Salem nasceu na Etiópia e morreu aos três anos de idade e ainda tinha dentes de leite ILUSTRAÇÃO: ANDERSON SALLES_2006
A primeira menina do mundo
Nasceu na África há 3,3 milhões de anos
Marcos Sá Corrêa | Edição 1, Outubro 2006
A primeira criança do mundo é uma menina. Chama-se Salem. Veio à luz num deserto batido por hienas, leões e guerras tribais, a 450 quilômetros de Adis Abeba. Foi batizada pelo ministro da Cultura e do Turismo Mohammud Drir com esse nome que, na Etiópia, quer dizer paz. E anunciada como “a filha de Lucy”, herdeira de todos os títulos do Australopithecus afarensis.
Lucy Amharic, a mãe, é 150 mil anos mais nova que a filha. Foi achada, em 1974, a seis quilômetros da colina onde estava Salem. Ela mostrou que o primeiro passo do macaco para chegar ao homem não saiu propriamente de sua cabeça, mas de sua bacia. Em seus ossos ficou gravado o momento em que a espécie começou a andar de pé. Lucy não passou a andar porque era mais inteligente, mas simplesmente porque podia.
No jargão científico, o Australopithecus afarensis não passa de um macaco bípede do Hemisfério Sul, encontrado na Grande Falha de Afar, um vale e escaldante no noroeste da África. O nome mistura latim, grego e dialeto árabe. Mas Lucy o tornou tão comum que os jornalistas já nem se preocupam em traduzi-lo quando aparece mais um tesouro antropológico naquele pedaço remoto da Etiópia. Ali é o berço da humanidade, um lugar quente, salgado e varrido por súbitas tempestades torrenciais, que arrastam os jipes dos paleontólogos. Lucy consta dos anais antropológicos como AL 288-1. As letras antes dos números se referem, em inglês, à “localidade Afar”. Em compensação, o apelido veio da canção “Lucy in the sky with diamonds”, dos Beatles.
Sem ela, a história de Salem seria outra, desde o princípio, porque a equipe que encontrou a menina descende diretamente da fama de Lucy. Só Lucy explica a existência no Museu Nacional de Adis Abeba de um currículo como o do paleoantropólogo Zeresenay Alemseged, que semanas atrás apresentou oficialmente “o mais velho e mais completo corpo de criança jamais descoberto”. Zeresenay é etíope, com pedigree acadêmico firmado pelo Instituto Max Planck de Antropologia Evolucionária, de Leipzig, na Alemanha, e carreira de explorador lastreada nos recursos da National Geographic Society, de Washington.
Zeresenay tem em casa uma filha de colo, Alula. Mas cuida com desvelo paterno da “menina de Dikika”. Há quase seis anos, ele retira, com uma broca de dentista, os ossos da mortalha de lama petrificada que guardava Salem numa bola do tamanho de um melão. Durante esse parto trabalhoso, a menina foi apenas um fóssil chamado DIK-1/1, que os pesquisadores etíopes avistaram pela primeira vez, em dezembro do ano 2000, aflorando de uma ravina poeirenta “como se estivesse mirando o vale”. Dikika é o lugar onde foi encontrada. Significa “teta” no dialeto local, em tributo à forma da montanha mais próxima.
Sua cabeça parecia a caveira de um chimpanzé. Coube na palma da primeira mão a pegá-la. Jazia numa colina que a equipe de Adis Abeba vasculhava desde 1999, desenterrando fósseis, mas sem achar vestígios importantes do Australopithecus afarensis. Pelo porte e pelas circunstâncias, Salem passaria facilmente pela carcaça de um macaco, se a testa alta e os caninos curtos não chamassem a atenção da pesquisadora Tilahun Gebreselassie, uma das 40 pessoas que compõem a equipe de Zeresenay.
Salem morreu aos três anos. Ainda tem nas arcadas os dentes de leite. Na garganta, sob a língua, traz intacto um osso em feitio de ferradura, o hióide, base do aparelho fonético que muito mais tarde os seres humanos usariam para se comunicar com palavras. Suas vértebras estão alinhadas na coluna. Um joelho conserva a rótula, miúda “como ervilha seca”. Em resumo, é “o tipo da coisa que só acontece uma vez na vida”, disse Zeresenay. Os paleontólogos costumam montar quebra-cabeças com cacos desencontrados. Salem veio pronta.
Salem não é, como se diz dos recém-nascidos, a cara da mãe. Lucy, um fóssil de 3,2 milhões de anos, não tem cara, e sim um rosto presumido, gerado por conjeturas científicas. Faltam-lhe o crânio e a maior parte da cabeça, acima do maxilar, para orientar um retrato mais preciso. Lucy tem apenas 1 metro de altura. A estatura identificou-a como fêmea. Mas Salem trouxe da noite dos tempos uma caveira completa, com mandíbula e caixa craniana. Teve o sexo determinado pelo exame da arcada dentária. “A diferença mais impressionante entre elas duas é que esta criança tem um rosto”, garante Zeresenay.
É, à primeira vista, a fisionomia de “um chimpanzé imaturo”, como admitem até os paleontólogos. Tem tufos de pêlo ralo no topo da cabeça, orelhas de abano e nariz achatado. Mas abriu um sorriso típico de criança no queixo saliente de macaco para a revista National Geographic, que lhe reservou a capa da edição de novembro. Fotografada a partir de um busto de silicone em tamanho natural, que os holandeses Adrie e Alfons Kennis esculpiram com espantoso rigor anatômico. Não é para menos. Eles assinam em museus do mundo inteiro as mais convincentes reconstituições do homem de Neandertal.
Da cintura para baixo, Salem é quase humana. Dos joelhos aos quadris, seus fêmures se encaixam no ângulo adequado a quem caminha sobre os dois pés. Já seus braços são compridos demais para o tronco, e os ombros terminam em espátulas semelhantes às de um jovem gorila. Nas mãos, os dedos finos e longos, um deles ainda curvado, como se agarrasse um galho fino, são indícios de que passaria um bom tempo da vida pendurada em árvores. A menina estava a meio caminho entre a copa da floresta e o chão da savana. Ou seja, entre o macaco e o homem.
Programados para andar, seus pés sem artelhos preênseis acabariam alterando os hábitos coletivos da família Australopithecus, que zanzou durante cinco milhões de anos pela África como espécie dominante de hominídios. Não serviam para se agarrar aos pêlos da mãe, como fazem os filhotes de macacos. Salem precisava de colo. Com os braços ocupados, a fêmea que se encarregasse de carregá-la perdia desembaraço durante o aleitamento. Daí a se sentir atraída por um macho com vocação para a vida monogâmica seria um pulo, sugere o professor de Anatomia Evolucionária Fred Spoor, do University College de Londres. Convém não esquecer que, nessa escala da vida privada, um pulo pode cobrir milhões de anos.
No crânio da menina há espaço para um cérebro de 330 centímetros cúbicos, como o de qualquer chimpanzé nessa idade. Mas, aos três anos, o encéfalo de um macaco está praticamente maduro. E o cérebro de Salem ainda poderia crescer, aumentando seu volume em até 37%, o que levaria tempo, impondo uma carga extra à maternidade. Ter cérebro grande é um luxo caro. Ele custa a desenvolver-se. Prolonga a infância, estendendo seus prazos de carência para além do limite em que mamíferos com menores ambições intelectuais se sentem adultos. E consome mais energia do que qualquer outro órgão do corpo. Nos seres humanos, devora um quinto de tudo o que eles consomem. Não é fácil sustentar muita massa cinzenta com dieta estritamente vegetariana, vivendo em árvores a poder de folhas e frutos, lembra Spoor, que joga no time de Zeresenay.
Começavam ali, na época de Salem, transformações que fariam os sucessores do Australopithecus viverem bem mais do que os outros primatas, mas a maior custo. O cérebro em desenvolvimento lhes daria motivos e instrumentos para cortar carnes que não poderiam ser dilaceradas com dentes sem pontas ou quebrar ossos para lavrar a mina de proteínas que eles escondem no tutano. Ou plantar para comer. Ou a comprar o almoço no supermercado via internet.
Não é à toa que Salem parecia tão vulnerável quando foi tragada pela lama do rio Awash, no coração da floresta equatorial que existia no Afar, e tão indestrutível ao ressurgir 3,3 milhões de anos depois, no leito seco de um vale desértico. No dia em que ela renasceu, havia no mundo 286,7 milhões de meninas com sua idade. Salem teve, no fim das contas, uma longa vida. A nossa.
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