Teuda Bara e Antonio Edson em uma cena da peça-filme, no aeroclube de Belo Horizonte: os dois atores participaram da criação do Grupo Galpão, que no ano que vem completa 40 anos CRÉDITO: FERNANDO LARA_2021
A terra fumegante
Minha jornada com o Grupo Galpão em Partida de Vôlei à Sombra do Vulcão
Silvia Gomez | Edição 183, Dezembro 2021
Depois de oitocentos anos em silêncio, um vulcão no Monte Fagradalsfjall, na Islândia, entrou em erupção, às 20h45 (horário local) do dia 19 de março passado. A manifestação de fúria da Terra foi celebrada pela cantora islandesa Björk em sua rede social: yesss!!, eruption!! we in Iceland are sooo excited!!!
Ver alguém festejando uma erupção vulcânica, quando o fenômeno comumente sugere destruição e medo, me pareceu estranho. Comecei então a pesquisar sobre o Fagradalsfjall até encontrar a imagem que faltava para dar a partida em uma viagem que eu planejava desde janeiro deste ano, quando recebi uma mensagem do ator e diretor mineiro Eduardo Moreira, do Grupo Galpão: “Oi, Silvia. Queria conversar sobre a possibilidade de fazermos um projeto. Posso te ligar?”
Eduardo queria que eu escrevesse uma peça de teatro para o grupo, convite que me deixou paralisada. Explico. Escrevo peças há vinte anos, mas antes disso já estava na plateia do Galpão, quando eu morava em Belo Horizonte. Lembro-me da atriz Inês Peixoto passando o chapéu após a apresentação, no final dos anos 1990, em uma noite gelada nas ruas de Ouro Preto, cidade a cerca de 100 km da capital mineira. Sei de cor as canções das montagens A Rua da Amargura e Romeu e Julieta, da mesma época. Uma das músicas foi cantada no enterro da minha avó, Coeli de Novaes, que também as amava. A canção dizia: Você gosta de mim, oh maninha?/Eu também de você, oh maninha. Depois, ao longo dos anos, ouvi dos atores do Galpão as palavras de Molière, Tchékhov, Pirandello, Gógol e Italo Calvino. Em 2016 e 2018, me entusiasmei com as experiências do grupo em duas peças no limite da performance, Nós e Outros, dirigidas por Marcio Abreu.
Quando Eduardo me escreveu, em janeiro, todas as memórias que eu tinha do Galpão pulsaram em mim como se eu tivesse ouvido a funcionária da companhia aérea avisar: “Senhoras e senhores, última chamada para o voo… Embarque imediato no portão…” Então, respondi a ele: “Sim!”, eu disse “sim”. E embarquei no projeto. O único problema era este: eu não tinha mapa nem destino certos.
Na verdade, não estava tanto assim nas mãos do acaso. No início daquele ano, eu andava obcecada por relatos de viagem e, logo depois do convite, retornei a Eduardo com uma proposta vaga. Como nós, artistas de teatro, vivíamos um momento de certa imobilidade por causa da pandemia, eu me propus a imaginar uma série de jornadas mentais que os atores fariam, expostas em monólogos, tudo costurado por um único diário de viagem, que funcionaria como fio narrativo.
Até então, eu tinha escrito peças com, no máximo, três personagens. O texto para o Galpão exigia um tema que pudesse envolver todos os oito atores do grupo escalados para o projeto: além de Eduardo Moreira, Inês Peixoto, Teuda Bara, Antonio Edson, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia, Paulo André e Simone Ordones. A isso se juntava outro desafio: enfrentar a crise por que passa a ideia de personagem. Crise que não é vivida somente por mim, mas por toda a dramaturgia contemporânea, e fala de muitas outras crises: da unidade narrativa, da fábula, da ação, do conflito, do diálogo, do drama e do próprio conceito de representação diante da complexidade do real e das relações sociais e políticas atuais.
Para tentar contornar as questões que me incomodam em uma personagem convencional, pensei então em criar uma montagem polifônica. Os diferentes atores (vozes) fariam suas travessias até se encontrarem, ao final da peça, em um mesmo lugar. O destino último de todos eles me fascinava. Quem sabe não valeria a pena terminar a peça em uma ilha, como a Islândia, esse país cujos vulcões parecem ser comemorados como força criadora de novas topografias?
A imagem que selou a minha pesquisa em marcha e resumiu a pulsão da peça que começava a escrever veio de um vídeo na internet, transmitido em 27 de março pela atleta islandesa Thelma Grétars. Mostrava quatro pessoas vestidas com blusas de lã estampadas, gorros e luvas, jogando vôlei a certa distância do vulcão, indiferentes ao frio de -12oC e ao cone de lava contínua que se vê ao fundo.
Eu estava às voltas com essas reflexões quando encontrei dois livros: Um Bom Par de Sapatos e um Caderno de Anotações: Como Fazer uma Reportagem, de Anton Tchékhov (1860-1904) – autor de quem o Galpão já havia montado, em 2011, Tio Vânia, com direção de Yara de Novaes –, e A História do Caminhar, da historiadora e feminista norte-americana Rebecca Solnit.
Em 1890, Tchékhov decidiu fazer uma viagem à Ilha de Sacalina, inferno gelado na costa oriental da Rússia para onde o governo deportava condenados. Em uma carta a Aleksei Suvórin, editor do periódico Nóvoie Vriémia, o dramaturgo disse: “Mesmo que a viagem não me dê absolutamente nada, será que, apesar de tudo, não haverá uns dois ou três dias dos quais eu vá me lembrar o resto da vida com entusiasmo ou com amargura?” Tchékhov passou três meses em Sacalina, registrando o seu cotidiano e o dos habitantes, à maneira de um repórter.
Duas coisas me chamaram a atenção no livro. Primeiro, o fato de a narrativa de Tchékhov ser dividida em capítulos, com títulos que são como itens de uma lista de tarefas e de uma série de reflexões sobre a vida, a escrita e a viagem, como: Mudar de Ares, Viajar para Vencer a Preguiça, Disponibilidade para Mudar de Ideia e Não Desanimar: Não se Deixe Vencer pelas Dificuldades Iniciais e pelo Medo do Imprevisto. Isso me inspirou a organizar a peça não por atos e números de cenas, mas como se as diferentes etapas das viagens dos personagens fossem estruturadas por comentários em um diário de bordo.
Também me impressionou como Tchékhov em Sacalina, lugar que ele descreve como um porto de “sofrimentos intoleráveis”, feito de pobreza e tortura mental e física, criou uma obra que é uma verdadeira aula sobre como observar e tentar compreender a realidade de seu tempo, buscando participar dela e imaginar o futuro. É mais ou menos o que costuma desejar uma peça de teatro: falar dos impasses do presente. No capítulo Reagir à Indiferença, o dramaturgo escreve: “Estudar coisas que ninguém estuda; ir ver pessoalmente injustiças que ninguém vê.”
Já o livro publicado por Rebecca Solnit em 2001 atravessa vários períodos históricos, retomando as reflexões de pensadores e escritores sobre o ato de caminhar e revelando a potência existencial, política e mesmo utópica existente nessa prática que muitos julgam ociosa. Solnit conta também de suas caminhadas pessoais, e o livro me contagiou com a sua definição de peregrinação, uma das formas do caminhar. Peregrinar “é andar em busca de algo intangível”, diz a autora, que acrescenta: “Os peregrinos […] muitas vezes, tentam dificultar a jornada, o que me traz à lembrança a origem da palavra inglesa travel, viagem, que vem do francês travail, que significa trabalho, sofrimento e as dores do parto.”
Uau, obrigada Rebecca Solnit. De repente, as referências ofertadas por esses livros e a imagem do jogo de vôlei entre amigos à sombra do Vulcão Fagradalsfjall começaram a se provocar mutuamente – e algo pareceu querer se mover. Placas tectônicas em fricção. Lembrei-me de uma frase do dramaturgo e teórico francês Jean-Pierre Sarrazac, no ensaio A Oficina de Escrita Dramática: “Um texto dramático ou literário, pouco importa nesse caso, não se constrói à força de intenções, mas quando libera, em si mesmo, as forças associativas e essa ‘atenção flutuante’ da qual nos fala a psicanálise.”
Em um momento de tamanho desamparo em nosso país, com a fome se alastrando e a destruição do meio ambiente, me apego à ideia de fecundação. Em Sacalina, uma ilha tomada pelo desespero e a violência, Tchékhov fecundou um texto sobre a injustiça. Nas caminhadas de Solnit, peregrinar é um modo de gestar novas possibilidades de vida. No vulcão, vi a imagem da fúria, da Terra grávida de fogo e lava, ansiando por provocar deslocamentos, mudanças e fecundar uma nova paisagem.
Chega o mês de junho, e a peça ainda não tem estrutura fechada, mas somente cenas esboçadas, sem vozes muito bem definidas, e personagens que são ainda meros espectros falantes. No dia 7, a atriz e diretora Fernanda Vianna, integrante do Galpão, me liga para darmos a largada na encenação. Sua ideia é criar uma obra híbrida entre teatro e cinema, uma peça-filme dirigida por ela em parceria com a diretora de cinema Clarissa Campolina, da produtora Anavilhana. Eu não poderia desejar nada melhor. Conheço Fernanda há alguns anos, e Clarissa foi minha colega de universidade em Belo Horizonte (cidade onde as duas vivem e de onde eu me mudei em 2001).
Nosso diálogo é imediato. Lembro de ver o texto ganhar impulso no minuto seguinte a essa primeira conversa com Fernanda. Falamos sobre o momento do país, sobre a imagem do vulcão, sobre nossa parceria. Trocamos textos sobre viagens, imagens de referência, notícias, assistimos aos jogos de vôlei da Olimpíada de Tóquio. Montamos uma playlist conjunta que ia de Björk a Rita Lee, passando pela canção Grávida, de Marina Lima e Arnaldo Antunes: Eu tô grávida/Esperando um avião/Cada vez mais grávida/Estou grávida de chão/E vou parir/Sobre a cidade/Quando a noite contrair/E quando o Sol dilatar/Dar à luz. Reunindo pistas aqui e ali, seguimos o conselho de Tchékhov: “Deixar-se nas mãos do acaso pode revelar-se útil, principalmente se o lugar é desconhecido.”
Este país, o Brasil, é conhecido e desconhecido. Às vezes, como em um delírio, tenho a sensação de vê-lo se apagar nos mapas de viagem e nos globos de plástico. Nesse momento, decido por uma única personagem, a quem dou o nome de ELA. Hipnotizada pela imagem do vulcão ativo, ELA parte em sua direção, antes que a convulsão da Terra se extinga. Deseja compreendê-lo e quem sabe celebrá-lo com aqueles jogadores de vôlei. No caminho, ELA descobre-se em uma gravidez extraordinária – e dá início ao relato da viagem.
“A personagem, tanto tempo destinada à destruição, não cessou de renascer sob nossos olhos, reajustada de tempos em tempos, mas sempre irredutível”, escreveu o ensaísta francês Robert Abirached. Então, por ironia da viagem, eu tinha uma personagem, ainda que a visse de maneira difusa, dentro de uma linguagem fantástica, literatura da qual sou admiradora. Mas como continuar a jornada com uma única heroína, se, no caso, tenho mais sete intérpretes? A pergunta me atormentava.
Antunes Filho (1929-2019), com quem fiz minha formação em dramaturgia, certa vez me disse que, em uma peça, ele gostava do que pareciam ser os momentos mais difíceis, pois ali estava guardada a saída para uma encenação. Aquele meu embaraço se resolveu com a ideia de fragmentar a fala de ela entre oito vozes, oito atores. A princípio, a troca aconteceria a cada nova etapa do itinerário registrado no diário de viagem. E foi esta a forma tomada pelo texto: o monólogo de ELA durante a sua peregrinação ganharia corpo em cada um dos oito atores do Galpão. No papel, parecia simples. Mas, como toda aventura é dada a imprevistos, nos ensaios esse carrossel de vozes se mostraria um desafio.
Setembro. Já se passaram três meses de troca entre mim e as diretoras para desenharmos a jornada de ELA.
Para a peça-filme, Clarissa Campolina elabora um novo arquivo, soma da escrita teatral que propus e de roteiro audiovisual. O objetivo da diretora de cinema é promover um diálogo entre as duas linguagens e, como ela diz, “pensar a maneira de recorrer a elementos narrativos do cinema – elipse, montagem paralela e desencontros entre som e imagem –, intensificando as convenções teatrais”.
O viés delirante da história se amplia no roteiro, que já ganhou um nome: Partida de Vôlei à Sombra do Vulcão. A versão audiovisual propõe multiplicar ao infinito, com um truque de filmagem que utiliza espelhos, a figura de ELA, que assim se transforma em ELAs. Ou filmar sempre vazio o saguão do aeroporto de onde ELA parte para sua peregrinação. Ou deixar uma neblina invadir o palco até ela desaparecer. “Além de elaborar a fragmentação da personagem, pensamos em imagens que representassem seu interior – uma mistura do que é real e do que é imaginado, uma vez que toda memória é, em alguma medida, inventada”, diz Clarissa.
Enquanto isso, a diretora Fernanda Vianna, do Galpão, trabalha estratégias para alcançar com o grupo a resposta corporal adequada ao espírito vagante, grávido e multifacetado da personagem que, no meio da viagem, vê sua barriga crescer vertiginosamente. Fernanda escolhe a dedo os trechos que destinará a cada integrante do grupo com o qual convive desde 1995, ano de sua estreia como atriz, no papel da Julieta de Shakespeare. “Aos poucos, essa cabeça fragmentada da personagem foi ficando cada vez mais nítida, com cada ator encaixando nela sua personalidade, de maneira orgânica”, diz.
Por fim, depois de várias discussões, a peça-filme poderia ser resumida assim: atraída pela imagem de um vulcão ativo, ELA decide deixar seu país e ir até a ilha onde ocorre a turbulenta reação das entranhas da Terra. À beira do vulcão, que expressa o desejo radical da personagem por mudança, ela se depara com uma turma jogando vôlei. O perigo e a incerteza tornam-se celebração da natureza fecundante. ELA, que é representada pelos oito atores, retorna então ao seu país, prestes a dar à luz.
Em 5 de julho de 1989, as pessoas que passavam pela Praça Sete, no Centro de Belo Horizonte, se depararam com uma piscina de plástico de criança e a atriz Teuda Bara vestida de maiô amarelo e óculos escuros. Tratava-se de uma das famosas performances do Galpão em seus primeiros anos, Queremos Praia. Com a inflação acelerada no governo José Sarney, os mineiros, carentes de litoral, não podiam ir mais a Guarapari, no Espírito Santo, destino de férias das famílias de classe média. Ao ver a atriz e a piscina, o público começou a gritar: “Pula, pula!” Como conta João Santos no livro Teuda Bara: Comunista Demais Para Ser Chacrete, a atriz não hesitou – e se jogou na piscina.
Não é fácil definir teatralidade, mas sabemos quando estamos diante dela. É algo que reconhecemos de imediato, pela maneira como provoca nosso corpo, nossos sentidos e nossa mente. O Galpão, que completa quatro décadas no ano que vem, é a própria expressão da teatralidade.
O grupo foi criado por Eduardo Moreira, Teuda Bara, Antonio Edson, Fernando Linares (que depois deixou o Galpão) e Wanda Fernandes, que morreu precocemente em 1994, num acidente, aos 40 anos. Logo depois, entraram Beto Franco e Chico Pelúcio e, mais à frente, Júlio Maciel, Inês Peixoto, Arildo de Barros, Fernanda Vianna, Lydia Del Picchia, Simone Ordones, Paulo André e Rodolfo Vaz (que também não faz mais parte do grupo). “O Galpão não tem um diretor fixo. É um coletivo de atores em jogo, artistas que se entregam a novos processos como principiantes, desde o teatro de rua, onde começou, até o teatro de palco e, agora, a esse ‘teatro de tela’, digamos assim. A imagem da Teuda pulando de cabeça na piscina de plástico sobre o asfalto resume esse espírito”, define Fernanda.
Os primeiros anos foram marcados pela necessidade e a coragem do grupo de ficar bem longe do palco italiano e ocupar a rua, levando o teatro aonde fosse possível, inspirado pela linguagem popular, do circo à commedia dell’arte. As apresentações traziam atores montados em pernas de pau, com trajes clownescos, hábeis em recursos circenses, como o cospe-fogo, e com muita música, atraindo centenas de pessoas ávidas por devaneio e jogo em pleno coração da cidade. “Foi ali, naquelas primeiras apresentações do Galpão na rua, que vivenciamos integralmente aquilo que o dramaturgo francês Antonin Artaud chamou de ‘o risco iminente da catástrofe’ como um estado vital para o ato de estar em cena. Equilibrando-nos em pernas de pau, seja no asfalto, nos paralelepípedos ou nas pedras portuguesas das calçadas, vivíamos a travessia incerta daqueles anos de absoluta instabilidade política e social”, escreve Eduardo Moreira no livro Grupo Galpão: Tempos de Viver e de Contar.
Aos poucos, o Galpão passou a ser reconhecido como um coletivo inovador, sempre aberto a experimentações e riscos. Vários diretores se juntaram em parcerias com o grupo, como Eid Ribeiro, Carmen Paternostro, Paulinho Polika, Paulo de Moraes, Ulysses Cruz, Jurij Alschitz, Cacá Carvalho, Paulo José, Yara de Novaes, Marcio Abreu, Marcelo Castro, Vinícius de Souza e Gabriel Villela. Em 2000, o Galpão foi o primeiro (e até agora o único) grupo brasileiro a se apresentar no Globe Theatre, espaço em Londres dedicado às peças de Shakespeare, com sua versão de Romeu e Julieta, dirigida por Gabriel Villela. A trupe teatral também chamou a atenção do documentarista Eduardo Coutinho, que propôs aos atores ensaiarem a peça As Três Irmãs, de Tchékhov, sob a direção de Enrique Diaz, a fim de registrar o processo no filme Moscou, de 2009.
Como ocorreu com quase todo mundo, também os artistas do Galpão foram pegos de surpresa pela pandemia. “A ingenuidade era tamanha que tínhamos a ilusão de poder ainda cumprir uma temporada presencial programada para maio de 2020. Pouco a pouco, a ficha foi caindo e percebemos que a coisa iria ser penosa e longa”, relembra Eduardo Moreira. A quarentena levou o grupo a se perguntar como seria possível continuar em atividade e viabilizar o encontro entre atores e público, matéria-prima do teatro. A resposta foi Éramos em Bando, filme de Marcelo Castro, Pablo Lobato e Vinícius de Souza, que acompanhou os atores durante o período de isolamento social. Gravada por meio do aplicativo Zoom, com cada ator em sua casa, a obra estreou no canal da companhia no YouTube, em 2020.
Neste ano, além da peça radiofônica Quer Ver Escuta, o foco do Galpão foi o projeto Dramaturgias – Cinco Passagens para Agora, em que dramaturgos e diretores foram convidados a montar, ao longo do ano, um conjunto de obras com diferentes meios de expressão. Além de Fernanda Vianna, Clarissa Campolina e eu, participam Yara de Novaes, Newton Moreno, Pedro Bricio, Inês Peixoto, Eduardo Moreira, Marcio Abreu e Paulo André. A mineira Yara de Novaes e o pernambucano Newton Moreno abriram os trabalhos, em junho, com o texto de Newton, Como os Ciganos Fazem as Malas, encenado por meio de mensagens e imagens que o público recebia pelo aplicativo Telegram. O carioca Pedro Bricio dirigiu Sonhos de Uma Noite com o Galpão, peça em parte gravada, em parte transmitida ao vivo pela internet, e Inês Peixoto, que integra a companhia, dirigiu o curta-metragem A Primeira Perda da Minha Vida, com roteiro de Eduardo Moreira.
Em fevereiro do ano que vem o também carioca Marcio Abreu assinará uma peça-filme escrita por Paulo André, ator e integrante do Galpão. Todas essas experiências, com os recursos da internet e do cinema, colocam no itinerário a inquietante pergunta: é ainda teatro? “Antes de saber ou definir se o que estamos fazendo é teatro ou não, estamos simplesmente fazendo. Existe a chama do ofício que sobrevive e segue adiante. Nesse momento, temos mais do que nunca de reafirmar a necessidade vital do teatro como lugar de convívio democrático e civilizatório”, defende Eduardo.
De minha parte, estava especialmente ansiosa para ver/ouvir Teuda Bara, pois, no processo de escrita, a própria história ficou grávida dela. Explico: aos 80 anos, a atriz é uma fonte de infinitos casos maravilhosos. Mesmo quando conta sobre algum fato comum, ela faz parecer que se trata de algo extraordinário, e termina o relato invariavelmente com uma risada voluptuosa. Tudo nela tem jogo, vida, infância, empolgação. Em um tempo de necropolítica, Teuda fecunda o que encontra.
Foi a atriz que resolveu, sem querer, um ponto que parecia sem saída em nossa história: como encerrar a peregrinação que ELA faz e trazê-la de volta ao ponto de partida? Em uma reunião logo no início do processo, quando falávamos sobre a jornada da personagem, Fernanda se lembrou de um caso ocorrido com Teuda.
Após vê-la na montagem de Romeu e Julieta em Londres, o diretor canadense Robert Lepage convidou Teuda, em 2004, para atuar no espetáculo Kà, que ele iria dirigir para o Cirque du Soleil. Ela embarcou para o Canadá e, depois de três anos fora do Brasil, com saudades de todos e um problema na perna, resolveu voltar. Seu retorno é um episódio performativo vivido no aeroporto de conexão, em Nova York.
Sem falar inglês, cheia de malas, com um trompete na mão e uma bota ortopédica por causa de um tendão rompido, Teuda foi informada de que seu voo não existia mais – ela tinha uma passagem da Varig, então em falência. A atriz foi transferida para outro aeroporto e deixada lá sem ajuda alguma. E, pior, queriam que ela pagasse, pela segunda vez, 800 dólares pelo excesso de bagagem. Teuda tentava se fazer entender, com as poucas palavras em inglês que conhecia e muitos gestos, quando o atendente cometeu um grande erro: fez um sinal insinuando que ela era doida.
A partir daí a cena real vivida por ela fecundou a ficção. Chegamos a gravar Teuda recontando o caso. A ideia era contrapor, na edição da peça-filme, o fato ocorrido e o fato imaginado, em um diálogo entre vida e teatro. “Aí, quando ele fez aquilo, eu fiquei doida mesmo. You think I am crazy? I am not crazy, mas eu fico crazy assim ó!’”, disse Teuda ao atendente. “E aí, eu subi a minha saia. Veio uma mulher e falou: Take it easy, madam. Eu gritei: I need help. Mas foi mágico eu ter levantado a saia. Na mesma hora, veio uma cadeira de rodas, me trouxeram água… Eu tomei porque estava espumando!”
Teuda foi levada a uma sala e abraçada por uma funcionária, que passou a mão em seus cabelos, sussurrando: Take care. “Aí, eu comecei a chorar. Eu chorei, chorei, chorei”, contou a atriz. Perguntei a ela por que chorou. “Eu não sei, mas quando passam a mão na minha cabeça, eu sempre choro. Mão na cabeça acaba comigo”, respondeu. “O que mais me assustou na época é que havia muitos brasileiros e ninguém se mexeu para me ajudar. Eu vi deportados brasileiros, povo sofrido, com fome, sem dinheiro, fazendo o caminho de volta.” Como não incorporar Teuda? Eu poderia ouvi-la contando qualquer coisa para sempre. Nos ensaios, inicialmente transmitidos pelo Zoom, me sinto privilegiada como espectadora particular dela e dos demais atores do Galpão.
Mas nosso desafio estava começando. Aparentemente resolvida no papel, a forma da narrativa em carrossel – o revezamento do monólogo entre os atores – foi finalmente posta à prova. Primeira conclusão: nem todos os oito atores fariam ela, mas apenas seis. Segunda constatação: para estar à altura do delicioso jogo de caos polifônico do qual o Grupo Galpão é capaz, as falas precisavam ser muito mais fragmentadas do que imaginamos a princípio. A cada tarde, Fernanda chegava com alguma mudança na divisão do texto, trabalho metódico para alcançar a erupção espontânea de vozes – cheias de teatralidade.
Momentos de 10 de setembro. Inês: “Adorando o livro Correntes, da Olga Tokarczuk. Ela também fala sobre peregrinação. Olha aqui este trecho…” Teuda: “Estou comendo um bombonzinho aqui, tá?” Antonio Edson: “Por favor, pessoal, cuidado com a pronúncia de an-te-bra-ço.” Fernanda: “Não percam o que conseguimos no ensaio de ontem, aquele tom de vingativa e poderosa.”
Treze de setembro. Teuda: “Amanhã eu vou tomar a vacina.” Antonio Edson: “Vocês se lembram do técnico de vôlei russo Nikolay Karpol? Vou me inspirar nele.” Júlio (forjando a voz de um vulcão): “Huaaah.” Fernanda: “Vamos nos achar na sala de ensaio, encontrar esse vulcão no corpo.”
Quinze de setembro. Teuda: “Gente, mas eu precisava almoçar… Traz meu doce aí, Edmarzinho.” Fernanda: “Teuda, esse jeito que você acabou de falar… Usa esse tom nos parênteses do seu texto. Vamos lá?” Todos: “Merda, merda, merda.”
Finalmente, no dia 20 de setembro o ensaio deixa de ser virtual e passa a presencial na sede do Galpão, um imóvel de 200 m² na Rua Pitangui, Zona Leste de Belo Horizonte. Como ainda estou em São Paulo, assisto pelo Zoom. Todos comentam sobre o Vulcão Cumbre Vieja, desperto no dia anterior na ilha espanhola de La Palma e que destruiu quase 2 mil imóveis.
No intervalo, o ator do Galpão e diretor de arte da peça Paulo André, que também assiste a tudo pelo Zoom, me diz que não é possível encontrar nas lojas um atlas de bolso tal como mencionado pela personagem, e será preciso fazer um. Nesse momento, me ocorre que o mapa de ELA para sua peregrinação é tão fictício como a própria ideia de fronteira entre os países, linhas riscadas em um papel. A quem pertence uma terra onde um vulcão, como o Cumbre Vieja ou o Fagradalsfjall, expele magma das entranhas do planeta, modificando tudo ao seu redor? Essa terra não deveria ter dono – eu me permito delirar por um instante.
É sobre essas erupções livres e desobedientes, como o nosso próprio trabalho em processo, um híbrido de teatro e cinema, que também desejamos falar. “A peça aponta para como diminuímos nossas possibilidades ao limitar as coisas, sejam os territórios, os corpos, as linguagens. E, de alguma maneira, a experiência de realizá-la dialoga com isso”, reflete Clarissa. “Nós borramos as fronteiras, desde as divisões dos departamentos no set até a representação da personagem, que se torna múltipla, coletiva, em deslocamento – algo muito conectado ao fazer original do Galpão.”
A sala de ensaio na Rua Pitangui tem pé-direito de 6 metros e piso de ladrilho hidráulico, um piano acomodado no canto, baús de viagem com cenários de peças antigas, um extintor de incêndio, cadeiras a serviço da invenção. Clarissa pede aos atores: “Aproveitem este momento para se olharem e se perceberem como essa ELA única.” Fernanda propõe uma dinâmica: dizer o texto jogando vôlei com um balão de festa. Os atores entram em movimento. Risadas. Todos esquecem suas falas. Cortadas e saques furiosos. Fernanda orienta Antonio Edson a se comportar como o famoso técnico russo Nikolay Karpol, e ele, batendo repetidamente a mão em uma bola de vôlei, mete medo ao incorporar o treinador de mau humor com esse péssimo time amador de ELAs. De repente, tudo o que imaginamos ganha novo sentido. Os atores estão viajando e estão jogando, exatamente como aqueles amigos à sombra do Fagradalsfjall. Exatamente como se faz no teatro, essa arte que peregrinou milênios até aqui, agora.
Então, começam a chegar os cronogramas e planos de filmagem, sob os cuidados de Gilma Oliveira, coordenadora de produção do Galpão há 25 anos. Diante das planilhas com locações, cenas e horários, a constatação: estamos fazendo também um filme. “O Galpão, quando decide democraticamente algo, se joga. Sou privilegiada por estar em um grupo que é coletivo em cada decisão”, diz Gilma.
Em 5 de outubro, logo depois do almoço, estou tentando encontrar a campainha do teatro Galpão Cine Horto, na mesma Rua Pitangui do local dos ensaios, mas dois quarteirões adiante.
Um homem bebendo cerveja em um bar em frente tenta me indicar, sem sucesso, onde fica o botão. Ele aponta, gesticula, faz mímica. Parece que estamos ensaiando uma peça. Finalmente, sou resgatada por Fernanda Vianna. Às quatro e meia da tarde, Eduardo Moreira chama: “Venham ver Teuda!” Corremos. A atriz está ensaiando na rua uma cena em que ELA diz: “Eu poderia cuspir fogo.” Passantes se juntam para assistir. Um menino pede ao pai para ficar “até o fim”. Mais tarde, no camarim, os atores comentam com alegria o fascínio da criança pela atriz.
No palco quase nu, testes de luz sobre o ciclorama, um paredão de tecido claro ao fundo, criam diferentes atmosferas para a locação – o teatro vazio – que a direção projeta como o espaço interior da personagem, com seus pensamentos e delírios. Embora façam uma só personagem, os atores têm figurinos diferentes, criados por Paulo André. Apenas um elemento os identifica como a mesma ELA: nas blusas ou vestidos, todos portam a estrela, símbolo do Galpão criado pelos artistas Mario Vale e Marcelo Xavier em tons de amarelo e azul, uma referência às lonas de circo.
Paulo também confeccionou manualmente o diário de viagem da personagem. As frases que escreveu no caderninho, ele me conta, foram extraídas da própria peça, mas com as palavras anotadas de trás para frente. Eu e ele lemos um trecho: “descomunal tamanho do apesar, erguer me pude…” No final do dia, a atriz Simone Ordones ensaia a cena na qual ELA dá um poderoso saque de vôlei, depois do qual vibra loucamente. Seus gritos preenchem a plateia nua. Todos aplaudem.
No dia 7, com a equipe testada para Covid-19, tudo está pronto para as gravações. As cenas agora são agrupadas por sequência, e os atores nem sempre estão juntos. Alguns momentos são dedicados à filmagem de detalhes, como os planos dos corpos vistos de perto: seios e barrigas sugerindo paisagens vulcânicas. Ou a mistura de glicerina com tinta fluorescente elaborada pelo diretor de fotografia Leonardo Feliciano para conseguir o efeito de lava escorrendo como rios incandescentes sobre pernas e umbigos. Imaginação radical artesanalmente concretizada: teatro – e também cinema.
Na semana seguinte, está prevista a gravação de três cenas em espaços externos, sempre em Belo Horizonte: uma quadra de vôlei de areia (com locação no Minas Tênis Country Clube), a pista de pouso do Aeroclube do Estado de Minas Gerais e uma depressão rochosa parecida com uma mina desativada no Parque da Serra do Curral. Mas as previsões meteorológicas são desanimadoras para os planos de gravar ao ar livre.
Finalmente, depois de alguns dias de tempestades, o céu fica claro em Belo Horizonte e, na quinta-feira, 21 de outubro, a turma segue para a quadra de vôlei. Eu já havia voltado a São Paulo, impedida de ficar em Minas durante tantos dias, mas acompanho, comovida, as mensagens da coordenadora de produção Gilma Oliveira, do assistente de direção Vinícius Rezende e da produtora-executiva Beatriz Radicchi com as boas notícias sobre o Sol e as filmagens. As cenas na quadra evocam as reminiscências de ELA em relação a esse esporte que costura toda a estrutura do texto. Sempre relegada ao banco de reserva, a personagem relembra nessa sequência o fiasco de sua performance com a bola de vôlei. Quatro jogadoras profissionais do Minas Tênis Clube foram convidadas para participar da cena e esbanjam saques e cortadas fulminantes, tornando as reações dos atores com aquela “humilhação” ainda mais engraçadas.
No dia seguinte, é feita a filmagem na pista de pouso do aeroclube, cenário que parece de brinquedo com seus hangares coloridos e pequenas aeronaves, como a Paulistinha PP-GRR. Sem combinar, uma delas passa bem devagar atrás de Teuda, cercada por malas, enquanto aguarda seu embarque de volta ao ponto de partida da viagem: o Brasil.
Finalmente, em um sábado de céu claro e glorioso, ocorre a última filmagem externa na Serra do Curral, o maciço montanhoso nos limites de Belo Horizonte, reserva natural parcialmente destruída pela mineração e hoje pressionada pelo avanço de empreendimentos imobiliários. Fechada a visitantes, a área escolhida é uma erosão de grande porte no Parque Fort Lauderdale (nome dado em razão de um acordo de Belo Horizonte com sua cidade-irmã nos Estados Unidos). É um local de difícil acesso, de terra vermelha e muitos pedregulhos. Para garantir, a equipe levou gerador e uma van foi posicionada a 300 metros de distância do local da filmagem, caso chovesse.
A cena a ser gravada é um dos momentos mais importantes da peça-filme: o ponto em que ELA enfim avista o vulcão pelo qual peregrinou e confraterniza com desconhecidos em uma partida de vôlei amador. De repente, o Fagradalsfjall é aqui. “O lugar de onde vemos Belo Horizonte do alto, sua construção e sua destruição”, diz Fernanda. É ali o espaço onde, na nossa peça, ELA pisa sobre a terra fumegante.
Depois de sequências encenando sua chegada e o jogo de vôlei, a equipe chega ao take derradeiro. O Sol se põe enquanto a atriz Lydia Del Picchia dança ao som da trilha musical feita pelo coletivo mineiro O Grivo. “Ao ar livre, o corpo se comporta de outra maneira. A cena era o momento em que tudo se juntava para ELA: a viagem, a gravidez, a fúria, a volúpia, a consciência do momento”, diz Lydia, que contou ter coreografado os movimentos como se seus braços fossem a fumaça expelida pela erupção.
Gosto de imaginar que, naquele local, ELA afinal compreende a vida secreta dos vulcões, reconhecendo as próprias entranhas tectônicas dela – e sua força para deslocar a realidade adversa, como a que testemunhamos hoje no Brasil.
Como eu disse, passei a pesquisar sobre o Fagradalsfjall. Descobri que seu nome significa “montanha do belo vale”. No último suspiro da travessia, tenho uma pista sobre o motivo que levou Björk a celebrar a erupção. Para ela – e agora também para nós, ligados à peça do Galpão –, o vulcão é também a “enorme capacidade da natureza de criar novas montanhas”, como escreveu a compositora, cidadã de uma ilha do outro lado do mundo.
A peça-filme Partida de Vôlei à Sombra do Vulcão, com texto de Silvia Gomez e direção de Fernanda Vianna e Clarissa Campolina, está em exibição entre os dias 4 e 19 de dezembro, de quinta a domingo, às 20 horas, no canal do Grupo Galpão no YouTube (youtube.com/grupogalpao).