também estava voando de volta, dali a duas semanas. “Então não temos tempo de nos encontrar antes de você voltar”, eu disse, mas ela respondeu: “Por que não?” E combinamos de jantar na noite seguinte.
No sofá, ela foi folheando um caderno até chegar a uma página coberta de palavras escritas com tinta esferográfica turquesa. Era um conto que ela tinha terminado pouco antes. “Quer escutar? É curto, só quatro páginas.” Respondi que queria, claro, e ela leu o conto, sobre um jovem que estava num aeroporto, mas não lembrava se estava chegando ou partindo. Era escrito num tom minimalista de solidão de aeroporto, com um humor doce e impassível. No jantar, eu já antecipava minhas expectativas, tentando calcular dentro de quanto tempo poderia estar com Aura em Nova York. Então ela me pegou de surpresa, me convidando para ir ao apartamento dela. Será que só queria ler o conto? Sentado perto dela, eu via seus lábios formando as palavras, e me perguntava se iria beijá-la dali a alguns minutos, ou horas, ou nunca.
Os pais de Aura tinham trocado aquele apartamento por um novo no ano anterior. E só tinham deixado na sala o sofá onde estávamos sentados e a mesa de jantar cinza-metálico e branca, redonda, em que Aura tinha participado de inúmeras refeições em família. A maioria dos livros e das coisas dela já estava acomodada em caixas de papelão.
Quando ela acabou de ler, eu disse que tinha gostado muito do conto, e ela me perguntou por quê. Enquanto eu falava, ela ficou perfeitamente quieta, como se pudesse perceber as minhas pulsações, registrando-as como um polígrafo. Argumentou que eu só dizia aquilo porque tinha gostado dela. Eu ri e disse: “Sem dúvida, eu gosto de você, mas também gostei do seu conto, de verdade.” Começamos a nos beijar, e terminamos na cama onde ela dormia. Fiquei tão surpreso com esse desdobramento que me sentia como um cachorrinho aos pulos num canteiro de tulipas. Dali a pouco, adormecemos nos braços um do outro. No teto do quarto, centenas de estrelinhas que brilham no escuro.
De manhã, enquanto eu estava no banheiro, ela se debruçou na cama e pegou a carteira nas minhas calças caídas no chão. Quando voltei, ela examinava a minha carteira de motorista. Levantou os olhos e exclamou: “Quarenta e oito anos!”
“É”, respondi, constrangido. Ela tinha 26.
“Achei que você fosse pelo menos uns dez anos mais novo. Achei que teria uns 36.”
“Imagino que eu deva te agradecer. Obrigado”, eu disse.
Aura veio morar comigo no Brooklyn umas seis semanas depois de ter chegado a Nova York, e dois anos mais tarde estávamos oficialmente casados. Como eu geralmente trabalhava em casa, raramente precisava sair da vizinhança, mas os trajetos de Aura eram demorados. Da minha casa, em Carroll Gardens, ela precisava caminhar 25 minutos até a estação do metrô de Borough Hall e, depois, viajar pelo menos uma hora de metrô até a Universidade Columbia. No inverno, o frio no caminho podia ser brutal. Finalmente a convenci a aceitar um desses casacos acolchoados da North Face, envolvendo-a do alto da cabeça até abaixo dos joelhos em náilon azul recheado de plumas de ganso. “Não, mi amor, não fica parecendo que você é gorda, especialmente você. Todo mundo fica parecendo um saco de dormir com esse casaco, mas ninguém liga.” Com o capuz envolvendo a cabeça, os olhos negros brilhantes, ela parecia uma menina índia caminhando pelas ruas toda enrolada, como se estivesse presa às costas da mãe. Ela quase não saía no frio sem aquele casaco.
Outro inconveniente nessas longas viagens diárias era que Aura costumava se perder com certa frequência. Distraída, deixava passar a estação de destino ou tomava o trem na direção errada e, absorvida pelo livro que estivesse lendo, por seus pensamentos ou pelo iPod, só ia perceber o equívoco depois de ter percorrido um bom caminho Brooklyn adentro. Então ela me ligava do telefone público de alguma estação de metrô de que eu nunca tinha ouvido falar: “Hola, mi amor… bueno, estou na estação de Beverly Road. Peguei o caminho errado de novo.” Com a voz firme e objetiva, era só mais uma nova-iorquina atarefada lidando com um dilema da vida urbana, mas com um toque de derrota na voz.
Do primeiro até praticamente o último dia de Aura no nosso apartamento do Brooklyn, eu percorri com ela todas as manhãs pelo menos uma parte do caminho até a estação do metrô, e muitas vezes ela tentava me convencer a ir ainda mais longe, ou mesmo até a Universidade Columbia com ela. Então eu passava a manhã na Biblioteca Butler, lendo ou escrevendo. Almoçávamos no Ollie’s, depois íamos gastar dinheiro com DVDs ou CDs na Kim’s, ou olhar as novidades na Labyrinth Books, da qual sempre saíamos com sacolas pesadas de livros que jamais tínhamos tempo de ler. Nos dias em que eu não ia com Aura até a Columbia, ela às vezes me ligava e pedia que eu fosse encontrá-la ali perto para almoçar. Na maioria das vezes, eu acabava indo. Aura sempre dizia: “Francisco, eu não me casei para almoçar sozinha. Não me casei para passar o meu tempo sozinha.”
Nas caminhadas matinais até o metrô, era Aura que falava quase o tempo todo – sobre as aulas que assistia, sobre seus professores, seus colegas, alguma ideia nova para um conto ou um romance, ou sobre a mãe dela. Quando estava especialmente neurótica, tomada pelas ansiedades de sempre, eu tentava responder com novos estímulos, ou dando nova forma aos antigos. Eu ficava especialmente feliz quando ela resolvia parar no caminho várias vezes para beijar e mordiscar meus lábios. E adorava quando ela se queixava – “Ya no me quieres, verdad?” – se eu não estivesse de mãos dadas com ela ou se não a abraçasse no momento exato em que ela queria. Eu amava esse nosso ritual, a não ser quando aquilo me preocupava. Como é que eu ia conseguir escrever outro livro com essa mulher me fazendo andar com ela todo dia até o metrô, me convencendo sempre a ir almoçar com ela em Columbia?
ADegraw Street, onde nós morávamos, é parte da linha divisória que separa Carroll Gardens de Cobble Hill. Quando me mudei para lá, uns quatro anos antes de conhecer Aura, Carroll Gardens me parecia uma típica área italiana do Brooklyn, com seus restaurantes antiquados, onde mafiosos e políticos costumavam comer, com as imagens da Virgem nos jardins, os velhos jogando bocha na praça e, especialmente nas noites de verão, com tantos tipos valentões falando em voz alta pela rua. Eu sempre me sentia um pouco ameaçado quando passeava por lá. Cobble Hill era onde a mãe de Winston Churchill nasceu, e não tinha mudado quase nada desde então, com uma igreja episcopal e suas casas originalmente construídas para abrigar carruagens. Quando Aura veio morar comigo, as duas áreas já estavam mais ou menos fundidas numa só, ambas tomadas principalmente por brancos emergentes. Durante o dia, você precisava atravessar filas de carrinhos de bebê nas calçadas da Court Street, para ir almoçar ou tomar café em lugares lotados de jovens mães e meninas au pair, além de uma constrangedora quantidade de escritores. A poucos quarteirões dali ficava Red Hook, o porto e o cais. À noite, ouvíamos os apitos dos navios, um som que Aura adorava: aconchegava-se a mim na cama e ficava muito quieta, como se aqueles toques longos e chorosos passassem ao nosso lado flutuando como arraias no escuro.
Nosso apartamento ficava no 2º andar de um brownstone de quatro. Quando a família italiana dona do prédio ainda morava lá, era no 2º andar que ficava a sala de estar da casa, que hoje era o nosso quarto. O teto era tão alto que, para trocar a lâmpada, eu precisava subir numa escada de cinco degraus e depois me erguer na ponta dos pés, com os braços estendidos, em busca de equilíbrio. Aura, assistindo a tudo de sua mesa, no canto, dizia: “Você parece um pássaro de primeira viagem.”
Com exceção da mesa onde eu escrevia, no canto da saleta do meio, entre a cozinha e o quarto, e de algumas antigas estantes, Aura e eu trocamos toda a mobília dos meus tempos desleixados de solteiro. Ela ficava frustrada por não termos ido morar num apartamento novo, livre de vestígios e recordações do meu passado sem ela, embora tenha transformado por completo o apartamento que ocupamos. Às vezes eu chegava em casa e a encontrava empurrando até mesmo os móveis mais pesados de um lado para o outro, mudando o conjunto de um modo que jamais tinha me ocorrido, como se o apartamento fosse uma espécie de quebra-cabeça complicado, cuja solução consistisse em uma distribuição perfeita da mobília.
Na nossa cozinha, a torradeira de Aura marcava cada fatia de torrada com o logotipo da Hello Kitty, que também enfeitava suas laterais. Num certo ano, ela comprou uma sorveteira Cuisinart só para poder fazer sorvete de dulce de leche para sua festa de aniversário – de 30 anos. A essa altura, já tínhamos comprado uma mesa de jantar comprida com extensões dos dois lados, com espaço para os mais de vinte amigos que vieram nesse dia. Preparamos cochinita pibil– carne de porco macia temperada com suco de limão e urucum, enrolada numa folha de bananeira assada até ficar seca como papel – rajas con crema e arroz verde, além de um bolo de aniversário de uma confeitaria mexicana de Sunset Park, incrivelmente decorado com cobertura branca, laranja e cor-de-rosa, e fatias de frutas formando um círculo cristalizado no alto. Poucas pessoas que tivessem conhecido a mim ou a Aura antes do nosso encontro poderiam imaginar que os dois tinham aqueles talentos domésticos.
Muitas vezes de manhã, quando acabava de acordar, Aura se virava para mim na cama e me dizia: “Ay, mi amor, que feo eres. Por qué me casé contigo?” – com uma voz doce e cheia de malícia.
“Soy feo?”, eu perguntava em tom tristonho. Era um dos nossos números rotineiros.
“Sí, mi amor”, respondia ela, “eres feo, pobrecito.” Então me beijava, e eu exibia o sorriso atordoado que se pode ver em todas as minhas fotografias dessa época, um sorriso apatetado que eu trazia sempre no rosto, mesmo no momento em que pronunciei meus votos de casamento.
Houve mais ou menos uma semana, em 2005, meses antes do nosso casamento, em que Aura passou todas as noites acordada, se perguntando se não estaria se condenando ao sofrimento de uma viuvez precoce ao se casar comigo. Toda vez que acordava, eu a encontrava de olhos abertos no escuro a meu lado, emitindo um hálito quente de insônia que parecia produzido pela boca de um forno. Não era lógico supor que eu iria morrer pelo menos vinte anos antes dela? E não seria melhor para ela se prevenir, e poupar-se desse tormento? Conversamos sobre isso mais de uma vez. Eu disse a ela: “Não se preocupe, mi amor, garanto que não passo dos 75. Você ainda vai estar com 50 e poucos, ainda vai ser linda, e provavelmente famosa, e algum sujeito mais moço vai querer se casar com você na certa.” “Você promete?”, perguntava ela, animada, ou pelo menos simulando alguma animação, e eu prometia. “É melhor cumprir a sua palavra, Francisco”, dizia ela, “porque eu não quero virar uma viúva velha e solitária.” “Mas mesmo se eu não morrer aos 75 anos”, dizia eu, “você pode me despachar para algum canto e seguir adiante com a sua vida. Eu não me incomodo. Juro. Contanto que nós tenhamos filhos. Me dê um filho, um filho só, é tudo que eu quero.” E ela respondia: “Está bem, mas eu quero cinco filhos. Ou talvez três.”
Numa tarde, na mesma primavera em que completou 30 anos, Aura olhou para mim da sua mesa, enquanto eu lia deitado na cama, e disse: “Temos tudo de que precisamos para ser felizes. Não precisamos ser ricos. Podemos ir trabalhar em alguma universidade, se for necessário. Temos os nossos livros, a nossa literatura, e um ao outro. Não precisamos mesmo de mais nada para sermos felizes. É muita sorte. Você tem ideia da sorte que nós temos?”
Em outro dia, ainda na mesma primavera, Aura anunciou que tinha decidido que não ia ser uma dessas mulheres que, aos 30 e poucos anos, fazem questão de continuar tão magras quanto eram aos 20; ia desencanar se ficasse rellenita, cheinha. Eu tinha alguma coisa contra?
Quando cheguei de volta ao nosso apartamento em Condesa, naquele sábado de julho de 2007, encontrei Aura e Fabis num estado de grande animação. Fabis tinha falado ao telefone com uma amiga que acabara de chegar de Mazunte, dizendo que o tempo estava ótimo, mas que era melhor irmos logo, porque no meio da semana seguinte iria chover. Aura e Fabis não tinham conseguido trocar nossas reservas – todos os ônibus estavam lotados –, então decidiram por um caminho alternativo. Tomaríamos um ônibus para Oaxaca, passaríamos a noite lá e iríamos de avião para Puerto Escondido na manhã seguinte, um pulo por cima da cordillera, numa companhia aérea local chamada AeroVega. Iríamos perder nossas passagens de ônibus, mas precisávamos chegar à praia com o tempo ainda bom. Hora de fazer as malas correndo!
Será que eu devia me opor a esse novo plano? “Não, já pagamos as passagens de ônibus – precisamos parar de jogar dinheiro fora! E eu tenho consulta com o médico na segunda-feira.” Falei essas coisas, mas sem muita ênfase.
Quando chegamos a Oaxaca, as ruas e praças estavam desertas e escuras, e precisávamos acordar às cinco e meia para chegar ao aeroporto. Passamos a noite num albergue. No dormitório dos homens, outros viajantes já dormiam nos beliches, e eu me deslocava o mais silenciosamente que conseguia, sem acender nenhuma luz. Só tinha um cobertor fino. Dormi de camiseta e calça jeans na cama estreita e dura, e estava furioso comigo mesmo por ter cedido com tanta facilidade àquela corrida cara e tortuosa até a praia. Por que Aura estava tão impaciente?
Onde, enquanto dormíamos naquela noite, estaria aquela onda em sua longa viagem até Mazunte? Tendo feito alguma pesquisa sobre as ondas desde então, sei que ela já existia. A maior parte das ondas superficiais de tamanho razoável percorre milhares de quilômetros antes de chegar à costa. O vento provoca ondulações no mar calmo, e essas ondulações, proporcionando ao vento superfícies onde podem exercer alguma tração, transformam-se em ondas e, à medida que sua altura aumenta, o vento as empurra cada vez com mais força, o que aumenta sua velocidade e, novamente, a sua altura. Quem se desloca não é a própria água, claro, mas a energia do vento; na zona de turbulência que separa o ar do oceano, as partículas de água se deslocam em círculo como os pedais de uma bicicleta, transferindo sua energia o tempo todo para a frente, da base da onda para a crista e de volta à depressão entre as ondas, daí de novo para a frente e assim por diante. A onda de Aura poderia ter surgido uma semana antes ou mais, em alguma tempestade nas águas quentes do Pacífico Sul, até que ela a encontrasse. Onde estaria naquela noite, enquanto dormíamos nos nossos beliches de Oaxaca?
Existe um poema de Borges que termina com os seguintes versos:
¿Quién es el mar, quién soy? Lo sabré el día
Ulterior que sucede a la agonía.
Era eu a onda?
Chegamos à casa de Mazunte no dia seguinte, por volta do meio-dia. Ao final de uma alameda aberta no meio da vegetação, ficava um portão. Entramos e tivemos de subir vários lances de degraus até o chalé, que parecia a casa na árvore da família Robinson, aninhada entre os ramos da floresta tropical. Havia algumas áreas de pátio coberto, e Aura empurrou os móveis de um lado para o outro, criando em pouco tempo um escritório para trabalhar. Escolhi uma varanda menor, na sombra, um andar abaixo. Fabis, designer gráfica, estava definitivamente de férias, e não precisava de espaço para trabalhar.
Mergulhamos no mar naquela tarde. O tempo estava encoberto, e tinha chovido na noite da véspera – as primeiras chuvas em várias semanas. Ninguém com quem falamos sabia se havia a previsão de mais chuva para os dias seguintes. Mas era por causa da chuva que a água estava turva e cheia de detritos, galhos secos e pequenos tufos de grama. Embora Aura tivesse ido muitas vezes a essas praias e adorasse mergulhar ali, sempre ficava com medo das ondas; nesse dia, não estavam muito altas. Ainda assim, ela agarrou o meu braço e me fez ficar esperando com ela na areia, estudando as ondas e calculando seus intervalos, até entrarmos correndo no mar. Boiando na água, ela se agarrava com os braços no meu pescoço e ali ficava até se sentir pronta para nadar mar adentro, furando as ondas até passar a arrebentação, onde a água era sempre mais mansa. Aura adorava ficar ali, nadando sem parar de um lado para o outro como uma foca brincalhona.
El agua está picada hoy”, disse Aura. Entre as ondas maiores havia muitas ondulações de menor porte, pequenas eclosões de espuma, como se pedras caíssem do céu à nossa volta. Outras pessoas estavam na água, pegando jacaré: eram na maioria homens mais jovens, adolescentes e meninos. E me aproximei da arrebentação para pegar uma onda. Passaram algumas, que não consegui descer, mas acertei o cálculo do tempo e, adiantando-me na frente da onda com algumas braçadas, deixando a seguir que seu impulso me alcançasse e me levasse, com os braços estendidos, a cabeça erguida para fora da água, um pouco à frente de sua ruidosa arrebentação, até ser finalmente engolido pela água, impressionado com o ímpeto e a velocidade com que fui levado quase até a areia. Enquanto nadava de volta na direção de Aura, eu ostentava um sorriso de orgulho.
“É perigoso?”, perguntou Aura. Sua curiosidade sobre pegar jacaré tinha sido despertada. Nadava muito melhor que o marido. Se eu conseguia pegar uma daquelas ondas, por que ela não haveria de conseguir?
“É perigoso se a sua cabeça for empurrada para o fundo”, respondi. “Você precisa ficar com a cabeça levantada o tempo todo.”
Na hora de sair da água, ela se segurou em mim até uma onda menor aparecer e aproveitou o impulso para chegar à praia em meio à espuma.
Fomos para a cama cedo naquela noite, subindo para uma plataforma no telhado, onde a brisa do oceano fazia as folhas das árvores à nossa volta se agitarem como as águas de um mar inquieto. Acordamos de manhã ao som de uma cacofonia de pios e grasnidos de aves, deparando-nos com o panorama do arco arredondado da baía e do Pacífico que se espalhava no horizonte, fundindo-se ao borrão azul do céu. Descemos, deixando Fabis dormir mais. Aura estava ansiosa para trabalhar no computador. Preparamos o café e Aura picou um mamão.
Quando me lembro desse dia, o único dia inteiro que passamos na praia, ele parece ter sido dois dias, ou até três; passou muito devagar, como acontece com o tempo quando estamos de férias. O que eu fiz naquela manhã? Nem me lembro. Talvez tenha tentado começar o romance que vinha querendo ler. Também tinha um livro a resenhar, uma nova tradução do português de um romance de 600 páginas do século XIX, Os Maias, de Eça de Queirós. Sentei-me à mesa de madeira rústica na sombra, observando os beija-flores que passavam em meio às plantas e sentindo um pouco de inveja da concentração com que Aura já estava trabalhando, e de como a área de trabalho que ela tinha arrumado era mais agradável que a minha. Em torno das dez e meia, fomos tomar café da manhã no Armadillo, um pequeno restaurante abaixo do nosso callejón. Em seguida, fomos para a praia.
Não me lembro de ter pegado jacaré nesse dia; se peguei alguma onda, a experiência não foi boa. O aviso de bandeira vermelha aos banhistas provavelmente estava lá, porque sempre estava, todos os dias. Nem mesmo o garçom da praia a quem perguntei sabia o motivo, e também não sabia dizer quem era o encarregado de cuidar dela.
Naquela noite, jantamos na praia. A noite estava linda: o céu de um azul profundo e fosforescente, os cordões cintilantes de lâmpadas acesas em torno dos restaurantes ao ar livre, as tochas a gás produzindo chamas de um laranja incandescente. A noite foi escurecendo e se arroxeando até finalmente esconder o mar. O rock que vinha dos restaurantes se misturava com a percussão regular das ondas. Comemos duas pizzas sofríveis, tomamos duas jarras de margaritas aguadas e ficamos muito felizes. Sentíamo-nos donos de uma espécie de riqueza, uma pequena fortuna acumulada em noites na praia, como aquela.
De manhã, Fabis saiu para cuidar de alguma coisa, e Aura e eu conseguimos fazer amor, mas não por muito tempo, num ritmo suave mas ansioso – Aura estava inquieta, preocupada com a possível volta de Fabis. Depois que nos vestimos e descemos até a cozinha, ela encostou a boca na minha orelha e me disse que dali a pouco íamos começar a fazer amor o tempo todo para encomendar o nosso bebê. Eu me sentia cheio de energia e otimismo.
Aura trabalhou bem naquela manhã. Subi as escadas e a encontrei sentada com o laptop, digitando, usando fones de ouvido. Mais tarde, enquanto caminhávamos na praia, ela disse: “Comecei a escrever um conto ótimo.” Aura não costumava falar assim, mas fez a declaração com convicção, meio encabulada. No dia seguinte, talvez ficasse novamente desanimada. Mas alguma coisa tinha começado a acontecer. O conto em que vinha trabalhando tinha melhorado significativamente em poucos dias; naquela manhã, ela quase chegou ao fim – tão perto, de fato, que o conto acabou sendo publicado. Ela vinha trabalhando intensamente desde o começo do ano: por que não poderia ser aquele o momento em que a escrita finalmente faz “clique”, em que você tem a impressão de que uma porta até então trancada finalmente se abre, e as palavras e frases parecem se transportar para uma outra dimensão?
Um aspecto inesquecível daquele dia quase sem nuvens foi a quantidade surpreendente de pessoas na praia, muitas delas na água, inclusive crianças pequenas. Sentados, ficamos observando o pessoal que pegava ondas de peito. Aura comentava as manobras. Dois rapazes musculosos de pele clara, que pareciam irmãos, eram os melhores, manobrando na crista das ondas com os braços estendidos, como super-heróis em pleno voo. Já tínhamos entrado na água pelo menos duas vezes, e em cada uma delas tentamos pegar alguma onda, mas eu só consegui um jacaré muito curto; não acertava o momento exato de me lançar.
Não gostei do jeito do rapaz de cabelos compridos que se instalou na cadeira ao nosso lado. Era muito magro e tatuado, com um piercing no lábio inferior. Por que sentou tão perto? Um amigo dele chegou e estendeu a toalha. Aura disse que queria entrar de novo na água. De novo?
“Olhe só como está lotado de gente”, eu disse. Ainda me espanta que a quantidade de pessoas não tenha feito Aura desistir. A água parecia pontilhada de cabeças de banhistas, e geralmente ela era hipersensível a isso – mal conseguia olhar para uma superfície tão cheia como aquela sem sentir repulsa.
Murmurei para ela que não queria deixar nossas coisas tão ao alcance daqueles caras esquisitos perto de nós. Aura achava que não roubariam nada. Eram só hippies de praia.
“Então vão vocês duas”, eu disse.
“Venha”, Aura e Fabis me pediram. “A água está ótima hoje. Venha com a gente!”
“Não. Dessa vez vou ficar aqui. Eu quero ler.”
Aura usava as botinhas de neoprene que comprou para a viagem, o que lhe dava um andar meio bamboleante, tornando difícil para ela acompanhar o ritmo de Fabis, muito mais alta, enquanto iam para a água. Aura balançava os braços para conseguir mais impulso, a cabeça inclinada para Fabis enquanto falava, alegre e animada. Vista de trás, em seu maiô azul, a forma do seu corpo parecia um pouco oval, muito mais do que era na realidade. Que pessoa adorável, engraçada e linda é a minha Aura, pensei.
Este é o momento que decidiu tudo. Se eu sou a onda, é quando começo a formar minha crista, com uma enchente de amor que me inunda o peito. Mesmo que fosse apenas o prelúdio para um mergulho sem consequências, tenho certeza de que ainda assim eu me lembraria desse momento. Pensei comigo que eu precisava prometer que não me sentiria mais irritado com Aura, com suas inseguranças, sua necessidade de ser tranquilizada. Qual é o problema? Meu Deus, vou amá-la mais do que nunca e, claro, vou mergulhar com ela agora. Ajeitei minhas coisas em segurança, da maneira mais discreta que pude. Guardei minha carteira, minha camiseta, minha sandália e meu livro, que nunca mais tornaria a abrir, na minha sacola de pano de livraria, e dei várias voltas com as alças da sacola em volta da perna da cadeira, que depois enterrei com firmeza na areia. Estava vendo Aura e Fabis no mar, com água pelos ombros, uma de frente para a outra, furando as ondas e depois reaparecendo na superfície. Corri pela areia quente e entrei na água.
Assim que cheguei perto delas, resolvemos pegar jacaré. Desci uma onda tão bem quanto jamais fiz na vida, e fui parar a uns 15 ou 20 metros, triunfante, jogando os braços para cima. Fabis tentou pegar a onda seguinte, mas não conseguiu. A onda que vinha atrás dessa agigantou-se na nossa direção, como que empurrada por uma escavadeira invisível, e ouvi Aura gritar: “Essa eu pego!”
“Essa eu pego!” Essa voz animada e cheia de coragem transbordava com seu último impulso de alegria na vida.
Vi Aura se atirando e pensei, enquanto eu passava por baixo da onda, que essa parecia maior, mais pesada, mais lenta do que as outras, e senti uma pontada de medo. (Ou será apenas um logro da memória?) Voltei à superfície em meio a uma grossa camada de espuma borbulhante – parecia que a água estava fervendo. Fabis estava do meu lado. “Você conseguiu?”, perguntei a ela, “Não, e você?”, mas eu já estava procurando por Aura. “Onde está Aura?” Eu não a via. Desconcertado, corri meu olhar pela superfície agitada, esperando que a cabeça dela emergisse, ofegante, as mãos afastando os cabelos e a água dos olhos. Mas ela não estava na água.
Eentão eu a vi. A espuma que se desfazia a descobria como um cobertor branco que se puxa devagar: suas costas e ombros arredondados e macios. Ela boiava, imóvel, de bruços na água. Alcancei Aura um instante antes de três ou quatro banhistas, e a pegamos e levamos para a praia. Como era pesada. Nós a deitamos de costas na areia. Estava inconsciente, e água corria de suas narinas. Mas então ela abriu os olhos. As pessoas gritavam: “Não mexam nela!” E ela arquejou, dizendo que não conseguia respirar. Alguém gritou: “Respiração boca a boca!”, e eu encostei meus lábios nos dela. Soprei, e senti o ar quente retornando lentamente de volta.
Fiquei surpreso com a inclinação da praia; era como se estivéssemos num desfiladeiro. Já seria assim antes? Uma onda chegou e quase cobriu Aura. Várias mãos a levantaram, ela escapou e tornamos a segurá-la, levando-a para a areia seca e quente. “Um médico, uma ambulância”, eu suplicava. Precisava ficar ao lado dela. Ela disse, “Me ajude a respirar”, e encostei minha boca na dela. Ela sussurrou, “Está muito forte”, e depois da respiração seguinte, “Assim.” Alguém, talvez Fabis, comentou que o susto pudesse dificultar a respiração dela, e depois que se acalmasse ela iria conseguir, e eu repetia para ela, “Aura, você passou por um susto enorme – é por isso que não consegue respirar. Quando se acalmar, você consegue.” Fabis foi procurar ajuda. Pouco antes de ela sair, Aura me disse, “Quiéreme mucho, mi amor.”
Ela não conseguia mexer os braços e as pernas, nem sentia nada nos membros. E me contou isso com o máximo comedimento, como se acreditasse que, mantendo-se muito calma e imóvel, o horror poderia resolver sair em busca de outra vítima. Eu disse a ela que era temporário, que dali a pouco ela começaria a recuperar as sensações. Eu apertava a mão dela, mas ela não sentia nada. Estava coberta de areia. Alguém – com um sotaque que me parecia alemão – não parava de dizer, comum tom de autoridade, que ela não devia ser deslocada. “Aire”, dizia Aura, toda vez que precisava da minha ajuda para respirar. A palavra deixava os seus lábios como uma bolha que estourava mansamente.
“No quiero morir”, disse ela.
“É claro que você não vai morrer, meu amor, deixa de bobagem.” Eu apertava a mão dela, e ia afastando carinhosamente os cabelos da testa. Meus lábios nos dela, sopra, respira, espera, sopra, respira, espera…
O médico nos encontrou antes de ser encontrado por Fabis. Era um jovem magro que parecia um surfista. Talvez fosse estudante de medicina, e não médico. Fabis voltou com a notícia de que só havia uma ambulância em todo aquele trecho da costa, e que no momento ela estava a duas horas dali.
“Aire”, sussurrou Aura.
O jovem médico assumiu o controle da situação. Não podíamos nos dar ao luxo de esperar duas horas, ele disse. Precisávamos levar Aura para o hospital mais próximo, em Pochutla, a uns 20 quilômetros dali. Um homem se ofereceu para levá-la até o hospital na sua camionete. Usaríamos uma prancha de surfe como maca, e Aura iria deitada na parte traseira do carro. Quando o médico pediu ajuda, alguns dos jovens em volta pularam para trás como se um maçarico tivesse sido apontado para os pés deles, mas outros se aproximaram, ajoelharam-se em torno de Aura e a levantaram com todo o cuidado enquanto uma prancha de surfe era enfiada por baixo dela, e a levamos para bordo da camionete. Na parte de trás, eu me acomodei no chão perto da cabeça dela, que segurei com as duas mãos, tentando impedir que se mexesse, enquanto continuava a me debruçar para a frente para ajudá-la a respirar. A camionete jogava na estrada precária de terra, cortada por sulcos de rodas muito fundos, e era impossível mantê-la perfeitamente imóvel. Um jovem estava agachado do outro lado da prancha, tanto para impedir que a prancha deslizasse para a estrada quanto para manter bem presas as pernas de Aura. Ele trazia na mão uma pena verde que passava na sola dos pés de Aura, perguntando se ela sentia alguma coisa. Ela sussurrou que sim, e eu disse a ela que, se conseguia sentir a pena, tudo iria ficar bem. O rapaz com a pena rezava por Aura. “Você parece um anjo”, eu disse a ele. Finalmente chegamos à estrada asfaltada. Uns 45 minutos depois de deixarmos a praia, chegávamos ao hospital em Pochutla.
O hospital ficava nos arredores da cidade, um frágil prédio térreo que parecia uma escola primária rural. A área do atendimento de emergência era pequena e espartana. A equipe manteve Aura em cima da prancha de surfe, que estenderam em cima de uma cama. Puseram-lhe um suporte de pescoço. Mas não tinham sequer um respirador; eu ainda precisava ajudá-la a respirar.
O primeiro médico que veio examinar Aura era claramente alcoólatra, desarrumado, desatento e totalmente indiferente. Fabis estava na sala de espera, fazendo algumas ligações do celular antes que a bateria acabasse. Tentou ligar para a mãe de Aura, na Cidade do México, mas quem atendeu foi o serviço de recados. Não conseguiu tampouco falar com o padrasto de Aura. O carregador do celular tinha ficado na casa de Mazunte. Ela perguntou ao dono da camionete se ele poderia ir buscá-lo, e ele disse que sim. Extraordinariamente, voltou com o carregador em pouco mais de uma hora.
Finalmente trouxeram um respirador de operação manual, e uma enfermeira mantinha o bocal em cima dos lábios de Aura enquanto eu, com as duas mãos, pressionava ritmicamente o balão ovoide de plástico branco que bombeava o ar. Depois de algum tempo, disseram que eu precisaria preencher alguns papéis, e uma enfermeira se encarregou do balão enquanto eu era conduzido até um cubículo exíguo onde havia uma mesa, para ficar à espera de outro médico. Telefonei para a mãe de Aura e não consegui falar com ela, de maneira que lhe mandei um e-mail dizendo que sua filha tinha sofrido um acidente tomando banho de mar, estava no hospital, e pedindo por favor que ligasse imediatamente para mim ou para Fabiola. A bateria do meu telefone estava praticamente acabada. Mandei um e-mail para um advogado amigo, Andrew Kaufman, em Nova York, e para outros, pedindo ajuda para conseguir a transferência de Aura para os Estados Unidos num avião de resgate. Estava descalço, de calção de banho e camiseta. Fabis tinha me entregue uma camiseta. Também teve a presença de espírito de ir correndo recolher as nossas coisas na praia.
O segundo médico era um senhor de idade, com cabelos brancos e bigode. Ele me fez várias perguntas para preencher os formulários, datilografando lentamente as minhas respostas numa máquina de escrever manual; o processo me pareceu interminável. Imaginei ter ouvido Aura me chamando, e abruptamente me levantei e fui embora. Quando cheguei junto dela, havia um terceiro médico presente, um jovem forte com grandes bochechas e um ar de inteligência benevolente. Ele operava o respirador manual, apertando calmamente o balão com as mãos e alternando o olhar atento entre o rosto de Aura e o monitor ao qual ela estava ligada. Perguntei se ela tinha me chamado, e as enfermeiras disseram que não, que estava tranquila. O médico entregou o balão a uma enfermeira, e depois me levou até o corredor para me dizer que Aura precisava ser transferida para um hospital na Cidade do México o mais depressa possível, por ambulância aérea. Seu ritmo cardíaco estava consideravelmente lento, disse, mas tinham lhe aplicado uma dose de adrenalina que restaurara os batimentos quase ao ritmo normal. Quando voltei para o quarto, ele me disse para ficar de olho no monitor e avisar se o ritmo caísse abaixo de quarenta. Quando o médico testou a parte de baixo dos joelhos de Aura com o martelo, houve um pequeno movimento reflexo. Ele correu o martelo pela sola do pé dela e perguntou se tinha sentido alguma coisa, e ela respondeu que sim. As enfermeiras e eu trocamos sorrisos. Então o médico fingiu que repetia o movimento, empurrando o martelo para baixo sem na verdade tocar a pele, e novamente Aura disse que sentia.
Minhas lembranças do que aconteceu naquele dia interminável hão de permanecer para sempre enevoadas e incertas. Sei que Fabiola não parava de falar ao telefone, tentando conseguir uma ambulância aérea. Fui para o corredor, onde tinha deixado minha sacola de pano embaixo de uma cadeira, para pegar minhas sandálias e minha carteira; foi então que descobri que alguém, provavelmente na praia, tinha roubado todo o meu dinheiro e depois devolvido a carteira à sacola. Eu tinha um cartão de crédito, que o ladrão tinha deixado, um American Express imprestável nos caixas eletrônicos mexicanos. Meus outros cartões tinham ficado na casa de Mazunte. Ouvi Fabis no celular dizer, em tom choroso mas urgente, “Mas, mamãe, imagine se fosse eu” – sua mãe tinha perguntado se poderíamos esperar mais um dia pela ambulância aérea. E Fabis disse: “Mamãe, ela pode não aguentar até amanhã.
Finalmente, a família de Fabis encontrou um serviço de remoções aéreas em Toluca que pousaria na cidade próxima de Huatulco para pegar Aura. Já era fim de tarde, e correram até um banco para sacar os 12 mil dólares em dinheiro que a empresa pedia pelo resgate. A irmã de Fabis tinha localizado um neurocirurgião especializado em medula espinhal, pai de uma amiga, considerado um dos melhores da Cidade do México, que iria ficar à espera de Aura no Hospital Angeles, em Pedregal, um dos bairros mais ricos da cidade. Mas havia um novo problema: a ambulância aérea não podia vir porque o Aeroporto de Huatulco, que fechava à noite, recusava a permissão para o pouso.
A pessoa com autoridade sobre o Aeroporto de Huatulco também se chamava Fabiola. Pelo telefone, Fabis disse a ela: “Se a minha prima morrer, você vai carregar isso em sua consciência pelo resto da vida.” Kaufman, o advogado amigo de Nova York, também fazia pressão por seu lado. Seu escritório tinha trabalhado em algumas causas cíveis com um dos advogados mais poderosos do México, e ele tinha convencido esse advogado a ligar para o Aeroporto de Huatulco. Depois desse telefonema, a Fabiola de Huatulco cedeu e concordou em manter o aeroporto aberto até meia-noite.
Quando uma ambulância chegou para transportar Aura até Huatulco, a uns 20 quilômetros de onde estávamos, o jovem médico, na verdade um residente de Guadalajara que só trabalhava no hospital há pouco tempo, apresentou-se como voluntário para nos acompanhar, com o respirador manual. Aura, enrolada num lençol, foi erguida da prancha de surfe e transferida para a maca da ambulância. Fosse quem fosse o dono da prancha, era como se a tivesse doado de presente para ela.
Depois de uma viagem de quase uma hora, chegamos ao aeroporto por uma entrada traseira, e ouvi o gemido de uma turbina de jato em ponto morto no quente ar tropical. O jovem médico não aceitou nem mesmo o valor de uma corrida de táxi de volta a Mazunte; e foi embora, depois de uma rodada de emocionadas e esperançosas despedidas, carregando o respirador manual. Aura foi transferida para uma nova maca e bem enrolada num cobertor térmico prateado. O médico da ambulância aérea nos disse que os sinais vitais de Aura estavam bons. Assim que começássemos a voar, segundo ele, Aura não ia precisar mais de respirador. E era verdade: Aura conseguia respirar sozinha. Ela olhou para mim e perguntou: “Mi amor, puedo dormir un poquito?”
Ela dormiu algum tempo, e então uma última ambulância veio nos transportar do Aeroporto de Toluca até o sul da Cidade do México, para Pedregal. Conosco vinha um médico que mal parecia ter 20 anos, de movimentos rápidos e seguros, um jovem sério e atento, com óculos e traços definidos e delicados. Observava atentamente o monitor, acompanhando os sinais vitais de Aura. E depois disse, com a voz tensa, “Não estou gostando nada disso”. O otimismo da ambulância aérea se dissipou. Hoje não sei dizer se me sinto grato por aqueles últimos momentos de esperança e alívio, ou se acho que fomos cruelmente enganados.
A mãe e o padrasto de Aura, que Fabis tinha finalmente conseguido encontrar, estavam à nossa espera junto à entrada de emergência do hospital. Algumas das tias de Aura também estavam lá. Eram quase duas da manhã. A mãe, com os braços cruzados, olhando fixamente para mim, me disse em tom de acusação: “A culpa é sua.” Era assim que eu lhe devolvia sua filha, a filha que ela me deu em casamento para que eu a protegesse?
Aura estava acordada. Era como se viesse poupando toda a sua energia para poder fazer uma corajosa e última declaração à mãe: “Fué una tontería, Mami.”
Acho que o cirurgião famoso e sua equipe de médicos perceberam quase na mesma hora. Não me lembro de quanto tempo eles levaram para vir falar conosco na sala de espera. O cirurgião era um homem alto e corpulento. Ele nos contou que Aura tinha fraturado a terceira e a quarta vértebras da coluna, seccionando os nervos que controlavam a respiração, o tronco e os membros. Sofreria provavelmente de paralisia total pelo resto da vida. Estavam tentando estabilizar a coluna vertebral para diminuir o inchaço. Em seguida poderiam decidir se havia alguma cirurgia possível. Ela também tinha engolido água do mar, e estavam fazendo o possível para eliminar a água dos seus pulmões. Discuti com o médico. Contei a ele que Aura havia tido alguma sensação ocasional nos membros ao longo de todo o dia, que na ambulância aérea exibia bons sinais vitais e que até conseguira respirar sem ajuda. Eu disse ao médico que ela iria ficar boa, e que ele precisava acreditar em mim, e me lembro dos seus olhos experientes me observando sem nada poder fazer, eu, minha camiseta suja e suada e meu calção de banho.
Não me deixaram entrar na Unidade de Terapia Intensiva para ver a minha mulher. As equipes médicas precisavam trabalhar ininterruptamente. Fabis foi para casa dormir. Não me lembro de mais ninguém na sala de espera, além dos pais de Aura, instalados em poltronas de vinil num dos lados da sala de espera, enquanto eu me sentava sozinho do outro lado. A luz na saleta era muito fraca. Eu não podia ligar para ninguém porque minha bateria tinha acabado. A certa altura, saí e fiquei andando pelos corredores longos e vazios. Entrei numa pequena capela para rezar. Prometi que, se Aura sobrevivesse, eu levaria uma vida religiosa e devota, e manifestaria diariamente minha gratidão a Deus. De volta à sala de espera, pensei que, se ela ia passar algum tempo paralisada, eu tinha que encontrar um jeito de conseguir para ela a melhor instituição de reabilitação dos Estados Unidos; leria para ela todos os dias, e tomaria o ditado de tudo que ela quisesse escrever. Eram pensamentos assim que me passavam pela cabeça. De tempos em tempos eu me levantava, ia até o interfone interno, apertava o botão e perguntava se podia entrar para ver minha mulher, mas a cada vez me respondiam que visitas só eram admitidas pela manhã.
O que você terá pensado nessa longa noite, meu amor, enquanto agonizava ali sozinha? Terá posto a culpa em mim? Terá pensado em mim com carinho pelo menos uma vez? Terá visto, ouvido, ou sentido que eu a amava?
Foi só na manhã seguinte que me deixaram finalmente vê-la. A assistente do eminente cirurgião, que lembrava um buldogue, me disse que durante a noite Aura havia tido dois ataques cardíacos, e que agora estava em coma.
Encostei os lábios no ouvido de Aura e agradeci a ela os anos mais felizes da minha vida. Disse que nunca deixaria de amá-la. Então a assistente me ordenou bruscamente que saísse.
Dez ou quinze minutos mais tarde, voltando a olhar através da cortina branca, senti de imediato um silêncio de vácuo em torno da cama de Aura, e a assistente do cirurgião me disse que Aura tinha morrido minutos antes. Aproximei-me dela. Seus olhos apagados. Beijei suas faces, que já pareciam argila fria.
Meus soluços devem ter sido ouvidos do outro lado do hospital.
Juanca perdeu o funeral porque foi com um amigo a Mazunte recolher as nossas coisas. Encontraram a casa exatamente como a tínhamos deixado. Guardaram tudo nas malas, até mesmo o xampu de Aura. Ela sempre se limitava a baixar a tampa do laptop quando terminava o trabalho do dia, de modo que quando o abri mais tarde encontrei a tela exatamente como ela a tinha deixado. Havia dois documentos abertos: a versão mais recente do conto sobre o professor e uma coisa nova, provavelmente o início de outro conto, intitulado “Hay señales en la vida?”.