CRÉDITO: CAIO BORGES_2021
A reclusa
A poeta Maria do Carmo Ferreira, de 82 anos, terá sua obra publicada em livro pela primeira vez
Carlos Adriano | Edição 182, Novembro 2021
Em 1967, Maria do Carmo Ferreira, uma poeta mineira de 29 anos, mostrou ao escritor Murilo Rubião, em Belo Horizonte, o seu novo poema. Chamava-se Meretrilho e acrescentava um vigoroso olhar feminino às criações do concretismo. Os últimos versos diziam:
MOSCAMENISCA
MENINGEPÚBIA
VAGIPENÍSOLA
CRITÓRISPUTA.
Entusiasmado, Rubião colocou Ferreira em contato com Décio Pignatari e Augusto e Haroldo de Campos, que gostaram de Meretrilho e decidiram incluí-lo no nº 5 da revista Invenção, que a tríade concretista editava, em São Paulo.
Décadas depois, quando perguntaram a Pignatari sobre a poeta, ele disse que a achava moderna, forte e agressiva, declarando: “Há mais de trinta anos entusiasmei-me e publiquei um poema dela na Invenção. […] Fiquei esperando mais. […] Mas ela aparecia e desaparecia, brincando de esconde-esconde com a poesia e com o público.”
O esconde-esconde de Ferreira com o público deu certo. Ela dedicou mais de cinquenta anos à poesia, mas pouquíssimas pessoas conhecem a obra dessa autora que tem hoje 82 anos e jamais lançou um livro.
Arredia, avessa às badalações da literatura, ela chegou a ser definida como “poeta reclusa, poeta da recusa”. As palavras são do poeta Carlos Ávila, para quem Ferreira seria uma “seguidora radical de Emily Dickinson”, que nunca teve um livro lançado enquanto vivia e escreveu: Publicar – é o leilão/Da nossa Mente.
Ferreira talvez tivesse o mesmo destino, não fosse a iniciativa de uma dupla de admiradores. Os poetas mineiros Silvana Guimarães e Fabrício Marques venceram as barreiras colocadas pela autora e organizaram três volumes com sua poesia, que serão lançados no ano que vem: Coram populo, Cave Carmen e Quantum Satis. Com 221 poemas, os livros cobrem o período que vai de 1966 a 2009, ano em que Ferreira parou de escrever. A piauí publica aqui uma breve seleção.
Guimarães e Marques organizaram os volumes de acordo com um plano temático, com a anuência da autora, que aprovou cada detalhe dos livros por e-mail ou telefone. Os dois organizadores vivem em Belo Horizonte e jamais se encontraram com Ferreira, que mora em Niterói. “Tentei encontrá-la algumas vezes. Ela nunca concordou. Mas falamos por telefone uma vez por semana, no mínimo”, conta Guimarães, que, segundo Marques, tem sido nos últimos 22 anos a “interlocutora oficial” e “a curadora da produção poética de Maria do Carmo”.
Em rara concessão, Ferreira aceitou explicar à piauí o motivo de sua vida reclusa. “Compartilho a postura ética de Emily Dickinson, sem imitá-la”, disse ela, numa resposta por escrito. “A minha reclusão surgiu naturalmente, quando passei a me sentir melhor a sós. Gosto de viver assim: distante da exposição pública, sem exibicionismos e vaidades, que não tenho.”
Maria do Carmo Ferreira nasceu em 21 de dezembro de 1938, em Cataguases. Aos 14 anos, mudou-se com a família para Belo Horizonte, onde se graduou em letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Em 1970, foi para os Estados Unidos fazer um mestrado em literatura comparada na Universidade de Illinois. Dois anos mais tarde, de volta ao Brasil, decidiu morar em São Paulo, empregando-se como redatora na agência de publicidade de Décio Pignatari. Transferiu-se em 1974 para o Rio de Janeiro, para trabalhar na Rádio MEC, do então Ministério da Educação e Cultura, como criadora, pesquisadora, redatora e coordenadora de programas literários.
A reclusão da poeta nem sempre foi tão radical como é hoje. No passado, além de ter se relacionado com os concretistas, teve contato, entre outros autores, com Carlos Drummond de Andrade, Henriqueta Lisboa e Ana Cristina Cesar, que conheceu nos anos 1970.
Depois que se mudou para Niterói, na década de 1980, Ferreira estreitou seus laços com o catolicismo e se afastou do meio literário. “Eu cultuava o ofício poético. Escrever era a minha maneira de comunicar-me com o mundo”, disse ela à piauí. “Hoje, cultuo apenas a religião. A poesia não me trouxe a resposta.”
Enquanto Maria do Carmo Ferreira se escondia, alguns descobriam a sua obra, fascinados, como o poeta brasiliense Guilherme Gontijo Flores, de 37 anos, tradutor de Paul Celan e François Rabelais. “Ela consegue ir de acontecimentos líricos profundos e dolorosos a um movimento de humor e ironia refinados, passando pelo experimentalismo puro e simples, algo tecnicamente incrível”, avalia Gontijo Flores.
Para ele, a poeta não cabe em “nenhuma gavetinha de enquadramento escolar”, mas foi capaz de dialogar “em tempo real” com certo modernismo, com o concretismo e a poesia marginal. “Ela aponta para vários caminhos que poetas contemporâneos buscam – de uma certa discursividade, de elocução de si mesmo com autoironia constante.”
Não foi menor o impacto causado em Fabrício Marques, 55 anos, autor de A Máquina de Existir. Ele deparou com os poemas de Ferreira no Suplemento Literário de Minas Gerais (do qual foi editor em 2004). “Achei diferente de tudo o que eu conhecia até ali, e continuo achando”, diz. “Neste mundo cindido, marcado pela negação dos princípios mais básicos de defesa dos direitos humanos, da ciência, da arte e das minorias, a poesia de Maria do Carmo oferece uma dimensão ética em que a linguagem pode ser uma possível reserva ecológica, apontando para novos caminhos.”
No fim de 1999, Marques enviou um e-mail à poeta, externando sua admiração – e os dois iniciaram uma correspondência. No ano seguinte, preparou um dossiê sobre Ferreira para o suplemento literário mineiro e conseguiu que ela lhe desse uma longa entrevista. Voltou a falar com ela neste ano, depois que Silvana Guimarães lhe telefonou contando que a poeta finalmente havia concordado em publicar um livro, desde que fosse organizado por eles.
Formada em ciências sociais pela UFMG, Guimarães (que não revela sua idade) edita os sites Germina – Revista de Literatura e Arte e Escritoras Suicidas. Em 1988, descobriu a poesia de Ferreira num grupo de internet em que escritores trocavam mensagens por e-mail (ainda não havia redes sociais). “A qualidade da poesia dela, o rigoroso tratamento poético da linguagem e o seu nível cultural eram bem acima da média e me encantaram”, diz.
Um dia, Guimarães recebeu um e-mail de Ferreira, comentando um poema dela. “Começamos a conversar e descobrimos muitas coisas que temos em comum.” Ela descreve a poeta como uma mulher de personalidade muito forte. “No começo, tinha medo dela”, confessa. Com o tempo, passou a ser a única pessoa do meio literário com quem Ferreira fala com frequência. “Rimos muito juntas.”
Guimarães diz que nunca conheceu ninguém que, depois de ler os poemas de Ferreira, ficasse indiferente a eles. “É uma poesia plena de assombros e reflexões, que oferece itinerários incoerentes ao leitor. Para o céu ou para o inferno. O conjunto de seus livros vai compor a surpresa poética de 2022.”
Os dois organizadores especulam sobre os motivos que levaram Ferreira a nunca publicar um livro. “A personalidade e o temperamento dela sempre tenderam para os de uma pessoa altamente reservada, refratários ao glamour, à visibilidade social”, diz Marques. Guimarães conta que ela e a poeta passaram anos falando a respeito da publicação. “E brigando por causa disso – ela ficou de mal comigo, mas eu continuei insistindo, mesmo quando ela me proibiu de tocar no assunto”, conta. “Carminha não dá à sua poesia a importância que ela tem. A sua modéstia é absurdamente desproporcional ao seu ímpeto poético.”
Não haverá noite de autógrafos no lançamento dos três livros.