A gaúcha Eloiza Rodrigues levou 38 horas para percorrer os 217 quilômetros da Badwater 135 FOTO: FERNANDA EZABELLA
A ultra
Uma brasileira participa de uma das provas de corrida mais difíceis do mundo
Fernanda Ezabella | Edição 132, Setembro 2017
Às 19h50 de uma segunda-feira em julho os termômetros marcavam 46 graus e o sol, já baixo no horizonte, coloria o céu no Vale da Morte, um dos parques nacionais da Califórnia, nos Estados Unidos.
A ultramaratonista brasileira Eloiza Testolin Rodrigues havia chegado ali poucos dias antes, deixando para trás os casacos e o inverno de 5 graus de Caxias do Sul, na Serra Gaúcha. Não sabia inglês muito bem, mas, em meio aos demais competidores, fez pose respeitosa na hora de ouvir o hino americano. Faltavam poucos instantes para a corrida começar. Talvez por causa do calor, a caixa de som pifou, e a canção teve que ser entoada a capela por uma das atletas. Rodrigues prestava atenção a tudo, quieta, os olhos bem abertos apesar do vento quente que soprava no rosto. Às 20 horas em ponto, deu-se a largada. Para a brasileira, a prova só chegaria ao fim um dia e meio depois – ou 38 horas, 17 minutos e 31 segundos mais tarde.
Não existe fórmula nem método consagrado para se preparar para a Badwater 135, considerada a ultramaratona mais difícil do mundo. A prova, além de longa, é realizada num lugar inóspito, famoso por ter registrado a temperatura mais alta do planeta: 56,7 graus, em 1913. Para alcançar a linha de chegada é preciso percorrer 217 quilômetros (ou 135 milhas), distância equivalente a cinco maratonas ou catorze corridas internacionais de São Silvestre.
O percurso começa 85 metros abaixo da linha do mar, na bacia seca e salgada de Badwater Basin, e termina na trilha que leva ao ponto mais alto da parte continental do país, o monte Whitney, com seus característicos picos nevados. Pelo caminho, há três montanhas a atravessar, alcançando uma elevação de mais de 4 mil metros. Tudo isso em pleno verão e por um caminho de asfalto que chega a derreter as solas dos tênis. O prêmio? Uma fivela de cinto – adornada com a imagem de uma caveira, o nome e o ano da prova, a peça faz as vezes de medalha – e um aperto de mão.
Para Eloiza Rodrigues, a Badwater 135 era um sonho antigo, o ápice das provas de resistência a que vem se dedicando há mais de uma década.
Por seis meses, a gaúcha miúda de barriga tanquinho e cabelos lisos aloirados havia intensificado os treinos, intercalados com a rotina de trabalho. Ela tem 38 anos. O marido e também treinador, Marialdo Rodrigues, tem 53. Juntos são proprietários de uma academia em Caxias do Sul. Os dois se conheceram vinte anos atrás, num hospital da cidade. Ela trabalhava como secretária. Ele era técnico de radiologia, além de já treinar atletas profissionalmente. A paquera começou cedo, e logo a moça apareceu na pista de Marialdo, dizendo que queria aprender a correr. “Ela comprou abrigo novo, tênis, camiseta nova; estava toda bonitinha”, lembrou o professor.
A transição dos primeiros e sofridos 400 metros para as corridas de 5 quilômetros foi rápida. Depois vieram os percursos de 10 e 15 quilômetros, e logo as meias maratonas. Eloiza Rodrigues participou da primeira supermaratona, uma prova de 50 quilômetros, em 2006. Dedicada, passou a colecionar medalhas. Em janeiro deste ano conquistou a cobiçada Brazil 135, ultramaratona mais antiga e difícil da América do Sul, pela serra da Mantiqueira.
Nos últimos meses, manteve a rotina de acordar às 5h20 e só voltar para a cama à meia-noite. Fazia exercícios dentro da sauna, onde o termômetro alcançava os 50 graus, e corria 30 quilômetros diários na esteira, vestindo roupa de borracha de surfista.
“Vâââmo, pangaré!”
O grito vinha de dentro da caminhonete branca que a acompanhava, e Eloiza Rodrigues apertou o passo. Ainda era madrugada, ela já tinha percorrido 60 quilômetros e agora maneirava a velocidade, caminhando.
Logo voltou a correr, cada vez mais rápido, a luz da lua nas costas, uma passada larga, outra, sozinha, sem rivais à vista. Até que veio uma nova subida e ela desacelerou. Não demorou para que outro grito cortasse o silêncio abafado do deserto: “Assim não vai chegar nuuuunca!”
A caminhonete levava a equipe de apoio da atleta. Cada corredor tem direito a uma. Além de Marialdo, o marido que berrava da janela, iam no veículo três pacers – corredores auxiliares que se revezam, sempre próximos a Rodrigues, com o objetivo de ajudá-la a manter o ritmo e também a sanidade. “O pacer ajuda a ver qual é o real estado do corredor, tanto emocional quanto físico. Faz companhia e percebe coisas que o atleta sozinho talvez não note”, explicou a psicóloga Lisandra Barazetti, amiga e pacer de Rodrigues.
A equipe ia na frente da ultramaratonista. A cada 2 ou 3 quilômetros, a van encostava à beira da estrada, à espera da atleta – que aproveitava a ocasião para trocar sua garrafinha de água por outra, mais fresca. Às vezes era o caso de engolir uma pílula de sal, de cafeína ou um anti-inflamatório.
Durante as quase quarenta horas de prova, Rodrigues parou poucas vezes. Fez três lanches: sempre macarrão de massa de arroz com atum, preparado com água esquentada num fogareiro. Também tirou uma única soneca, por não mais do que doze minutos, numa cama improvisada no acostamento. E foi preciso cuidar de uma bolha no pé: Marialdo colocou luvas cirúrgicas e usou uma agulha para rasgar a epiderme saliente. Rodrigues gritou de dor.
“Cheguei a te odiar, mas já te amo de novo, meu amorzinho”, brincou a atleta ao voltar ao asfalto, fazendo graça.
Na segunda noite de prova, como o treinador já temia, o sono foi o pior inimigo da corredora. A cada reencontro com a caminhonete, ela pedia para se sentar um pouco. Mal acomodava o corpo, e a cabeça caía sobre o peito, pesada de cansaço. Com muito esforço, de volta ao asfalto, era vigiada pela pacer, que a seguia de perto, procurando reorientá-la quando a ultramaratonista, muito cansada, trotava torto em direção ao meio da pista.
Com o sol, que se elevava sobre a paisagem de montanhas colossais, parte da energia de Rodrigues reapareceu. Faltavam poucos quilômetros para terminar a prova. Àquela altura, vinte atletas já haviam desistido, de um total inicial de 95 competidores. O vencedor, o japonês Wataru Lino, de 37 anos, cruzou a linha quase à meia-noite, completando o percurso em 24h56min, dez horas antes da primeira mulher chegar ao fim, a americana Sandra Villines, de 44 anos, em 34h34min.
Mais quatro horas, lá pelas dez da manhã de quarta-feira, a brasileira pôde afinal avistar a faixa marcando o término da Badwater 135. Quase não havia gente ali, a sua espera. Apenas uns poucos amigos e o organizador da prova. O americano Chris Kostman, de 50 anos, vestia capote preto, chapéu de caubói e botas de couro de cobra. Estendeu a mão para a atleta esgotada. O aperto de mão virou abraço. E o abraço virou choro. Eloiza Rodrigues havia cumprido o seu objetivo. Conquistou também o oitavo lugar entre as mulheres, 41ª na classificação geral.
Fernanda Ezabella, jornalista, é correspondente da Folha de S.Paulo em Los Angeles
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