ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2007
A princesa e os macaquinhos
A visita real a uma família unidíssima
Marcos Sá Corrêa | Edição 11, Agosto 2007
O bom nome do Brasil não poderia recair sobre ombros mais frágeis. Naquela quinta-feira, 12 de julho, véspera do Pan, pelo menos por meia hora ele dependeu de três sauás. Aliás, de dois sauás e meio, ou um casal com filho adolescente. Os pais teriam seus 30 e poucos centímetros de altura, a estatura regulamentar do sauá adulto, cuja ficha não é das mais gloriosas. Consta como “tímido” e “relativamente franzino” nos anais da primatologia e como “vulnerável” nas listas oficiais das espécies ameaçadas da fauna nativa. Mas o trio deu conta do recado. Pode-se até dizer que ergueu bem alto as cores do nosso lábaro estrelado – no mínimo, à altura da copa das árvores. De lá, ofereceram-se como espetáculo da nossa diversidade a Sua Alteza Real, a princesa Anne de Edimburgo.
Ela foi a Nazaré Paulista para ver macacos. E encontrou por lá uma típica família de Callicebus nigrifrons, estável e monogâmica. Os sauás se casam até que a morte os separe e vivem conforme os preceitos do cada macaco no seu galho. Evitam a agitação social típica dos bandos de primatas. Seriam modelos impecáveis de discrição, não fosse a cantoria que entoam em coro como hino de uma nota só, descrita pelo zoólogo Rodolpho von Ihering como um crescendo em compassos cada vez mais rápidos, “até o finale prestissimo“.
No mato, são fáceis de ouvir, mas difíceis de avistar. Em compensação, Callicebus quer dizer “belo símio”. De cara preta e fartos pêlos alourados, eles parecem macacos de desenho animado ou loja de brinquedo. E compareceram ao encontro com a princesa by appointment, como convém às encomendas da casa de Windsor. Para garantir a presença macacal, o mateiro José Carlos Souza de Oliveira e a pesquisadora Fernanda Zimbres Silva não tiravam os olhos do grupo desde a segunda-feira.
O programa previa “observação de primatas” às “13:30 horas”. E, na hora marcada, lá estavam os sauás, comendo frutas numa árvore à beira da trilha. A princesa nem precisou sacar da bolsa o binóculo que trazia. Bastou-lhe a máquina fotográfica com teleobjetiva. Ela pratica “fotografia de natureza”, como informou ao cicerone, o primatólogo Claudio Padua.
A viagem a Nazaré Paulista foi um desvio de última hora no roteiro de sua visita ao Brasil. Anne viera para a abertura dos Jogos Panamericanos, no Rio de Janeiro. Enfrentara em São Paulo, naquela manhã, uma conferência latino-americana de escolas da Cultura Inglesa. Aguardava-a, no dia seguinte, uma ONG que cuida de crianças num bairro barra-pesada de Diadema. Os macacos entraram em sua agenda como um intervalo de recreio.
Chegou à cidade de vestido turquesa, cercada de batedores na Mercedes-Benz prateada do consulado. Tinha quinze minutos para embarcar, de calça branca e blusa listada, no jipe que a levaria à borda da picada. No quarto do Centro Brasileiro de Biologia da Conservação, onde mudou de roupa, estava à sua espera, como o cerimonial especificara, um finger buffet lunch. Traduzindo: frutas, salgadinhos e sanduíches, tudo o que pudesse comer com a mão, em tempo de não atrasar o almoço dos sauás.
Mas, com a troca de figurino, aboliram-se os salamaleques. O anfitrião recebeu-a de roupa cáqui, botinas nos pés e boné do Ipê na cabeça. Ipê é o Instituto de Pesquisas Ecológicas, uma ONG fundada por Suzana e Claudio Padua em 1992, na sobreloja de uma imobiliária em Piracicaba. Era hora de ir para o mato.
O embaixador britânico, Peter Collecott, não abriu mão de acompanhá-la. À falta de vaga no jipe da princesa, embarcou num Gol empoeirado, pau para toda obra na frota do Ipê. O trajeto não tinha mais de 1 quilômetro. No caminho, o comboio cruzou com três carros decrépitos, estacionados em fila na beira da estrada vazia e estreita. A bordo, chupavam-se tangerinas. Ninguém deu muita bola para a comitiva real. E vice-versa.
Anne calçava docksiders bicolores, próprios para esportes náuticos, mas subiu e desceu barrancos como se estivesse nos gramados de Kent, onde se destacou no internato Benenden em “equitação, escalada e badminton”. Na entrada da trilha, havia uma cerca de arame farpado. Padua nem teve a chance de lhe explicar como se passa por aquilo: “Antes que eu abrisse a boca, ela – bluft! – estava do outro lado”. Aos 57 anos, atravessou o morro com o fôlego da atleta que, em 1976, integrou a equipe de equitação inglesa nas Olimpíadas de Montreal. Pior para o embaixador e seu terno preto, que vinham atrás.
Os sauás estiveram perfeitos. Deixaram-se fotografar como se fossem a Mata Atlântica em pessoa. Comiam nêsperas. A princesa notou, ao fundo, o ronco dos caminhões na rodovia Dom Pedro I. Tirou, do ruído, conclusões otimistas. Se era possível achar macacos a poucos passos do asfalto, não havia dúvida: “Sinal de que ainda há esperança para a natureza”, comentou, com voz de contralto e dicção modulada, própria para ser compreendida em todas as latitudes do império onde, em outros tempos, o sol nunca se punha.
A civilização ronda mesmo os sauás, bugios e sagüis de Nazaré Paulista. A 33 quilômetros dali, pela rodovia SP-36, ficam as cabeceiras das pistas do Aeroporto de Guarulhos, cercadas de morros talhados a lâmina de escavadeira. Entre as duas cidades, a Paupedra Pedreiras, Pavimentações e Construções mastiga montanhas com britadeiras capazes de engolir 400 toneladas de rocha por hora.
O Ipê, que está implantando em Nazaré Paulista a primeira escola brasileira de pós-graduação em ambientalismo, já ganhou três vezes o prêmio Whitley, o Oscar inglês da ecologia. Quem o entrega, no palco da Royal Geographical Society, é sempre a princesa Anne. No ano passado, num jantar em que se sentou ao lado de Claudio Padua, ela aceitou na hora o convite para visitar a ONG. E cumpriu a promessa. Saiu de lá levando as fotos dos sauás e os projetos de investimento na conservação da Mata Atlântica em Nazaré Paulista, além de uma sacola artesanal de juta biodegradável cheia de suvenires, como luva de bucha para banho e um par de sandálias Havaianas, da série especialmente dedicada ao Ipê. Voltava a Londres disposta a “fazer inveja” ao “irmão mais velho”. Referia-se a Charles, que ostenta, entre outros títulos, o de “Príncipe Sustentável”, outorgado na Rio-92.