Jovem aspirante a atriz, Eva fez uma sessão de fotos em poses meio mundanas numa i chaise-longue de cetim; o gato teria sido um presente do general Pablo Ramírez, que foi presidente de fato depois do golpe de 1934. Os serviços de inteligência tentaram depois confiscar os negativos FOTO: ANNEMARIE HEINRICH_ESTUDIO HEINRICH SANGUINETTI_1940
A representação de Eva
Sua beleza exercia sobre mim um fascínio irresistível, mas meu pai a chamava de bataclana. De Perón, ele não perdoava o presente. De Eva, além do presente, era imperdoável o passado
Beatriz Sarlo | Edição 73, Outubro 2012
Eva Perón morreu em 1952. No ano seguinte, o Ministério da Educação promoveu, em todas as escolas, um concurso nacional de redação sobre ela. Eu tinha 11 anos e ganhei uma menção honrosa. O prêmio foi um exemplar do livro A Razão da Minha Vida, encadernado em courvin vermelho. É a 13ª edição. Na página de rosto, traz o emblema peronista e, na página ao lado, a foto canônica, muito retocada, de Eva com um colar de rubis e uma grande rosa artificial na lapela, perto do ombro. Virando a página, à esquerda, aparece Perón com a faixa presidencial. A revista Mundo Infantil publicou uma foto dos premiados, minha primeira aparição na imprensa. Estou sorrindo, muito contente, em meio a outras trinta crianças de todo o país. Passamos a tarde da premiação no Teatro Cervantes, tomando sorvete e comendo minialfajores.
Tive que defender meu direito de comparecer ao ato. Meu pai, ferrenho antiperonista, foi contra. Eu não tinha lido A Razão da Minha Vida na escola. Também não o fiz naquela ocasião. Desalentava-me o estilo ao mesmo tempo simplório e empolado, estranho às minhas leituras habituais de romances de aventuras. Hoje, ao ler o livro, entendo por que me causava tanto tédio. Não era só por eu ser pequena demais para entendê-lo. Havia também aquela permanente elevação piegas da escritura, cuja origem (hoje vejo com clareza) está nas leituras piedosas católicas, não porque o verdadeiro autor fosse católico (como sem dúvida era), mas porque Eva adotou o livro como sendo seu, o incorporou por encontrar nele o tom “missionário” e “devocional” que atribuía (ela mesma) à sua relação com Perón.
Os discursos piedosos foram provavelmente os únicos discursos sistemáticos em que ela pôs os olhos em toda a sua vida pregressa, além dos roteiros de cinema e de radionovelas que lera aos montes quando era atriz. Além do mais, a religião como campo de imagens a sintonizava com um público popular. Eva conheceu a política na prática. Não tivera tempo nem lugar para aprender outra coisa.
Os antiperonistas como meu pai a desprezavam por considerá-la “ignorante”. Seria preciso, antes, ressaltar toda a bricolagem de ação e discurso que ela foi capaz de realizar com tão ínfima bagagem. Claro que, em 1953, eu não sabia absolutamente nada de tudo isso. Só tinha ouvido a voz de Eva no rádio. Portanto, para participar da competição escolar, eu devia buscar inspiração em outra fonte.
O que escrevi foi uma espécie de pastiche de um texto francês que começava com S’il y a un être [se existe um ser] e enumerava as qualidades desse ser sempre precedidas por essa fórmula, até terminar: Cet être est ta mère [esse ser é sua mãe]. Eu tinha encontrado o texto numa excelente gramática cheia de exemplos tirados da literatura. Não sei quem é o autor, nem que caso gramatical explicava. Tive a boa ideia de copiar essa figura retórica (a anáfora) e montar um escrito sobre Eva em cima desse esquema. Foi meu primeiro plágio. Não pensava em contá-lo a ninguém e, claro, o mantive em segredo até saber da premiação. Ninguém conferia minha lição de casa.
O pequeno escândalo familiar, porém, me obrigou a lançar mão de uma segunda artimanha, pois estava bem pouco preocupada em dizer a verda-de. Nem sei se eu tinha uma noção de verdade. E, por mais que adorasse meu pai, não estava disposta a lhe oferecer o sacrifício da minha desistência. No ano anterior, eu já tinha sido forçada a acatar sua proibição de ir ao enterro de Eva, impedindo-me de desfilar diante do primeiro cadáver da minha vida. O prêmio era uma (involuntária, inconsciente) revanche.
Então revelei o plágio e, ato contínuo, afirmei, com um sangue-frio que convenceu a mim mesma no primeiro instante, que eu tinha me inspirado na minha própria mãe para escrever sobre Eva Perón. Ninguém deu muito crédito a essa insólita demonstração de sentimentalismo filial. Mas era melhor minha mãe fingir que acreditava, convencer meu pai e ver qual das minhas tias me levaria ao Teatro Cervantes no dia da cerimônia. Eu tinha 11 anos e estava mais interessada em receber a honraria do que em qualquer batalha política, real ou imaginária. Ganhara um prêmio sem a ajuda de ninguém, e todo o resto não tinha a menor importância para mim.
Por outro lado, gostava de Eva. Dois anos antes, eu passara o verão internada num hospital. Fui atropelada por um caminhão numa esquina onde brincava sozinha, pulando amarelinha, enquanto esperava a hora do catecismo na igreja do bairro. Fiquei jogada sobre um monte de lixo. Um sorveteiro largou seu carrinho no meio da rua, pediu para um motorista parar e me levou nos braços até o hospital; meus pais só ficaram sabendo do acidente horas depois. Durante as festas de fim de ano, de 20 de dezembro até o Dia de Reis, os presentes da Fundação Eva Perón não pararam de chegar, cada um com seu timbre e a foto de Evita.
Não foi preciso muito mais para ganhar meu coração. Éramos vinte ou trinta crianças, queimadas, atravessadas de suturas, à beira da gangrena, abertas ao meio, engessadas, largadas em caminhas brancas. Com dor em várias partes do corpo, às vezes algumas passavam a noite inteira gritando. Mas no lanche da tarde, junto com o chá-mate, quem podia comer recebia um pedaço de panetone. Alguém pensava na gente. As mães daquelas crianças garantiam que era Evita quem cuidava de tudo.
Todos os anos, até onde minha memória alcança, na cidadezinha do interior onde passávamos as férias, o prédio do correio ficava abarrotado de pacotes de panetone, sidra, torrone, bonecas, carrinhos e bolas de futebol. Meu pai me explicara que nenhum daqueles pacotes era destinado a nós, mas principalmente que, se resolvessem nos entregar algum, nós não aceitaríamos. Era um doutrinador incansável, que sempre repetia a palavra “demagogia”. Eu não entendia o que podia haver de errado em distribuir brinquedos e bebidas para as festas de fim de ano.
Meu pai era leitor de La Nación, jornal da oposição, mas todo dia também dava uma olhada no situacionista El Mundo, que entrava em casa pelo espírito de contradição de minha mãe, e porque ela tinha um irmão peronista. Ele o folheava com fingida displicência que encobria sua indignação, e todo dia dizia, invariavelmente: “É um catálogo.” De fato, El Mundo trazia dezenas de fotos de Perón e Eva: um mosaico na última página e nas duas centrais. Hoje acharíamos a impressão embaçada e escura demais. Naqueles anos 50, não tínhamos tanta pretensão de nitidez. Bastava que pudéssemos ver o rosto pálido de Eva, seu cabelo loiro e suas mãos.
Eu gostava daquele jornal ilustrado e, embora disfarçasse por amor ao meu pai, pouco me importava que fosse um “catálogo”. Por outro lado, não era nem um pouco ciosa da coerência (na verdade, entregue às minhas inclinações, ignorava o próprio conceito) e também gostava de arrancar cartazes peronistas junto com ele. Para mim, essa atividade insensata não tinha nenhuma relação com as fotos dos jornais. Arrancar cartazes peronistas dos muros pertencia à esfera do proibido, porque eu percebia que envolvia certo risco e que meu pai me concedia uma honra ao me deixar participar daquilo. Rasgávamos os cantos mal colados dos cartazes, de noite, ao voltar a pé da estação. Ninguém nos via, claro. Eu também gostava quando, nos bares, meu pai descia a lenha no governo, para constrangimento dos garçons, que o adoravam por sua característica generosidade na hora de deixar a gorjeta.
Olhar as fotos de Eva não tinha nada a ver com isso. Na minha cabeça, as fotografias do jornal El Mundo não tinham ligação nenhuma com as dos cartazes da propaganda oficial. E Eva também não era atingida pelos insultos do meu pai, que eu escutava sem entender.
Para mim, Eva estava associada à moda. Eu a via como modelo ou atriz, embora soubesse que fazia parte do chamado “regime”. Sabia que ela trabalhava na Fundação que levava seu nome (o peronismo era intensamente personalista) e que “cuidava dos pobres”. Mas meu olhar ficava fascinado pela superfície fashion. De certo modo, a beleza de Eva exercia sobre mim um impacto análogo ao que exercia sobre os “pobres”. Não era nada daquilo de que podiam acusá-la: ser atriz, corista, bataclana [cabareteira de “vida fácil”]. Tratava-se de uma qualidade insólita no mundo fosco da iconografia política, até então dominada por homens e, em certas ocasiões, como recepções em embaixadas ou datas patrióticas, por matronas quarentonas, pesadas e sem graça. A juventude de Eva a singularizava. Sua beleza a tornava admirável para quem, como eu, estava fora e longe da política. Ela me remetia ao cinema e às revistas de moda.
As crianças não têm “bom gosto inato”. Essa crença pertence a um imaginário rousseauísta, que confere às origens um caráter puro que vai sendo perdido à medida que a sociedade faz seu trabalho. Ao contrário, na origem (na primeira infância) não há nada. Sobre esse nada agem a família e a escola. Mas ambas têm que competir com a mídia. As crianças são extremamente sensíveis às formas da indústria cultural porque é esse seu primeiro território de formação. O gosto vai se formando como uma geologia de fractais, em que emergem camadas de diversas procedências. Foi assim que me formei: escola de elite e muitas horas ouvindo rádio ou indo ao cinema, para assistir a filmes argentinos, nas matinês das “quartas para damas”, dia de meia-entrada.
Minha educação, como não podia deixar de ser, teve como primeiros mestres o cinema nacional e o rádio. Acho que esses anos iniciais tiveram como efeito retroativo a minha permanente imunização ao amor tardio pelos produtos da indústria cultural. Como foi meu meio natural antes dos 6 anos, nunca senti diante dela o encanto súbito de quem acaba de descobrir um mundo desconhecido. Combinava ridiculamente as radionovelas com os poemas de Amado Nervo ou Manuel Cunha que escutava sem entender, mas que, assim como o radioteatro, eram melodramáticos e por isso cativantes.
Eva Perón vinha do cinema e do rádio. Chegara a Buenos Aires, vinda do interior, em 1935, jovem e disposta a vencer na vida. Não passou de uma atriz de segunda linha, mas chegou a sair em algumas capas de revistas de variedades, participou de vários filmes e foi protagonista de radionovelas. As estrelas da época tinham um tipo muito diferente do dela: rostos redondos, olhos grandes. A beleza de Eva era mais moderna que o ideal de seu tempo. Não era “ingênua” nem femme fatale, as duas tipologias do show business.
Quando se casou com Perón, em 1945, Eva abandonou a carreira artística – que, de mais a mais, não era excepcionalmente exitosa. Por isso eu não chegara a vê-la em nenhum filme, nem a ouvi-la em suas radionovelas, que foram definitivamente interrompidas em 1946. Ainda assim, reconhecia em Eva o carisma do maravilhoso mundo das estrelas. Mesmo não tendo sido uma estrela, mesmo sem ter passado de uma aspirante, algo desse mundo permanecia nela.
Para mim, Eva representava o non plus ultra da elegância. Naquela época (final dos 40, início dos 50), a elegância era o valor máximo não apenas para os grandes estilistas, mas na hierarquia de qualidades com que se julgava uma mulher. O glamour e o brilho, o sex appeal ou a sensualidade podiam ser o trunfo de grandes personalidades do show business. Mas a elegância ainda prevalecia sobre todos os outros aspectos. Isso parece estranho do ponto de vista da cultura visual contemporânea, que valoriza o glam e o pop. A moda daquele tempo era para senhoras, não para adolescentes; e essas damas se tornavam damas justamente porque, ao invés de exibir sua sensualidade, a encobriam com muita roupa. A moda era séria, até nos modelos mais ousados.
Eva tinha um corpo sem curvas, o que a tornava “naturalmente” elegante; para desespero de seus inimigos, que eram maioria nos setores sociais que até então se arrogavam em juízes do gosto. Sirigaita, vinda de uma cidadezinha perdida na província de Buenos Aires, filha ilegítima de um homem cuja família oficial tentou impedi-la de entrar na sala onde ele foi velado; a amante de um coronel da revolução de 1943 e de outros homens, incluídos alguns empresários do show business, tinha ascendido para profanar um espaço que, até então, estivera protegido pela segregação de classe.
Eva não parecia uma atriz disfarçada de “senhora”. Era uma mulher que não denunciava sua origem, desde que permanecesse em silêncio, porque nada delata mais cruelmente a origem do que a voz e a entonação. Mais até do que a pronúncia.
Vinda de lugar nenhum, seu corpo era o suporte perfeito para que a elegância não parecesse um empréstimo, e sim uma qualidade inata – ainda que imerecida, como tudo que é inato. Seu passado suspeito como atriz de segunda classe se desvanecia no esplendor de uma elegância construída que parecia absolutamente natural. Eu, nos meus 6 ou 7 anos, já notava alguma coisa: aquela falsa autenticidade ou aquela autêntica, esmagadora falsidade que se impunha como a verdade de Eva. Em última instância, se Eva, enquanto pensou que sua carreira era a de atriz, teve uma aguda consciência de seu corpo (suas fotos com vestidos e penteados exagerados a mostram ansiosa por uma ascensão ao estrelato que nunca conseguiu), quando se tornou a mulher de Perón, utilizou essa experiência acumulada para transformar seu corpo na efígie máxima do regime.
Até onde sabemos, sua aparência foi alterada em alguns detalhes decisivos. Perón incumbiu o costureiro Paco Jaumandreu de supervisionar o guarda-roupa da primeira-dama. Além disso, todos os anos chegavam da Europa dúzias de vestidos, impecáveis, definitivos, assinados por Dior, Fath ou Balenciaga, para ela usar nas cerimônias de Estado. Em dezembro de 1950, a revista Life publicou uma série de fotos de Eva tiradas por Gisèle Freund, acompanhadas de um artigo de Robert Neville, um de seus jornalistas mais destacados: “Evita mudou consideravelmente desde que se tornou primeira-dama. Por um lado, ela se veste muito melhor, o que não é de admirar, se pensarmos nos 40 mil pesos, ou mais, que gasta anualmente com os mais renomados estilistas parisienses. Evita compra uma dúzia de vestidos por ano de cada um dos quatro ou cinco melhores, dependendo da coleção. […] Suas peles e joias competem na mesma escala. Com o passar dos anos, seus penteados também foram sofrendo mudanças muito reveladoras. […] Quem chega a Buenos Aires se surpreende ao ver Evita às oito ou nove da manhã assistindo a uma assembleia de garis vestindo um soberbo Dior e enfeitada com joias de Van Cleef.” E Neville continua: “Evita é tão envolvida com seu trabalho que não tem tempo para maiores diversões. Raramente sai à noite e, a despeito do seu guarda-roupa, leva uma vida bem espartana […]. Foi-se o tempo em que ansiava ser aceita na sociedade. Isso já não lhe importa. Ela não procura apoio, nem precisa dele. Tem estatura e decisão próprias. Para o bem ou para mal, sua vontade governa a Argentina.”
No tailleur desenhado por Jaumandreu, Eva, como uma Ninotchka nativa, encontrou sua roupa de trabalho. Perfeitamente colado a um corpo que prenunciava a magreza das modelos de décadas posteriores, o tailleur, que teria envelhecido, em sua formalidade, uma mulher mais madura que Eva, dava a ela um ar sereno, sem diminuir o impacto de sua juventude. Ela chegou a ser a mulher mais importante da Argentina antes dos 30 anos.
Todas essas imagens aconteciam “ao vivo”, embora não fosse o “ao vivo” da televisão. A ideia do “ao vivo” e a experiência do “estar lá” são efeitos tecnológicos. No final dos anos 40 e começo dos 50, o rádio e os jornais mostravam a mais absoluta atualidade porque não competiam com a televisão, muito menos com as telas da internet. Não estavam defasados em relação a outras tecnologias porque comunicavam na velocidade máxima alcançada até então. O “grau de atualidade” é definido pela tecnologia, e quem transmitia os fatos “ao vivo” era o rádio. Os jornais os recolhiam poucas horas depois, mas na ausência de meios mais velozes, os jornais também pareciam noticiar tudo ao vivo. Já havia televisão em outros países, mas, para o público argentino, essa experiência não existia.
Portanto, eu “via” Eva o tempo todo. As trinta fotos do jornal El Mundo e as sequências de Noticias Argentinas, o cinejornal que precedia todos os filmes, me ofereciam todo o Jetztzeit possível, que eu então estava em condições de desejar.
O que mais impressionava à primeira vista era a perfeição de sua cabeça, um volume de extraordinária regularidade, de nítidos contornos ovais, como que traçados com buril. O cabelo muito repuxado, preso num coque baixo, foi um achado que ressaltava a serenidade e a tornava estatuária. Com esse penteado, a cabeça de Eva tinha uma espécie de majestosidade simples, uma elaboração formal despretensiosa, porém imutável. Ela podia passar dias e noites penteada assim. Era um penteado que a livrava das minúcias do retoque. Esse penteado “clássico” de Eva, por outro lado, se diferenciava dos chanelzinhos frisados que eram moda na época. Aqueles cortes chanel davam à mulher um ar “tolo” que Eva jamais teve. Com esse penteado, ela nunca parece anacrônica, como acontece com as belezas daqueles anos (exceto as que, como Eva, têm cabeça e ossos perfeitos: Lauren Bacall, por exemplo). Diferentemente das atrizes (de cujo mundo Eva provinha e se afastara), a maquiagem que ela usava era leve porque, como atestam inúmeros testemunhos, sua pele tinha uma extraordinária e luminosa transparência. E seu rosto, não particularmente bonito, era de uma regularidade suave, que aceitava qualquer enquadramento fotográfico.
Com a entrada de Eva na política, ocorreram transformações. As fotos de 1945, as últimas de sua vida de atriz, publicadas nas revistas de variedades, mostram uma mulher muito jovem, mas compenetrada, triste ou muito séria, com o olhar fixo, as pupilas escuras, melancólica, sem vida. É a atriz que sabe que está deixando de ser atriz, mas continua vestida com todos os brilhos de gosto e valor médio.
Evidentemente, todos os antiperonistas lembravam a ascensão vertiginosa de Eva e a mudança ocorrida desde aquela imagem carregada até a sobriedade de seu tailleur de Ninotchka. Mas esse não foi seu único estilo. O vestuário que Eva levou para sua viagem à Espanha, em 1947, foi de alta-costura, realmente extraordinário. E em 1950 as fotografias publicadas na revista Life, feitas por Gisèle Freund, mostram um guarda-roupa interminável, fileiras de sapatos, de chapéus, de vestidos, cofres cheios de joias.
Quase todos os dias, até a morte de Eva, meu pai repetia a mesma frase: “Somos governados por uma bataclana.” Era nesse clima de ódio cultural que nós, crianças do início dos anos 50, nos movíamos, como fantasminhas inconscientes. Para mim, a frase dizia muito pouco. No dicionário de capa dura da Real Academia, essa palavra não constava. Tinham me convencido de que nesse livro estavam todas as dúvidas e suas respectivas soluções. Mas de bataclana, nem sinal. O tom do enunciado do meu pai não deixava dúvidas quanto a seu caráter pejorativo, mas eu não fazia maiores perguntas, temendo topar com algo pior do que meu pai estava em condições de explicar a sua filha.
A família, apesar de maciçamente antiperonista, me oferecia outra versão. Um tio, irmão de minha mãe, Jorge del Río, militante nacionalista e populista nos anos 30, me contou que tinha entrado, com sindicalistas do setor elétrico, no gabinete de Eva. Feitos os cumprimentos, Eva lhe disse: “Olhe, doutor, melhor o senhor me deixar com os rapazes e esperar lá fora.” Del Río, que estava lá como advogado ou assessor do sindicato, não se ofendeu com a ordem. Eva sabia falar com os operários e, naquela conversa, não precisavam dele (explicava Del Río). Na verdade, desde o início, desde a campanha eleitoral de 1946, Eva batalhara para se transformar no único canal legítimo de acesso a Perón. E tinha uma profunda desconfiança da classe letrada. Os advogados sempre haviam sido os intermediadores da política. Eva queria ser a única intermediadora. Por muitos anos tinha sido obrigada a suportar que homens importantes (de empresários do showbiz a coronéis do regime de 1943) a tratassem como uma mulherzinha. Agora era sua vez. Ela manobraria os leais, fazendo da lealdade um dever de caráter político-religioso-mítico. O machismo de meu pai via uma Eva arbitrária, vingativa, todo-poderosa. Os sindicalistas a consideravam uma aliada ou uma ponte para Perón.
Eva tinha aprendido, desde muito jovem, a se movimentar e a se defender num mundo masculino. Na minha fórmula, o substantivo bataclana usado por meu pai não se somava ao caso narrado por meu tio. Os dois se superpunham. Talvez a contradição não fosse tão extrema, embora os sentimentos fossem extremados.
Como o jornal El Mundo publicava muitíssimas fotos de Eva despachando em seu gabinete, não era difícil para mim imaginar a cena. Ela atrás de uma mesa, com seu tailleure seu cabelo repuxado, estendendo a mão de dedos finos num gesto que incluía “os rapazes” do sindicato, enquanto imaginava meu tio em segundo plano, chapéu na mão, prestes a cumprimentá-la e a se retirar. O que Del Río me contava era perfeitamente compatível com a imagem da “Eva trabalhadora” daquelas fotos. A palavra bataclana, ao contrário, não estava ligada a nada, a nenhuma imagem. Nesse aspecto, a garota que eu era estava na mesma situação de milhões de argentinos, sem saber nem tirar nada disso, nem uma ideia, nem um sentimento. Se Eva não fosse bonita e elegante, eu certamente não teria me interessado pela informação gráfica do jornal.
O sólido antiperonismo de meu pai bastava para eu me sentir distante. Não bastava para me transferir o sentimento antiperonista porque eu carecia dos elementos intelectuais necessários para que passasse a ter uma convicção diferente. O que eu sabia do peronismo era praticamente zero. Vivia no mundo da Lua, esse gelado satélite que é a infância, onde não entendemos nem conhecemos nada direito, e todo esforço é inútil porque, quando conseguimos entender, já é tarde demais. Nunca é tempo de aprender, ou, melhor, a aprendizagem é sempre tardia, fora de lugar, porque o lapso entre a aprendizagem e a realidade sempre se mostra grande demais. Quando a menina que eu era achou que tinha entendido alguma coisa, as coisas já tinham mudado. O que ela aprendeu não serviu retrospectivamente para reordenar suas lembranças de infância. Antes, invalidou-as para sempre.
Hoje olho as fotografias que vi na infância e não consigo nem reconhecer meu olhar, nem confiar na lembrança do que elas suscitaram em mim. Tudo é ameaçado pelo risco do anacronismo, pela confiança ilimitada de que é possível recordar “bem”, como se o tempo pudesse ser comprimido e quem recorda entrasse numa cápsula que fizesse viajar ao passado e chegar lá intacto.
O anacronismo em relação a certos modelos de beleza de sua época talvez seja um dos efeitos que mantêm aquelas imagens no presente de uma visão “atemporal”. Quanto mais despojada é a imagem de Eva, mais ela se aproxima desse presente. Essas imagens não alimentam um gosto retrô, que se deleita em descobrir estilemas do passado para uma reciclagem em que o olhar separa aquilo que, afinal, é reciclável. Claro queo que eu chamei de “vestidos de cerimônia” fixa Eva numa iconografia de alta-costura francesa, com as grifes de Dior e Balenciaga. Mas dezenas de imagens, em que sua roupa é menos elaborada, não a ancoram irremediavelmente entre as “belezas de uma década”. Ao contrário, elas acentuam a atemporalidade clássica de sua cabeça e o ovaloide regular de seu rosto de pômulos achatados: uma obra-prima espontânea da fotogenia.
O perfil de Eva, com o peso do coque sobre a nuca, foi estilizado em milhares de reproduções e cartazes. Seu rosto é tão liso e sem relevos que o gesto enérgico, exagerado, teatral, não tem maiores consequências. Não deforma. Pelo contrário, Eva é menos interessante, muito menos, quando aparece com o cabelo solto e sorrindo. Banaliza-se, perde síntese. Parece mais jovem, mas também mais distante no tempo: mais antiga.
Na época em que olhava as fotos publicadas no jornal El Mundo, eu não pensava em nada disso. Era puro olhar, pura contemplação excitada. Só conhecia as fotos que vinham no jornal e, como o jornal era meu único contato com aquele mundo distante e odiado por meu pai, nem sabia da existência de outras. Nunca entraram em minha casa, por exemplo, os calendários fotográficos peronistas.
Por trás das imagens públicas, também havia outras não divulgadas durante o governo peronista: as da Eva atriz, fotos marcadas por um mau gosto de época, quando não foram redimidas pelo talento e pela luz de Annemarie Heinrich. Essa fotógrafa de origem alemã e excelente técnica, especialmente em estúdio, autora das mais famosas capas das revistas de variedades, registrou e ajudou a criar o modelo de beleza das celebridades dos anos 40 e 50. Ela fotografou Eva como atriz; corrigiu em algumas poses a magreza de um corpo que não correspondia por completo ao padrão da época. Em seu arquivo há uma série de fotos, realizadas entre 1937 e 1940 (quando a aspirante a atriz era uma jovem mocinha), que não foram publicadas nem reproduzidas: Eva, como uma demi-mondaine, provocante e oferecida, em uma chaise-longue de cetim, estilo francês, envolta em sedas, o cabelo solto e trabalhado pela luz. Em algumas poses há um gato, segundo comentários, presente do general Pablo Ramírez, que foi presidente de fato depois do golpe de junho de 1943. Ramírez teria insistido para que esse gato acompanhasse a modelo no ensaio. Quando Eva morreu, os serviços de inteligência entraram de madrugada na casa da fotógrafa para confiscar todos os negativos dessa série. Heinrich conseguiu esconder as cópias.
Nos meus 6 ou 7 anos, eu teria admirado essas fotos secretas muito mais do que as embaçadas reproduções dos jornais. Elas têm a sensualidade necessária para os devaneios de uma garota, que não conseguiria resolver seu enigma. E se meu pai as conhecesse, teriam sido a prova gráfica de que ele precisava para demonstrar a justeza do insulto que todo dia aplicava a Eva. Fotos de uma bataclana arrivista; Eva escalara dos estúdios de rádio e das garçonnières de seus amantes poderosos ao topo bifronte do governo peronista. De Perón, ele não perdoava o presente. De Eva, além do presente, era imperdoável o passado. Meu pai levava esse passado na retina. Um passado que começava na década de 30, muitos anos antes de eu nascer. Eu o desconhecia e, se o conhecesse, provavelmente teria se somado aos motivos daquela atração. Muito mais do que a política, me interessavam as atrizes, claro. E acho que eu nem sabia que Eva tinha sido atriz, porque a palavra bataclana não servia de orientação.
A roupa de quem tem poder não é uma questão privada nem uma questão de modas e estilos, mas uma questão de Estado. Eva Perón teve a intuição mais profunda dessa existência política dos signos. Seu tailleur desenhado por Paco Jaumandreu foi o emblema do Estado protetor dos pobres, o uniforme de trabalho de quem estabelecia as mediações entre o governo e o povo. Os vestidos de Dior, Rochas e Balenciaga foram o lado faustoso do Estado peronista, o momento em que seu chefe político e sua chefe espiritual (Juan e Eva Perón) se mostravam com o esplendor correspondente à encarnação do poder estatal que residia em seus corpos.
A Fundação Eva Perón publicava anualmente calendários ilustrados com doze fotografias. Visivelmente retocadas e colorizadas, são uma galeria em que Eva é oferecida como corpo do Estado peronista, inclusive depois de sua morte. Essas séries alternam as fotos “oficiais” (tiradas para ser emolduradas e penduradas nos edifícios públicos ou reproduzidas em cartazes e selos) com as de origem jornalística, captadas por profissionais treinados na imprensa peronista, e algumas fotos de autor, como as de Heinrich. Eva usa com frequência um vestido claro de verão (que indica uma excursão pelo interior) ou seu clássico tailleur de lapelas arredondadas, grandes botões e debruns de veludo; mas há muitas fotos produzidas a fim de exibir todas as suas joias: o famoso colar de rubis e brilhantes; os brincos de ouro e os broches chamativos, incluído o grande emblema peronista em pedras preciosas; a parure de esmeraldas; o colar de ametistas e pérolas; outro, lindíssimo, tipo déco, de rubis e diamantes; outro ainda, com duas ou três voltas de pérolas. Quase sem exceção, aparece de cabelo preso, com o coque sobre a nuca.
O fausto dessa rainha do Estado peronista extrai seu sentido não apenas das preferências pessoais de Eva Duarte, a ex-atriz de segunda classe, ex-amante de alguns dos coronéis do golpe de 1943 e de empresários do espetáculo. Subordiná-lo a seu gosto particular faz perder de vista a função pública do luxo no cerimonial do Estado. O luxo afiançava a representação: era a realização de um sonho arcaico ou a construção visual de uma alegoria. Respondia ao estilo público. A oposição contemporânea ao governo peronista odiou Eva porque ela ocupou o Estado com as más artes da atriz de passado duvidoso. Mas as joias e peles não eram apenas acessórios privados, tributos à vaidade ou desforra da humilhada, eram também partes de uma alegoria do poder. Não eram simples concessões à cobiça de uma parvenue indigna de Dior ou Balenciaga, com um marido que a cobria de diamantes adquiridos por meios escusos. Essa mulher oferecia seu corpo como imagem do regime.
Teriam que transcorrer muitas décadas para eu entender que Eva foi uma Representação.