Obama e Jon Favreau, principal ghost da Casa Branca e criador do slogan Yes, We Can, revisam as 5 614 palavras do texto sobre a reforma da Previdência. Com duração de 47 minutos, o discurso lido em sessão plenária do Congresso resultou na aprovação da reforma que divide o país FOTO: PETE SOUZA_DEPARTAMENTO OFICIAL DE FOTOGRAFIA DA CASA BRANCA
A oratória do poder
Quem é a turma que põe palavras na boca dos chefes de Estado
Dorrit Harazim | Edição 51, Dezembro 2010
Numa tarde de setembro passado, circulando a bordo de um par de suspensórios cor de lavanda, Marco Aurélio Garcia mostrava o seu pequeno latifúndio – agora ampliado – no 3º andar de um recém-reformado Palácio do Planalto. Assessor especial de política externa de Luiz Inácio Lula da Silva desde o primeiro mandato do presidente, há mais de quinze anos Garcia tem o ouvido do companheiro petista para questões internacionais. Sabe ser espaçoso quando quer e sumir do noticiário quando necessário.
Na ocasião, faltavam pouco mais de duas semanas para o primeiro turno da eleição em 3 de outubro e “mag”, como é identificado na correspondência palaciana, estava fascinado com a leitura de Nixon e Kissinger: Parceiros no Poder, do historiador americano Robert Dallek. Crônica definitiva da parceria de Richard Nixon com seu secretário de Estado Henry Kissinger na condução da política externa da Casa Branca entre 1969 e 1974, a obra é um deleite para quem atua nessa área. O acesso inédito a 20 mil páginas de transcrições de telefonemas oficiais de Kissinger permitiu ao historiador escancarar as motivações pessoais por trás das maquinações públicas e privadas da dupla.
“Não sei como os dois conseguiram sobreviver. Foi um enfrentamento permanente, uma guerra”, constata Garcia. “Se eu trabalhasse numa situação de confronto semelhante, teria pedido o boné depois do primeiro mês”, garante ele. Professor licenciado do Departamento de História da Unicamp, a Universidade Estadual de Campinas, esse gaúcho bon vivant e de humor afiado, acaba de ser mantido no cargo pela presidente eleita Dilma Rousseff.
Exatamente há um ano, em dezembro de 2009, Garcia e Rousseff testemunharam um momento de oratória do poder ou – para os admiradores de Luiz Inácio Lula da Silva – de poder da oratória, do qual tiraram ensinamentos distintos. Ambos integravam a delegação brasileira presente à Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a cop 15 – mag como assessor especial e coautor do discurso oficial que Lula pronunciaria, Dilma como futura candidata oficial à sucessão do presidente. Para a então chefe da Casa Civil, aquela cúpula de 113 chefes de Estado e de governo reunidos em Copenhague, na Dinamarca, era uma chance para observar estadistas em exercício conspícuo do cargo.
Lula leu seu discurso numa quinta-feira, véspera do encerramento da conferência que já rumava para seu inexorável naufrágio e à qual o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, só compareceria no último dia. Recebeu os esperados encômios ao apontar a teimosia com que países ricos punham o planeta em risco e anunciou que o Brasil assumia o compromisso de reduzir suas emissões de gases do efeito estufa entre 36,1% e 39,8% até 2020. À noite, haveria um banquete real oferecido pela rainha Margrethe II no faustoso Castelo Christiansborg.
Ainda antes do banquete, contudo, pôs-se em marcha uma romaria de chefes de governo para falar com Lula no Hotel d’Angleterre. Houve encontros com Gordon Brown, da Inglaterra, e Lars Løkke Rasmussen, primeiro-ministro dinamarquês, que se mostrou um tanto desanimado com os descaminhos da cúpula. Houve confabulações com o sempre saliente Nicolas Sarkozy, da França, e com a despojada chanceler Angela Merkel, da Alemanha.
Terminado o banquete, seguiram-se mais encontros noite adentro, a ponto de o presidente Lula comentar que nem nos seus tempos de CUT tinha lembrança de algo tão bagunçado. Foi naquela madrugada que o telefone do quarto de Marco Aurélio Garcia começou a tocar. Primeiro foram os delegados de alguns hermanos latino-americanos, querendo saber o que o presidente brasileiro negociava sem a presença deles. Em seguida, Garcia atendeu Celso Amorim que, também acondicionado na cama, lhe informou que os organizadores da cúpula acabavam de avisar que Lula deveria discursar uma segunda vez na manhã seguinte, na ocasião do encerramento da conferência. Tradução: urgia a elaboração de novo texto de discurso.
Assim, na manhã da sexta-feira, Garcia se instalou com o laptop no foyer do Bella Center, o QG da COP-15, e começou a alinhavar um aide-mémoire a partir de ideias colhidas com Amorim. Estava ciente de que não haveria tempo hábil para preparar um novo discurso. Enquanto isso, Lula fazia reuniões de última hora com os primeiros-ministros da China e da Índia, além do presidente sul-africano, na tentativa de esboçar uma linha comum de ação.
“De repente”, relembrou Garcia, “vi pessoas se aglomerarem diante das telas de televisão. E ouço a voz do Sérgio Ferreira [o intérprete de Lula há 18 anos] se esmerando na tradução. Levantei, fui ver o que era e na tela estava Lula, já na tribuna do plenário, fazendo seu discurso de improviso. Não tinha à mão qualquer anotação, citava os dados do dossiê de cabeça. Exerceu o que chamamos de lulismo às últimas consequências. Saiu da tribuna sob ovação.”
Dilma Rousseff assistiu à mesma cena mais de perto. Única integrante da delegação brasileira a já estar na plateia, presenciou o presidente ser convidado a abrir os debates, embora estivesse escalado para ser o terceiro ou quarto orador da sessão. “Não havia papel que ele pudesse consultar, o Marco Aurélio tinha sumido”, conta um membro da equipe que ouviu o relato de Dilma. “A capacidade de improvisação de Lula naquela sessão plenária informal a estarreceu.”
Para a economista pouco palanqueira, que no primeiro sábado de 2011 se torna a 36ª presidente da República, a oratória como “arte de conquistar a alma” não cai fácil. Aos 63 anos de idade e perfil essencialmente técnico, a presidente eleita passará por um batismo triplo nas próximas semanas. Ele se inicia no dia 17 deste mês, no Salão Vermelho do Tribunal Superior Eleitoral, onde Dilma deve discursar após ser diplomada para exercer seu mandato.
Não se espera que ela redija o texto de próprio punho, como fez Jânio Quadros em 1961, cuja peça de retórica se encerrava assim:
Honra-me ser o primeiro chefe de Estado a receber, nesta nova capital, o seu diploma, e na pessoa do ínclito ministro presidente, rendo as minhas homenagens a todos os dignos juízes que ilustram a Justiça Eleitoral brasileira. A eles, e só a eles, deve a instituição o elevado e merecido conceito que desfruta.
Meus Senhores!
O preço da liberdade, que o voto dos meus patrícios me outorgou, é a servidão à causa pública. Dentro da lei e em estrita obediência à lei, serei livre para impor e exigir de todos o exato cumprimento do dever.
Dessa liberdade, faço a minha escravidão.
Após a diplomação, a nova chefe de Estado terá pela frente os dois discursos de posse propriamente ditos. No dia da troca da guarda, o mais formal será lido da tribuna do Congresso. Pouco depois, já com a faixa presidencial a lhe cruzar o peito, deverá falar do parlatório do Palácio do Planalto para o povo reunido na praça dos Três Poderes.
A julgar pelo discurso da vitória sobre José Serra, proferido na noite do domingo 31 de outubro, ainda é cedo para apontar qual será o estilo Dilma. Os retoques finais no seu pronunciamento de recém-eleita haviam sido lavrados poucas horas antes do fechamento das urnas. Dilma tinha retornado a Brasília de jatinho com Tarso Genro, vinda de Porto Alegre, e rumara para a sua antiga casa do Lago Sul. Ali a versão final do texto estava sendo polida pela troica de choque Palocci-Cardozo-Dutra – respectivamente, Antonio Palocci, ex-ministro da Fazenda, José Eduardo Cardozo, secretário-geral do Partido dos Trabalhadores, e José Eduardo Dutra, presidente do pt. O conjunto da peça teria sido urdido por Palocci, sem intervenção do consagrado marqueteiro baiano João Santana, responsável pela propaganda de campanha da vencedora.
Os 45 parágrafos deixam à mostra uma autoria múltipla pouco harmoniosa, com frases avulsas, ora na primeira pessoa do singular, ora do plural, entremeadas de anáforas, a repetição de palavras no início de uma frase: Zelarei pela mais ampla e irrestrita liberdade de imprensa. Zelarei pela mais ampla liberdade religiosa e de culto. Zelarei pela observação criteriosa e permanente dos direitos humanos […] Zelarei, enfim, pela nossa Constituição […].
Em compensação, foi dela a ênfase no ineditismo do Brasil ter elegido uma mulher para presidente, presente já na saudação inicial (“Minhas amigas e meus amigos”). Na mesma linha está a apropriação intencional do Yes, We Can (“Sim, nós podemos”), que a esta altura já deveria pagar direitos de propriedade à campanha de Barack Obama. Saudando as oportunidades iguais para homens e mulheres como uma conquista essencial da democracia, Dilma comunicava à nação que a elegeu desejar que “os pais e mães de meninas olhassem hoje nos olhos delas e lhes dissessem: sim, a mulher pode!”. Apesar de não ser um discurso para os anais da história, a oratória de Dilma conseguiu lhe insuflar um sopro de vida: a presidente eleita pareceu dona das palavras que lia. Estava à vontade com aquelas frases e, durante 25 minutos, se comunicou com a nação.
Foi um avanço em relação à longa campanha eleitoral, quando lia e relia os textos que lhe eram submetidos. Seu tipo e tamanho de letra preferidos, para facilitar a leitura, são Arial 22. Ao contrário de Lula, Dilma Rousseff armazena informação e adquire segurança por meio da palavra escrita. O livro mais recente que comprou na Amazon e baixou no seu leitor eletrônico iPad foi uma biografia de Abraham Lincoln, o estadista que traduziu em palavras a rota que vislumbrou para fazer dos Estados Unidos uma nação. Seu célebre discurso de Gettysburg, de apenas três parágrafos, 272 palavras e dois minutos de locução, é certamente o mais sucinto e profundo da história americana. Foi pronunciado no cemitério da cidade onde ocorreu a batalha de mesmo nome, que definiu o curso da Guerra Civil e deixou mais de 7 mil soldados mortos em apenas três dias de combates.
Há oito décadas e sete anos, os nossos pais deram origem neste continente a uma nova Nação, concebida na Liberdade e consagrada ao princípio de que todos os homens nascem iguais – proclamou Lincoln em novembro de 1863. Eis-nos reunidos para dedicar uma parte desse campo ao derradeiro repouso daqueles que, aqui, deram a sua vida para que essa Nação possa sobreviver. É perfeitamente conveniente e justo que o façamos. Mas, numa visão mais ampla, não podemos dedicar, não podemos consagrar, não podemos santificar este local. Os valentes homens, vivos e mortos, que aqui combateram já o consagraram, muito além do que nós jamais poderíamos acrescentar ou diminuir com os nossos fracos poderes. […] Cumpre-nos a nós, os presentes, dedicarmo-nos à importante tarefa que temos pela frente – que estes mortos veneráveis nos inspirem maior devoção à causa pela qual deram a última medida transbordante de devoção – que todos nós aqui presentes solenemente admitamos que esses homens não morreram em vão, que esta Nação com a graça de Deus venha gerar uma nova Liberdade, e que o governo do povo, pelo povo e para o povo jamais desaparecerá da face da terra.
Poucos são os presidentes eleitos, ou os escribas encarregados de seus discursos, que não buscam amparo nas frases históricas que tiveram a capacidade de fixar para sempre o espírito do tempo. Na visão do filósofo, teólogo e educador escocês George Campbell (1719–96), a arte da retórica teria como meta alcançar quatro objetivos: iluminar a compreensão humana, aguçar a sua imaginação, mover a sua paixão e influenciar a sua determinação. Não raro, esse uso instrumental da palavra alheia é explicitado de forma despudorada.
A jornalista americana Peggy Noonan trabalhava na assessoria do presidente Ronald Reagan há menos de três meses quando recebeu uma incumbência. Cabia a ela redigir o discurso que seu chefe deveria proferir por ocasião do quadragésimo aniversário do desembarque aliado na Normandia. Como contaria mais tarde, Noonan se sentiu paralisada ao receber a instrução de “escrever algo no estilo Gettysburg, ou seja, faça o povo chorar”. Esboçou vinte versões, que resultaram num dos dois discursos mais célebres de Reagan (o outro contém a frase “Sr. Gorbachev, abra o portão, derrube este muro”, dita em Berlim, à sombra do muro homônimo).
Peggy Noonan conseguiu fazer chorar os últimos veteranos de 1944 que assistiam à cerimônia no alto da falésia de Pointe du Hoc. Ou terá sido a prosódia e o gestual de Ronald Reagan que levaram os veteranos e demais presentes às lágrimas? Certamente a conjunção dos dois talentos:
Passaram-se quarenta verões desde que vocês aqui lutaram. Vocês eram jovens quando conquistaram esse penhasco; alguns de vocês ainda eram quase meninos, com as vastas alegrias da vida pela frente. Ainda assim, aqui vocês tudo arriscaram. Por quê? Por que o fizeram? O que os compeliu a afastar o instinto de autopreservação e arriscar suas vidas nestes penhascos?… Olhamos para vocês e adivinhamos a resposta. Foi fé e crença, foi lealdade e fraternidade. Os homens da Normandia tinham a certeza de que faziam o certo, a certeza de estarem lutando pela humanidade, fé de que um Deus justo por eles teria compaixão neste desembarque ou no próximo. Foi a certeza enraizada – e Deus seja louvado por não termos perdido isso – de que existe uma diferença moral profunda entre o uso da força para libertar e o uso da força para conquistar.
Dos mais de cinquenta discursos de posse proferidos por presidentes dos Estados Unidos em 221 anos de Constituição (considerando-se os mandatos múltiplos de seus 44 presidentes), apenas um punhado entrou para a posteridade. A admiração de Barack Obama por Lincoln – que foi deputado no Illinois, mesmo estado em que o atual ocupante da Casa Branca construiu carreira política – é quase obrigatória. Ele considera que o discurso de posse feito por Lincoln em 1861 e lido à beira de uma guerra fratricida, é a peça de oratória mais decisiva da história americana. Nos dois últimos parágrafos, lê-se:
Em suas mãos, meus compatriotas insatisfeitos, e não nas minhas, está a grave questão da Guerra Civil. O governo não os atacará. Não haverá conflito em que não sejam os senhores os agressores. Os senhores não juraram perante os céus destruir o Governo, mas eu, de minha parte, prestei o mais solene juramento de preservá-lo, protegê-lo, e defendê-lo.
Temo encerrar este discurso. Não somos inimigos, mas amigos. Não devemos ser inimigos. Mesmo que nossos ideais tenham forçado os laços de afeto que nos unem, não devemos deixar que eles sejam desfeitos. Os ecos míticos da memória, vindos de cada campo de batalha e de cada túmulo de patriota, que alcançam cada coração e cada lar, por todo este vasto país, aumentarão o coro da União quando, como certamente o serão, forem tocados pelos espíritos mais benignos que nos habitam.
Dois anos atrás, pouco antes das eleições de novembro de 2008 nos Estados Unidos, justo quando a figura e retórica de Obama contagiavam o mundo, chegou às livrarias americanas um livro esplêndido sobre o ofício de escriba presidencial. Em português, o título do livro White House Ghosts seria “Fantasmas da Casa Branca”, na tradução literal. Na acepção política, é um feliz trocadilho com ghost-writer, invenção da língua inglesa para designar quem escreve textos sob encomenda que serão imortalizados por outrem. Ao longo dos últimos setenta anos, ghost-writer se tornou sinônimo de speech-writer, foi encurtado para ghost e o indigesto vocábulo passou a circular por gabinetes do poder mundo afora como se tivesse brotado na língua nativa.
O pedigree do autor do livro não poderia ser melhor: Robert Schlesinger é filho do falecido historiador e ghost de John Kennedy, Arthur Schlesinger Jr., escreve melhor do que o pai e consegue responder às perguntas mais essenciais do metiê. Como, por exemplo, se um ghost deve fazer ou promover uma política, se devem prevalecer as preferências retóricas do escriba ou dos assessores mais próximos do estadista. A obra chegou às livrarias no momento em que Obama atropelava os prognósticos eleitorais graças, sobretudo, a sua oratória e capacidade de comunicação pessoal. A força dessa ferramenta que dominava tão bem desestabilizou a corrida para a Casa Branca, e ele chegou ao poder como a figura mais inspiradora do século XXI.
Ocorre que, assim como nenhum estadista pode desmerecer a força das palavras, tampouco deve subestimar seus limites – o contexto é tudo. John F. Kennedy, no início dos anos 60, teve plena compreensão das duas coisas. Barack Obama, não. E nesse caso a responsabilidade pelo desapontamento mundial com a sua presidência não pode ser atribuída à força dos seus magistrais textos de campanha e posse. O que faltou foi a capacidade de transformar em realidade a esperança gerada por palavras. E isso não há ghost-writer que resolva.
Se houvesse, Jonathan Favreau seria o cara. Aos 29 anos de idade, ele forma uma dupla privilegiadamente afinada com o 44º presidente dos Estados Unidos. Ocupa o cargo de diretor do Departamento de Discursos da Casa Branca, com salário equivalente ao dos assessores mais graduados – 172 mil dólares anuais. Com o currículo abarrotado de honrarias acadêmicas, Favreau foi um ativista de causas sociais e tinha apenas 23 anos quando chamou a atenção de Obama. Candidato a uma cadeira de senador estadual na eleição de 2004, o atual presidente ensaiava um discurso quando o rapaz, cujo apelido é “Favs”, interrompeu-o e explicou que o texto podia ficar melhor. Não se separaram mais e desde então o presidente define Favreau como sendo o seu “telepata”. Foi dele a ideia de turbinar o slogan Yes, We Can. Ele foi, também, o principal escriba da magnífica peça de retórica que é o discurso de posse de Obama. Favreau, como ghost, sabe extrair o que há de mais notável no intelecto do presidente. Mas nem juntos nem em separado conseguem mudar a taxa de desemprego do país.
No Brasil, a paisagem formal da retórica e da oratória presidenciais, que já não era cintilante, turvou-se de vez com a entrada em cena de um chefe de Estado de língua presa e pendor improvisante chamado Lula. “Não se pode ser ghost-writer do Lula”, argumenta o diplomata Marcos Azambuja, um fino observador da vida brasileira. “Teria de ser alguém especializado em literatura oral. No fundo, Lula é um repentista extraordinário, um espontaneísta. Ele capta tudo e funciona não em relação ao texto que recebeu, mas em função da relação que estabeleceu com seu público naquele momento e ambiente específico.” Aos 75 anos de vida e 45 de Itamaraty, Azambuja mantém língua e intelecto deliciosamente afiados. “Lula pode até ler de forma competente textos que o Celso ou o Marco Aurélio lhe prepararam, mas jamais será aquela Kate Winslet”, complementa, o rosto roliço saboreando a referência à divina protagonista do filme O Leitor.
Garcia tende a concordar. “Lula estabeleceu um tipo de promiscuidade única com seus ouvintes. Nunca o vi nervoso antes de um discurso – ele sobe e fala, o que não quer dizer que sempre fale bem. Ele é completamente psicanalisado – fala tudo”, resume, referindo-se à ausência de peias do superego presidencial. E o assessor especial, não estaria falando demais pelas normas do metiê? “Meus antecessores eram menos exibidos do que eu”, reconhece ele de bom grado, ressalvando apenas não estar bem lembrado de como era o poeta Augusto Frederico Schmidt, ghost e assessor de Juscelino Kubitschek. Pela narrativa do escritor Autran Dourado, ghost do ghost de JK e autor de uma frase marcante da oratória presidencial brasileira (“Deus poupou-me o sentimento do medo”), Schmidt era tudo, menos dado ao recato. Certa manhã, ao passar pelo apartamento do poeta na rua Paula Freitas, Autran foi recebido pelo mordomo que o encaminhou ao escritório em que o dono da casa trabalhava em todo seu esplendor: “Encontrei o poeta vestido à sua maneira – nu, com apenas um robe de chambre sobre os ombros. Não era uma figura muito agradável à vista: gordo, grande, peludo, o sexo à mostra, ele se esfalfava no seu artigo para o Correio da Manhã ou num poema.”
Em matéria de retraimento e decoro, zelo e cautela extremas, o governo Lula pode contar com um ghost mineiro por excelência: o ministro Luiz Dulci, chefe da Secretaria-Geral da Presidência, cargo que será ocupado por Gilberto Carvalho na Presidência Dilma. Na topografia planaltina, seu gabinete situa-se um andar acima da sala do presidente. Dulci foi deputado federal com 26 anos de idade, líder de um dos maiores sindicatos do Brasil – o dos professores – tem prestígio, é benquisto dentro do PT e traz no currículo idiossincrasias culturais como conhecer grego e latim. Seu domínio da língua portuguesa fez com que somasse ao cargo de atribuições elásticas a tarefa de redator dos textos políticos da Presidência. Estreou com o discurso de posse do primeiro mandato de Lula, em 2003, e viu transitar por seu gabinete um volume intimidante de rascunhos.
Dois anos atrás, ficou encarregado de produzir o discurso que Lula pronunciaria no Salão Nobre da Academia Brasileira de Letras, por ocasião do centenário da morte de Machado de Assis. Segundo relatos de assessores, o texto de Dulci teve a habilidade de não sugerir que o presidente lera todos os livros do mestre. Tampouco incluiu qualquer personagem da obra do escritor. Optou por discorrer mais sobre o homem do que o autor Machado e limitou-se a inserir opiniões que Lula pudesse ler de forma crível. Trabalho de ourives. “O presidente tem uma retórica própria, diferente da maioria dos oradores”, explicou o ministro numa tarde de setembro último, desconfortável no papel de entrevistado. “Ele vai do particular ao geral, do concreto ao abstrato. Ele raciocina em público, não vai direto à conclusão, compartilha o seu processo de raciocínio com os ouvintes.” Para Dulci, uma das facetas mais singulares do presidente, que ora se despede, está na sua preocupação em expor de modo acessível o funcionamento do Estado, seus limites e possibilidades.
A linha de montagem encarregada de produzir discursos de política externa para Lula – mais de 3 mil até agora – passa por etapas. Em geral o Itamaraty gera a informação bruta e precisa, Garcia e sua equipe colocam o molho e o texto retorna ao chanceler Celso Amorim, que opina sobre a propriedade ou não da redação. Muitas vezes a gênese da versão final só vem à luz dentro do avião que leva a comitiva para o exterior – portanto, sem celulares tocando. Já de chinelo de dedo, camisa regata e relaxado, o presidente chama o seu chanceler: “Celsinho, como está a questão no país xis?”
Dada a sua capacidade de reter dados e aprender através da conversa, esta tem sido a forma mais eficaz do presidente abordar temas complexos. A trinca de diplomatas que trabalha com Garcia funciona em sistema de compartilhamento de ideias e hierarquização zero. Todos, sobretudo o chefe, aprenderam a “lular” os discursos do presidente. Isto é, não devem inserir vocábulos como “perfunctório” nem palavras proparoxítonas. “Tampouco devemos produzir peças por demais literais. Deve ser, na medida do possível, um texto que o Lula escreveria, e se não escrevesse, que gostaria de ter escrito”, explica o assessor especial.
E Marco Aurélio Garcia, qual discurso gostaria de ter escrito? A carta-testamento deixada pelo presidente Getúlio Vargas uma hora antes de se suicidar. Na época, Marco Aurélio era um menino de 13 anos que estudava no colégio Cruzeiro do Sul de Porto Alegre, e ficou impactado não com o parágrafo que entraria para a história: Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. […] Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História. O pedaço de frase que Garcia pinça de memória é outro: … o povo, que agora se queda desamparado. Coisa de gaúcho.
Uma urgência física e intelectual parece tomar conta do embaixador Marcos Azambuja durante a entrevista sobre retórica e oratória brasileiras. Ele se ergue das profundezas do imenso sofá da sala do apartamento da Praia do Flamengo e se dirige a uma estante de livros. “Me acostumei a procurar textos no Google porque minha biblioteca se resume a duas prateleiras do meio. As mais baixas não alcanço porque não consigo mais me curvar e as mais altas não alcanço porque encolhi”, vai logo explicando. Ao alcance das mãos miúdas estão apenas os volumes que realmente são vitais para a sua sobrevivência. De uma só tacada, extrai o que procurava: o segundo volume das Obras Completas de Machado, em papel-bíblia, do qual consta o texto O Velho Senado. “É uma peça maravilhosa, uma das melhores crônicas políticas da história do Brasil”, explica, perdendo-se na leitura em voz alta das memórias de Machado sobre a oratória dos velhos senadores do Segundo Império: Zacarias fazia reviver o debate pelo sarcasmo e pela presteza a vigor dos golpes. Tinha a palavra cortante, fina e rápida. […]Quando se erguia, era quase certo que faria deitar sangue a alguém…
Azambuja aproveita para observar uma diferença gritante no gestual de palanque de brasileiros e americanos. “Todo presidente dos Estados Unidos usa o dedo – não é um dedo agressivo, é um dedo que aponta para alguém na plateia anônima, que individualiza a multidão e estabelece um contato inexistente”, explica o diplomata. “Já no Brasil o que funciona é a prática do dedo em riste, como se o orador falasse para alguma divindade. A retórica nacional é cadenciada de forma retumbante, de bater no peito e dizer ‘Porque eu…’. Na verdade, ela é bastante ordinária.” Por essas terras, só lhe ocorrem três oradores de talento notável: o gaúcho Leonel Brizola, o carioca Carlos Lacerda e o maior de todos, o baiano Rui Barbosa, “com sua retórica ao mesmo tempo empolada, redundante, pedante, gongórica, porém eloquente”.
Ghosts e speech-writers nasceram e floresceram no sistema presidencialista dos Estados Unidos. Do outro lado do Atlântico, em terras inglesas, a profissão nunca teve grandes perspectivas de alçar voo. O sistema de governo parlamentarista da Grã-Bretanha exige agilidade verbal instantânea de seus líderes. Na sabatina constante a que todo político britânico se submete na Câmara dos Comuns, um orador não duraria uma semana se não pensasse com a própria cabeça – e rápido. Impossível autor e tribuno não serem a mesma pessoa. Falar bem é um dos atributos da artilharia política, e carreiras se constroem no terçar de armas retóricas com o adversário. Winston Churchill, um dos mestres da arte, chegou a desmaiar na primeira vez em que subiu à tribuna para discursar.
A prosa de Churchill não jorrava fácil no papel. Segundo o seu secretário particular, John Martin, no período dos grandes discursos de guerra pronunciados na Câmara dos Comuns e transmitidos pelo rádio, Churchill investia cerca de uma hora para cada minuto de oratória – o que significa, para cada meia hora de fala, trinta horas de ditado, escrita, reescrita, ensaio em voz alta e polimento. (Certa vez, desculpou-se: “Peço perdão pelo tamanho do discurso que farei. Não tive tempo de escrever um mais breve.”) Tanta aplicação pouco lhe serviria caso não fosse o escritor e orador que foi.
Único estadista a receber o Nobel de Literatura, Churchill foi agraciado “por sua maestria nas descrições históricas e biográficas e por sua brilhante oratória em defesa dos valores da humanidade”, conforme explicou o comitê sueco em 1953. Não deixa de ser irônico que o orador mais vulcânico da era moderna tivesse a língua levemente presa, pronunciando a letra “s” como se fosse “ch”. Com sua voz anasalada, mesmerizava plateias até a última sílaba. Ninguém se dispersava enquanto não concluísse o discurso. Tinha a força da palavra, o domínio do verbo e a certeza da mensagem. A ideia de delegar essa ourivesaria a um assessor lhe seria ofensiva.
No caso do general Charles de Gaulle, a ofensa começaria pela ideia de contratar alguém cujo metiê é designado por um anglicismo. Como autor e ator do famoso L’Appel du 18 juin 1940, a convocação à resistência ao nazismo lançada a partir de um estúdio da bbc em Londres, De Gaulle também inovou na arte da oratória. Seu chamamento não foi um apelo à França como nação. Foi um discurso/diálogo, que exigiu uma resposta interior e individual de cada cidadão francês. O paroxismo da política, em suma.
James C. Humes, que serviu de redator para cinco ocupantes da Casa Branca, foi entrevistado recentemente pela National Public Radio de Nova York a propósito do lançamento de seu livro de memórias, Confissões de um Ghost-Writer da Casa Branca (inédito no Brasil). Até então, sua obra mais conhecida tinha a brevidade de parcas 26 palavras e fora escrita a seis mãos com outros dois craques do verbo que, como ele, trabalharam para Richard Nixon – William Safire e Pat Buchanan. Trata-se da inscrição que homenageia o pouso da cápsula Apollo 11 na Lua, no dia 20 de julho de 1969. Aqui homens do planeta Terra pisaram pela primeira vez na Lua, em julho de 1969 d.C. Viemos em paz em nome de toda a humanidade, diz a placa de aço inoxidável fincada no solo lunar pelos astronautas.
Na entrevista, Humes relembra que Ronald Reagan costumava dizer que 80% do que se chama liderança é resultado da capacidade de comunicação. “Não consigo imaginar como alguém possa pretender chegar ao poder sem a habilidade de vender e inspirar, que é a essência da comunicação”, assegurava o presidente. Talvez por isso, Humes tornou-se um requisitado professor de língua e liderança na Universidade do Colorado. De Dwight Eisenhower, seu primeiro chefe na Casa Branca, guarda lembranças pouco afetuosas: “Quem trabalhava com ele se sentia um soldado raso a serviço de um general de cinco estrelas. Eu tinha medo dele”, relembra aos 76 anos de idade. Tampouco esqueceu o comentário que lhe foi assoprado por Alice Roosevelt Longworth, a irrequieta filha mais velha do presidente Theodore Roosevelt, quando ele desembarcou em Washington, ainda calouro. “James”, cochichou a velha senhora, “em Washington, primeiro existe o poder; depois, uma camada abaixo, está a ilusão do poder; e por fim, há o acesso à ilusão do poder.” Pela narrativa do veterano escriba, a profissão de ghost-writer está coalhada de profissionais da terceira categoria.
Humes aprendeu que nem sempre presidentes gostam de ideias novas, pois elas podem desarrumar o que parece estar em ordem; sustenta que a maioria prefere que se recorra a conceitos simples, esculpidos de forma a ganharem a eloquência de ditos visionários e brilhantes. Franklin D. Roosevelt cairia do pedestal se tivesse falado “Não entrem em pânico”. Ao invés disso, entrou para a história com a frase criada para ele por Samuel Rosenman, juiz da Suprema Corte de Nova York: “Acredito profundamente, e disso quero assegurar-lhes, que a única coisa de que devemos temer é o próprio medo”. John F. Kennedy, no fundo, queria apenas dizer “sejam patriotas”, quando o inigualável ourives Theodore Sorensen compôs as dezenove palavras que até hoje são transmitidas de geração em geração: Não pergunte o que o país pode fazer por você, mas o que você pode fazer por seu país. E o esquálido repertório da oratória política brasileira seria ainda mais raquítico sem o eventual lustre retórico. Ninguém se lembraria de “Eu sou corajoso”. Autran Dourado pôs mãos à obra para que JK pudesse dizer: Deus poupou-me o sentimento do medo.
No fundo, diz Humes, o ghost-writer é uma espécie de esteticista. “Um esteticista não faz a tua esposa parecer mais bonita? Fazemos um pouco a mesma coisa – fazemos um presidente soar mais bonito.”
Como já disse um dos mais talentosos praticantes da arte, Arthur Larson, assessor de Einsenhower, o processo de feitura de um discurso presidencial pronunciado por quem irá implementar a política ali defendida se assemelha à montagem de um esqueleto de dinossauro a partir do fragmento de um osso. Em tese, basta uma única pista, uma só ideia real, para que o ghost-writer arregimente argumentos capazes de sustentá-la. Sem isso, na melhor das hipóteses, ele produzirá um lindíssimo discurso à procura de uma ideia, e não o inverso. Permanece implícita, ontem como hoje, a noção de que políticas e palavras devem se manter inextricavelmente unidas. No Brasil ou alhures, a história é um cemitério de presidências falidas por não terem conseguido honrar o que prometeram em seus discursos de posse. Como já dizia Walter Isaacson, o biógrafo de Henry Kissinger, o perigo de divorciar a retórica da política ronda todo presidente. Com ou sem ghost-writers.