ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2019
A panair vive
Um herdeiro em luta com o passado
Roberto Kaz | Edição 155, Agosto 2019
O empresário Rodolfo da Rocha Miranda tinha 15 anos, em 1965, quando o pai o chamou para uma reunião com todos os irmãos na casa da família em Petrópolis. “Ele disse que havia ocorrido uma coisa que teria repercussão pelo resto das nossas vidas”, contou. “Não chegou a chorar, mas estava abalado por saber que o motivo era político.” Dias antes, o pai, Celso da Rocha Miranda, havia sido informado por telegrama que sua empresa, a Panair do Brasil, acabara de ser fechada – não por causa de dívidas, mas por um decreto assinado pelo então presidente da República, marechal Humberto de Alencar Castelo Branco. “Eu era muito jovem, não dei muita bola. Mas para os funcionários foi uma tragédia. Alguns se mataram. A Panair era uma família.”
Rocha Miranda é um homem magro, alto e solene, de 70 anos, que tem quatro filhos, nove netos e mora numa casa espaçosa na Zona Sul do Rio de Janeiro. O cabelo grisalho penteado para trás, o cavanhaque robusto e os óculos de aro fino lhe dão o aspecto de um personagem de romance antigo. A impressão é endossada pelo seu título profissional, já que Rocha Miranda é o diretor-presidente da Panair, que ainda existe no papel, mas há 54 anos não tira um avião do solo.
A Panair nasceu em 1929, como Nyrba (sigla que resumia o roteiro do voo Nova York-Rio de Janeiro-Buenos Aires), e foi rebatizada no ano seguinte, após ser adquirida pela americana Pan Am. Dominou o mercado brasileiro de aviação nos anos 30 e 40, primeiro com hidroaviões – que pousavam na costa ou em rios largos, como o Amazonas –, e depois com aeronaves de turboélices. A primeira rota nacional, entre Santos e Belém, durava três dias. “Naquela época não tinha radar. Os pilotos voavam olhando o rio, pra ter alguma referência”, afirmou Rocha Miranda. “Eram desbravadores.”
Em 1942, a Panair começou a vender suas ações, e o controle da empresa, que era inteiramente americano, foi sendo transferido aos poucos para os brasileiros. Em 1961, os empresários Mário Wallace Simonsen e Celso da Rocha Miranda tornaram-se acionistas majoritários. Simonsen era dono de uma exportadora de café e da TV Excelsior, que disputava a audiência com a TV Tupi, de Assis Chateaubriand. Miranda era dono da Ajax, então a maior seguradora da América do Sul. Além disso, eram ambos próximos aos presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart. “Quando houve o golpe militar de 1964, a TV Excelsior não mostrou a movimentação das tropas nas ruas. O Mário Simonsen foi chamado de comunista, sendo que tanto ele como meu pai eram capitalistas”, disse Rodolfo da Rocha Miranda.
Ainda em 1964, Simonsen teve cassada sua licença para explorar o café. No ano seguinte, um decreto suspendeu as concessões de linhas nacionais e internacionais outorgadas à Panair. As rotas internacionais foram automaticamente repassadas à Varig, assim como parte dos aviões e das lojas no exterior. “A lei, em 1965, era enfiar a baioneta na sua barriga ou sumir com você”, resumiu Rocha Miranda. “Tivemos que passar oito meses fora do Brasil.”
Das companhias aéreas de então, a Panair era a que tinha a menor dívida. Ainda assim, cinco dias depois do despacho presidencial, um juiz no Rio de Janeiro argumentou que, “sem linhas, a companhia não terá receita”, e decretou a falência da empresa. Cinco mil funcionários foram dispensados. No mês seguinte, Simonsen morreu de infarto, em Paris.
Rodolfo da Rocha Miranda chegou a pilotar aviões, por hobby. “O meu último avião foi um Cessna de seis lugares”, contou. Ele assumiu a negociação da falência da Panair em 1987, um ano após o falecimento do pai. Em 1995, a dívida da empresa com a União foi reduzida para 1,5 milhão de dólares por decisão judicial (o valor dizia respeito a empréstimos adquiridos junto ao BNDES antes da decretação da falência).
Ainda que discordasse da cobrança, Rocha Miranda decidiu pagá-la com o dinheiro que a massa falida tinha em caixa. Ressuscitou assim a pessoa jurídica, assumiu a presidência da Panair e inverteu o jogo, processando o Estado por causa dos bens apreendidos. “Além de ser dona de aviões, a Panair era proprietária de vários aeroportos”, explicou. Em 2007, venceu um processo no valor de 35 milhões de reais, movido em razão da desapropriação do aeroporto de Belém. O dinheiro foi para o caixa da empresa e o pagamento de advogados.
Hoje, além de Rocha Miranda, a Panair do Brasil tem dois funcionários: um diretor jurídico e uma contadora. A empresa ocupa três salas num prédio comercial no Centro do Rio, decoradas com fotos de aviões antigos – um DC-8 singrando o céu, um Constellation no hangar do Aeroporto Santos Dumont. Em quatro estantes, acumulam-se pastas repletas de documentos. “Foi tudo usado na nossa defesa no processo de falência. A ação tinha 120 tomos. Era a maior do Fórum do Rio.”
Rocha Miranda disse frequentar o escritório três vezes por semana, ocasiões em que aproveita para tocar seus outros investimentos – ele é economista e foi dono de uma empresa especializada em fazer mapas a partir de imagens aéreas. Uma vez por ano, organiza um encontro com os acionistas da Panair. “Não vem ninguém, mas eu faço. São 20 mil acionistas, gente da terceira geração, que nem sabe que é dona dos papéis.” Também uma vez por ano publica o balanço da companhia no Diário Oficial do Estado do Rio. O último deles, de abril de 2018, mostrava que a Panair tinha 8,5 milhões de reais em caixa.
Nos últimos meses, Rocha Miranda ajudou um grupo de ex-funcionários da Panair a organizar uma exposição sobre a companhia aérea no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro. “Depois, o acervo vai ficar todo com o museu, o que me deixa feliz”, afirmou. Além disso, acompanha a tramitação de dois processos de indenização pela desapropriação dos aeroportos de Recife e Fortaleza, que correm no Superior Tribunal de Justiça, e uma ação na Comissão de Anistia, movida em nome da memória de seu pai. “Nesta última não estou pedindo reparação pecuniária. Quero apenas que o governo admita que essa empresa, que gerou milhares de empregos, foi morta por causa de uma perseguição política tosca.”