As formas livres foram elaboradas canto a canto com a intenção de gerar surpresas conforme o visitante se movimenta. As paredes curvas de concreto necessitam de armaduras também curvadas, que exigem alto nível técnico para executá-las FOTO: BETO FELICIO
A ópera do Pequeno Príncipe
Mesmo com todos os ataques e denúncias que a envolvem, a Cidade da Música feita por Portzamparc no Rio é a mais relevante obra pública construída no Brasil desde Brasília
Fernando Serapião | Edição 27, Dezembro 2008
Do alto, num helicóptero, há pouco mais de seis anos, o arquiteto francês Christian de Portzamparc viu pela primeira vez o terreno da Cidade da Música. Estavam com ele o prefeito Cesar Maia e Ricardo Macieira, secretário municipal das Culturas. Assim que ganhou altitude, o helicóptero sobrevoou Botafogo, passou pelo centro, entrou na Zona Norte, acompanhou a Linha Amarela e chegou à Barra da Tijuca. “É ali!”, gritou Cesar Maia, apontando a rotatória de cruzamento das duas maiores avenidas da região, o Cebolão.
No dia seguinte, Portzamparc voltou à Barra de carro. Tanto pelo ar como por terra, sua primeira impressão foi negativa: o acesso à Cidade da Música seria difícil. Não tanto por ser longe do centro da cidade, e mais pelo trânsito pesado e a ausência de metrô na região. Cesar Maia lhe garantiu, porém, que o metrô chegaria lá. (Não chegou e não chegará tão cedo.)
No centro do terreno, havia um morrote de uns 10 metros de altura. Ao subir até o topo, o arquiteto francês reapercebeu – e reanimou-se com – a beleza da área: do alto do outeiro avistou o mar, mais de 20 quilômetros de praia, a grande baixada pontilhada de lagoas e o recorte das montanhas da Floresta da Tijuca. Já se passavam mais de vinte anos da primeira visita dele à Barra.
Portzamparc pisara pela primeira vez na Barra em 1981, para comer peixe num pequeno restaurante de pescadores. A área ainda era relativamente erma, com construções esparsas, apesar de Lucio Costa ter desenhado o seu projeto urbanístico já em 1969. Desde então, o francês retornou a ela diversas vezes, sempre de férias, acompanhando o seu desenvolvimento. Se os prédios e centros de comércio foram construídos ao sabor do mercado – tendo como ápice do grotesco uma réplica da Estátua da Liberdade –, desvirtuando o traçado e as idéias de Lucio Costa, o excelente paisagismo de Fernando Chacel foi relativamente preservado.
Com o tempo, a Barra se tornou o eixo de expansão da Zona Sul, mesmo que, geograficamente, ela esteja mais ligada à Zona Norte. E mesmo com a existência, hoje, de uma oposição entre moradores da Barra e da Zona Sul. Quem mora em Copacabana, por exemplo, não identifica o morador da Zona Oeste como um semelhante. E vice-versa.
Isso ocorre porque a Barra tem muito de subúrbio norte-americano. Ou seja, é um local de ocupação recente, distante do centro, onde os deslocamentos são feitos de automóvel, em vias expressas. Não há nem o convívio da calçada nem o comércio de rua. Ele é resultado do urbanismo do século XX, que setorizou os usos e esvaziou o principal elemento da cidade tradicional: a rua.
Ricardo Macieira estava no helicóptero com Christian de Portzamparc. Formado em arquitetura no início da década de 80, ele trabalhara três anos com Lucio Costa justamente no plano da Barra. Ele me recebeu num fim de tarde, em seu gabinete na prefeitura, vestido de camisa jeans e calça cáqui. “Como estava previsto um equipamento cultural no eixo monumental, decidimos fazer ali a Cidade da Música”, explicou. Na verdade, o plano de Lucio Costa previa a manutenção de um grande “bosque rústico”, que teria equipamentos de “caráter científico-cultural”.
O secretário estava (e continua) convicto de que o Rio precisava de um grande edifício com fins culturais, que fosse criado por um arquiteto estrangeiro e famoso. Para Macieira, o “efeito Bilbao” – expressão cunhada depois que o museu do canadense Frank Gehry colocou a cidade basca no mapa do turismo mundial – renovaria a cidade, que ano a ano vê esmaecer o título de capital cultural do Brasil.
Além da Cidade da Música, Macieira participou de outra saga – fracassada – baseada na mesma idéia: o Guggenheim. O Rio só venceu Curitiba, Salvador e Recife, que também disputavam a construção da filial brasileira do museu, quando concordou em entrar no projeto com 200 milhões de dólares – e a fundação nova-iorquina, com nada. No início de 2003, o francês Jean Nouvel foi contratado para desenhar o prédio. Ele realizou um projeto numa região imunda e sucateada, o Píer Mauá, o que gerou uma grande celeuma (com abaixo-assinados, artigos na imprensa e liminares na Justiça, que acabaram suspendendo o contrato entre a prefeitura carioca e a Fundação Guggenheim).
Pouco antes, Maia havia rompido com seu ex-pupilo Luiz Paulo Conde. Arquiteto e líder da categoria no Rio, Conde movimentara a cena arquitetônica, de início como secretário de Urbanismo da primeira gestão de Maia e, posteriormente, como prefeito. Ele implantou os projetos Rio-Cidade e Favela-Bairro, que renderam uma grande quantidade de trabalho para seus colegas. Assim, o fato de contratar dois arquitetos franceses, e ainda por cima com honorários acima da tabela nacional, foi interpretado como uma vingança do prefeito. “Cesar Maia transferiu o ódio que tem do Conde para os demais arquitetos cariocas”, disse-me na ocasião um respeitado projetista local.
Macieira contou que, em paralelo à peleja pelo Guggenheim, “surgiu a idéia de criar a sede para a Orquestra Sinfônica Brasileira”. A OSB é uma das mais antigas sinfônicas do Brasil e ocupa o Theatro Municipal do Rio que, apesar do nome, é administrado pelo estado. “Imediatamente, fui a Paris consultar o Portzamparc”, lembrou o secretário da Cultura.
Portzamparc já havia sido sondado para criar outro prédio carioca: um novo auditório para o Museu de Arte Moderna. Com a recusa do francês, o auditório do MAM foi transformado em casa de shows, de forma um tanto desastrada, mas seguindo em linhas gerais o volume do projeto de Affonso Reidy, da década de 50. Em sua visita de dez dias a Paris, Macieira estava acompanhado de Raul Ribeiro, secretário de Relações Internacionais da prefeitura. Lá, ambos conheceram em detalhes a Cidade da Música no parque de La Villette, o projeto que deu renome internacional a Portzamparc.
Numa manhã de agosto passado, o inverno fez os termômetros marcarem 25 graus na orla. Em Ipanema, entre o Jardim de Alah e o Country Club, a praia estava vazia. Ali, o terceiro e penúltimo andar de um prédio de apartamentos é o refúgio carioca de Portzamparc, que há catorze anos ganhou o Pritzker – o mais festejado prêmio de arquitetura, sempre comparado ao Nobel. Ele divide com Jean Nouvel, que ganhou o Pritzker de 2008, a reputação de estrela maior da arquitetura francesa contemporânea.
“Devido às viagens freqüentes para fazer a Cidade da Música, achamos melhor alugar um imóvel”, disse o francês, sentado no sofá que fica de frente para o mar. Para acompanhar a obra, ele reveza suas estadas no Rio com Bertrand Beau, um de seus colaboradores mais próximos, que também participou da construção da Cidade da Música de La Villette. Há também razões familiares para ter um pied-à-terre ipanemense: ele é casado com a carioca Elizabeth de Portzamparc, que se exilou na França aos 17 anos. Designer, ela faz móveis, mobiliário urbano e projetos de interiores de museus e auditórios.
“Na adolescência, eu tinha um sonho recorrente: que morava no Rio, cercado pelas montanhas e era casado com uma brasileira”, ele disse, com os olhos azul-água brilhando. Vestia calça cáqui, camisa azul-escura e calçava sapato esporte de couro claro. A fixação pelo Brasil o pegou quando assistiu ao filme Orfeu Negro, dirigido pelo francês Marcel Camus em 1959. Ganhador do Oscar e da Palma de Ouro do Festival de Cannes, o filme baseado numa peça de Vinícius de Moraes marcou de maneira duradoura o imaginário americano e europeu em relação ao Brasil. “Orfeu é inocente, mas na época eu era jovem e me comoveu”, disse.
O jovem Portzamparc foi influenciado também pela inauguração de Brasília, que ocupou quase toda uma edição da revista Paris Match. A obra de Niemeyer, ele disse, foi decisiva para que considerasse a arquitetura como uma opção profissional. Até hoje, tem Niemeyer no panteão dos seus ídolos.
Filho de franceses, ele nasceu em 1944, em Casablanca, no Marrocos. Veio ao mundo enquanto seu pai, oficial do Exército francês, se preparava para desembarcar no sul da França com os aliados. Criança, a pintura, o desenho e a escultura o atraíam. Tanto que, aos 10 anos, venceu um concurso de castelos de areia em uma praia espanhola. Estudou pintura e arquitetura na Escola de Belas-Artes de Paris, formando-se em 1969. Sua geração, que viveu o Maio de 68 e as agitações subseqüentes, não encontrou referências na produção arquitetônica vigente na época. “Não tínhamos pai, mas avô”, relembrou, referindo-se a Le Corbusier.
Com apenas seis anos de formado, desenhou um conjunto de habitações sociais na periferia de Paris que é considerado um marco no renascimento da arquitetura francesa. Finalizada em 1979, a obra fica na rua des Hautes-Formes (no 13° arrondissement), onde abriu uma viela para interligar duas vias públicas. No meio da quadra, os blocos de apartamentos de alturas diferentes conformam uma praça. Portzamparc faz uma espécie de costura entre os prédios da vizinhança, formada por blocos modernistas de habitação e da Universidade de Paris. Desde então, sua expressão passou a se ancorar no que ele chama de “fraturas urbanas”. Ou seja, seu trabalho – na maioria das vezes implantado em contextos complexos –, em vez de procurar uma expressão autônoma, busca acertar o desarranjo do espaço preexistente.
O apartamento ipanemense não tem nenhuma semelhança com o outro de Portzamparc, que fica na avenida de Suffren, em Paris. Com 230 metros quadrados, o da rive gauche se apóia na relação entre o passado e a modernidade. Já no da avenida Vieira Souto a natureza, a vista para o mar, é a grande protagonista. “É inevitável: todo mundo que entra vai direto para a janela”, disse. Os dois foram decorados por Elizabeth, que mesclou móveis de desenho modernista – como a chaise longue de Le Corbusier em Paris – com peças contemporâneas criadas por ela, como aparadores, tapetes e sofás.
Franzino, e aparentando menos que seus 64 anos, Portzamparc adora música. Entre os clássicos, gosta de Bach, Purcell e Monteverdi. No jazz, de Chet Baker, Miles Davis e Charlie Parker. Na música brasileira, de Chico Buarque. Em seu ambiente doméstico, arrisca tocar piano e flauta. Sua obra de maior repercussão é a Cidade da Música de Paris, que fez quando tinha 40 anos – idade que, em arquitetura, enquadra os jovens profissionais. La Villette foi uma das chamadas “Grandes Obras” que o presidente François Mitterrand construiu entre 1981 e 1995. Entre elas estão a ampliação e a pirâmide do Louvre (desenhada pelo sino-americano I. M. Pei), o arco de La Défense (do dinamarquês Johan-Otto von Spreckelsen), o Museu d’Orsay (da italiana Gae Aulenti) e o Instituto do Mundo Árabe (de Jean Nouvel). Mitterrand reviveu os dias de glória da arquitetura francesa, financiando, como os soberanos absolutistas, uma arquitetura amparada pelo Estado. Entre os profissionais franceses, Portzamparc era o seu preferido, o pequeno príncipe da arquitetura.
A Cité de la Musique é dividida em duas partes independentes, separadas por uma praça. No setor oeste fica o Conservatório Nacional – as salas de aula, estúdios e alojamentos onde vivem e trabalham cerca de 2 mil estudantes, funcionários e professores. No setor leste está a Cidade da Música propriamente dita, com duas salas de concerto, biblioteca e museu de instrumentos musicais. Enquanto o conservatório é fechado à população em geral, a Cidade da Música é um espaço público, o que a aproxima da concepção da sua homônima carioca.
Na Cidade da Música parisiense, Portzamparc avançou em sua pesquisa iniciada com Les Hautes-Formes. Ele criou volumes estáticos que buscam o movimento. Para entender tais espaços, é preciso percorrê-los. A porção pública de La Villette, por exemplo, possui circulação em forma de espiral (chamada de rua musical) que define uma série de volumes autônomos, com formas diferentes. No centro da composição está a sala de concertos principal, com planta ovalada e mil lugares.
Depois desse, o arquiteto fez outros projetos dedicados à música, como a Escola de Dança da Ópera de Paris, em Nanterre, e, principalmente, a Filarmônica de Luxemburgo, inaugurada em 2005, cuja grande sala conta com 1 500 lugares. Dada a sua expertise, Portzamparc estranhou o fax que recebeu do secretário Macieira perguntando se ele tinha experiência em criar salas de concertos. “Não entendi a pergunta”, ele contou. “Não é do meu feitio, mas acabei respondendo de forma arrogante e grosseira, dizendo algo como ‘eu sou uma das pessoas mais capacitadas para fazer isso'”. Macieira gostou da arrogância. “É a resposta que precisávamos, pois necessitamos de um especialista”, respondeu-lhe o secretário.
Os primeiros esboços da Cidade da Música carioca nasceram num vôo da Lufthansa, entre Luxemburgo e Berlim, em dezembro de 2002. “Em seguida, meu pai faleceu e fiquei algum tempo sem criar nada”, lembrou Portzamparc, entristecido. A barba por fazer e os cabelos revoltos lhe davam um ar de Pequeno Príncipe. Para que o projeto fosse apresentado para o prefeito, foi marcada reunião no Rio no final do mês seguinte, janeiro.
O projeto foi concebido em função das características da Barra da Tijuca, como uma resposta de Portzamparc à falta de alma do lugar. “A Cidade da Música tinha que ser na Barra”, ele disse, categórico. “A parte antiga do Rio está cheia de glamour. Mas os 3 milhões de pessoas que moram na Barra não têm nenhum prédio público significativo. Assim como a Zona Norte, que também precisa de algo.” Com esse embasamento, o projeto é pretensioso: quer ser a referência urbana que a região não possui.
A idéia também justifica a escala monumental. “O lugar pedia algo grande”, disse. “A Cidade da Música não podia ser menor do que o Carrefour”, compara, reafirmando o caráter cívico de sua intenção. “Mas o prédio não possui monumentalidade opressora. É uma grandiloqüência de quem percebe a possibilidade daquela escala. Uma espécie de alegria de vivenciar o espaço”, conclui.
Na Barra, Portzamparc inverteu sua lógica de trabalho: em vez de curar cicatrizes urbanas dentro de contextos tradicionais (como fez em cidades européias, japonesas e americanas), apelou para a força da obra, do desenho, para intervir nas feridas do urbanismo moderno. “Eu não vou criticar o projeto da Barra”, disse, no entanto, referindo-se ao desenho de Lucio Costa. “Mas daria para recuperar a vivência nas ruas da região, através de intervenções pontuais. A questão é: não podemos achar que o comércio é uma coisa ruim.”
Na Cidade da Música, as formas livres que ele criou não são como as de Niemeyer, instintivas e líricas. Elas foram elaboradas canto a canto, sempre com a intenção de gerar surpresas, conforme o visitante se movimenta. Antes de apresentar o projeto para Cesar Maia, sua equipe construiu mais de 100 maquetes. Quando o prefeito viu o modelo final, mandou seguir em frente. Enquanto os arquitetos comemoravam, a violência da cidade fez mais uma vítima: o carro de um dos integrantes da equipe foi roubado. E com ele, desapareceu para sempre justamente a maquete apresentada.
A Cidade está disposta entre duas grandes lajes. A primeira fica a 10 metros do chão, tal como o morrote que existia no lugar, e serve de piso. “É claro que sairia mais barato se estivesse no chão”, disse o arquiteto. “Mas o projeto explora o prazer quase infantil de percorrer uma rampa e de olhar a paisagem. É como subir o Corcovado ou o Pão de Açúcar para ver a cidade.” Criando um espaço público elevado, o projetista democratizou a vista, fato corriqueiro na vida da cidade seja nos mirantes, na praia ou nas favelas. A segunda grande laje, que cobre a Cidade, fica a 30 metros do chão. As duas possuem a mesma forma (de trapézio), com cerca de 200 por 80 metros. A área de cada uma corresponde aproximadamente a dois campos de futebol.
No intervalo entre as duas grandes lajes ficam dispostos os ambientes fechados que se dividem, grosso modo, em quatro volumes de formas livres. O primeiro e maior destina-se à sala filarmônica. Com formato “caixa de sapato” – ideal do ponto de vista acústico -, a sala é de inspiração elisabetana. Para Portzamparc, esse foi um dos maiores desafios da empreitada: “Me pediram uma sala que comportasse apresentações sinfônicas e ópera. Mas isso não existe!”
A solução apresentada pela equipe foi engenhosa. A sala é rodeada por dez torres de camarotes que, volumetricamente, darão a impressão de serem independentes. Para conseguir transformar o local para apresentação de óperas, quatro dessas torres serão móveis. Quando destravadas, deslizarão com a força de apenas uma pessoa. Saindo de cena, as torres abrem espaço para a caixa de palco, utilizada em apresentações de ópera. Na conformação para apresentações musicais, a sala comporta até 1 800 espectadores. Para uma ópera, ela acomodará 1 300.
O segundo volume, no lado sudoeste, destina-se à sala de música de câmara, com 500 lugares. No quadrante noroeste fica o terceiro volume, que abriga quatro salas de cinema, restaurantes, lojas, midiateca e uma sala de música eletroacústica. O último volume é o grande bloco que toma toda a extensão sul – ajudando a barrar os ventos frios. Ali ficam a área administrativa, as salas de ensaio e um centro de ensino.
A circulação pública permeia o espaço vazio entre os quatro volumes principais. O clima tropical, nunca experimentado por Portzamparc, possibilitou que esse espaço ficasse aberto. É nele que se percebe a monumentalidade. Trata-se quase de uma praça elevada, uma microcidade sob pilotis, que funciona, disse o arquiteto, “como uma homenagem ao arquétipo da arquitetura brasileira da década de 50. Somente o trecho entre a sala principal e os escritórios de administração terá acesso controlado. Ele é chamado por Portzamparc de “rua dos músicos”.
Quando iniciava o projeto, Portzamparc consultou calculistas franceses para saber qual seria o tamanho do vão entre os pilares. O veredicto foi de 20 metros. Quando o cálculo foi refeito pelos engenheiros brasileiros Bruno Cantarini (que trabalhou em diversas obras de Niemeyer) e Carlos Fragelli, os vãos aumentaram para 30 metros. “Estes brasileiros.”, teria dito o calculista francês. Na França, a arquitetura moderna nasceu junto com a tecnologia do concreto armado. Com o passar dos anos e com a falta de campo para avançar no desenvolvimento do cálculo estrutural, o desenvolvimento tecnológico nessa área estacionou. No Brasil, ocorreu o contrário: somos vanguarda, por exemplo, no concreto protendido, a tecnologia utilizada nas duas lajes principais. “Perdemos isso”, disse Portzamparc. Ou seja, se este mesmo edifício fosse construído na França, a estrutura seria mais robusta e pesada. Portanto, menos graciosa.
Para chegar até a laje, os visitantes sobem por rampas, elevadores, escadas ou escadas rolantes. Interligando a Cidade da Música e as áreas de estacionamento e terminal de ônibus, foi construída uma passagem subterrânea. Sob o pilotis ficará um parque público desenhado por Fernando Chacel.
Em agosto de 2003, começou a montagem de uma equipe brasileira para desenvolver o projeto, como exigia o contrato. Ela foi dividida em três partes. Portzamparc montou primeiro uma equipe local de seu ateliê, disposta a acompanhar o desenvolvimento dos desenhos e da obra. Essa equipe – liderada por Nanda Eskes, Ana Paula Pontes e Clóvis Cunha – estava alocada em um edifício do centro da cidade. Depois, ela ocupou um escritório dentro do barracão de obra. A segunda parte da equipe, dirigida pelo arquiteto Luís Antônio Rangel, ficou responsável pela aprovação e projeto executivo. Por fim, o gerenciamento foi realizado pela empresa Engineering.
Entre a apresentação do projeto e a aprovação de Cesar Maia, porém, houve pouco tempo para o desenvolvimento do desenho, principalmente pela pressão política do término do segundo mandato do prefeito. A obra foi iniciada em 2004, mas logo em seguida a prefeitura priorizou as construções que abrigaram os Jogos Pan-Americanos de 2007. O jornal O Globo se referiu então ao prédio como “o elefante de Portzamparc”, e as obras praticamente pararam. Irritado, o arquiteto marcou audiência para conversar com o prefeito e lhe mostrou uma animação em 3D do projeto. “Ele se entusiasmou novamente”, lembrou o arquiteto. Quando acabaram as obras do Pan, a construção na Barra foi retomada.
“Você vai ver o pepino que esse cara nos arrumou”, disse-me Rodrigo Dantas, ao mostrar os desenhos de execução. Ele é o secretário de Obras, ou seja, o responsável pelo andamento da construção. Depois, ele tirou os óculos escuros e pôs a bota na lama para me mostrar a obra. “Só mesmo o Cesar Maia para segurar isso aí”, disse. “Mas daqui a dez anos, ele vai ser um herói.”
Enquanto andávamos sobre a laje de cobertura, a 30 metros do chão, operários trabalhavam na concretagem da caixa do palco. “Isso aí é um cocuruto. O pessoal não gostava, mas eu chamo isso de dromedário”, divertia-se o jovem secretário, de 32 anos. “Olha aquela parede! É até covardia: tem uma curvatura dupla. Ela faz uma onda.” Como são estruturais, as paredes curvas de concreto necessitam de armaduras também curvadas, que exigem alto nível técnico para executá-las. A obra não é convencional, muito menos no âmbito público brasileiro. “Para acompanhar uma construção como essa, os funcionários da prefeitura tiveram que correr atrás”, relatou o secretário. “Nosso quadro técnico ficou muito qualificado.”
“Está vendo isso aqui: é custo!”, repetia ele a cada três minutos, apontando-me algum detalhe. Um projeto como o da Cidade da Música é um dos mais caros devido à multidão de particularidades. Para o isolamento do som, por exemplo, são necessárias paredes duplas, que fazem sanduíche tendo como recheio um material acústico. Para piorar, o ruído externo da região – com carros e helicópteros – é alto.
Mas a insistência do secretário de Obras em demonstrar os custos deve-se à cobrança em relação aos números da construção. De tão elevados, geraram uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Câmara dos Vereadores, aberta depois de uma denúncia publicada no jornal O Globo – ironicamente, Cesar Maia batizou a Cidade da Música com o nome de Roberto Marinho, fundador do jornal.
Segundo a reportagem, a obra teria sofrido um aumento de custo de quase 500%. Inicialmente orçado em 80 milhões de reais, o custo final irá passar da casa do meio bilhão de reais. Cesar Maia alegou que o número inicial referia-se somente a uma parte da obra. Macieira, por sua vez, não conseguiu explicar o contrato com a equipe de arquitetos. Portzamparc compareceu a uma das sessões. “Mas não tive que falar nada, pois não fui questionado”, explicou. Para ele, a denúncia é “um problema político, mas as questões são pertinentes e qualquer indício de irregularidade deve ser investigado”. A equipe refuta uma das alegações para o aumento do custo, que é atribuída a mudanças no projeto. Ao ver as primeiras publicações do desenho, em revistas especializadas, constata-se que pouco foi modificado. Ao que parece, as mudanças estão dentro do que ocorre no desenvolvimento de um projeto desse porte. O Ministério Público estadual também investiga o caso.
O estouro do orçamento esbarrou nos honorários da equipe. A CPI divulgou que o valor do contrato ronda os 22 milhões de reais. Já Portzamparc avalia que os honorários que recebeu são três vezes menores do que receberia na Europa. Amigos do arquiteto confidenciaram-me que ele só topou a empreitada porque era um projeto no Brasil. E mais: seu prejuízo financeiro estaria na casa dos sete dígitos. Ele desconversa: “Quando a conta não fecha, é Paris quem paga”, referindo-se a seu escritório.
O ateliê parisiense de Portzamparc, que fica perto do parque Montsouris, tem cerca de 100 profissionais. Para a França, é considerado um escritório grande, mas, comparado às grandes organizações americanas – verdadeiras fábricas de desenhos –, é pequeno. Ele tem outro escritório com tamanho semelhante em Nova York. “Somos como uma aldeia que está sempre em busca de uma baleia”, disse-me, reconhecendo que precisa de grandes projetos para manter toda a estrutura.
Ao falar sobre seu futuro profissional no Brasil, ele disse que “seria uma pena não manter a equipe brasileira”. O arquiteto e a mulher compraram uma casa na Urca, que está em reforma (o projeto é de Elizabeth). A amigos, ele disse que gostaria de morar no Brasil, no seguinte esquema: se aposentar da grande estrutura e continuar trabalhando com uma pequena equipe aqui. O plano se estende ao restante da família. Um de seus dois filhos, que é cineasta, já mora no apartamento da Vieira Souto. O outro, antropólogo, também faz planos para se mudar para o Brasil. Os filhos avaliam que a Europa está estagnada, e que aqui há mais perspectiva de futuro. O pai os apóia. Quando nos despedimos, e ele me acompanhava até a porta, Portzamparc contou que sempre anda pelo calçadão. É quase um carioca.
A Cidade da Música foi um dos temas abordados nas campanhas eleitorais do município. Nos flashes de propaganda de vereadores, houve bordões do gênero: “Contra a Cidade da Música vote em.” No segundo turno, na derradeira pergunta do último debate na televisão, Fernando Gabeira perguntou ao adversário: “O que o senhor pretende fazer em relação à Cidade da Música?” Eduardo Paes a classificou como um “equívoco profundo”. E completou: “Espero que o atual prefeito conclua a obra, pois é inadmissível que ele deixe restos a pagar para o próximo ano. Vamos colocar a Orquestra Sinfônica Brasileira lá, integrar com as comunidades carentes, oferecer aulas de música. Mas, como prefeito, jamais faria uma obra como aquela.”
Não faltam críticas à Cidade da Música. Muitos acham que os 2% do orçamento municipal que nela foram investidos deveriam ir para outras prioridades, como a manutenção de centros de cultura já existentes ou ainda para a educação, saúde e segurança. Outros acham que o edifício está localizado no lugar errado, pois a Barra não tem público para música clássica e ópera. Há aqueles que acham que não houve discussão pública acerca do projeto. No meio arquitetônico, principalmente aquele com viés corporativo, há ainda o ciúme em relação aos honorários, impensáveis por estas bandas (caso o profissional não atenda pelo nome de Oscar Niemeyer).
No final de novembro, a obra continuava a todo vapor. Portzamparc se assustou com o ritmo: “Não consigo avaliar se dará tempo de inaugurá-la em dezembro, esses prazos seriam impensáveis na Europa.” Os profissionais da equipe do francês também não conseguiam dizer se o ritmo apressado prejudicaria a qualidade final do projeto. Nos últimos meses parecia a construção de uma pirâmide: havia cerca de 3 mil funcionários, trabalhando em três turnos. “Morro de medo de um acidente de trabalho”, disse-me o francês.
O Rio, de fato, não tinha dinheiro para fazer um edifício desse porte. Por parte da prefeitura, houve um erro de avaliação de escala – talvez proposital… Apesar de tudo, a Cidade da Música é uma obra de arquitetura com grande relevância, sem precedente no ambiente público desde a construção de Brasília. Sua sabotagem, agora, às vésperas da inauguração, ou no futuro próximo, será um desserviço aos cariocas e ao Rio. “A obra é irreversível”, disse-me uma arquiteta da equipe de Portzamparc. “Mas é como uma ópera: com a mudança de governo, não sabemos se será um drama, uma comédia ou uma tragédia.”
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