No fundo da represa, sob o reservatório, em túneis de concreto onde não vivem nem insetos, os bichos grafitados por operários se empoleiram até nos tubos da fiação FOTO: ALEXANDRE MARCHETTI
A última palavra em matéria de pintura rupestre
Em túneis remotos como o fundo de cavernas, os grafites deixados no concreto de Itaipu pelos operários provam que vão longe os anos 70
Alexandre Marchetti | Edição 53, Fevereiro 2011
Os construtores da usina de Itaipu percorriam diariamente galerias de serviço com milhares de quilômetros dentro da obra. E eles eram quase 50 mil pessoas. Grande parte dessa multidão anônima se revezava em turnos de doze horas, no interior da barragem, até as profundezas da casa de máquinas. Os paredões de concreto eram a única paisagem que os trabalhadores tinham pela frente durante o expediente. E grafitá-los era um jeito de transformar o labirinto inóspito num lugar vivo, ou pelo menos habitado para sempre pelas mãos que os rabiscaram de passagem.
Como fotógrafo de Itaipu, encarregado de documentar o cotidiano da hidrelétrica, esses jacarés, teiús, bois, burros, peixes, caricaturas, mulheres nuas e cenas pornográficas me ajudaram a reencontrar a escala humana numa construção que ultrapassa as medidas da realidade. Na primeira vez em que desci a ladeira para a represa, foi como se o carro me levasse em direção a uma miragem de rocha, ferro e cimento. À minha frente, os dutos que levam a água da barragem à boca das turbinas não paravam de crescer. Eu estava ao pé da maior estrutura que já tinha visto. E era o tamanho daqueles tubos brancos que me confundia e impressionava.
Pudera. São vinte condutos ao todo. Bastam dois para levar represa abaixo o mesmo volume de água que cai, por segundo, nas cataratas do Iguaçu. Eu estava diante de dez cataratas do Iguaçu encanadas. E elas encobriam pinturas rupestres e textos em português, espanhol e guarani em caligrafia meio hieroglífica. A represa e os grafites pareciam feitos ao mesmo tempo em eras muito diferentes. Nunca parei de fotografá-los, cada vez que entrava na usina.
E não é só nos túneis e subterrâneos que eles se espalham. De 1977 a 1983, o paraguaio Rusmildo Pedrozo Alvarez – hoje com 55 anos e pintor de cenários de óperas – usou as horas de folga para decorar as paredes dos dormitórios que habitava com desenhos a lápis, povoando de belas mulheres um espaço reservado a beliches de homens confinados.
Sobrou pouco dessas paredes, salvas na última hora da demolição, quando as picaretas se detiveram diante dos grafites de Alvarez. E, como a decoração das casas de Pompeia, elas agora parecem devassar a intimidade de existências que estiveram ali faz muito tempo.
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