Rosa Cardoso e Maria Rita Kehl defendem que o relatório final da Comissão da Verdade recomende a revisão da Lei da Anistia. Os demais conselheiros são contra ou tergiversam. "Já tinhamos acertado que não iríamos discutir isso publicamente, mas os holofotes são poderosos", disse José Paulo Cavalcanti Filho, por sua vez criticado por ir pouco a Brasília, sede dos trabalhos ILUSTRAÇÃO: ANGELI_2014
A verdade da comissão
Vaidades, resistência militar e vastidão dos arquivos dificultam investigação de crimes da ditadura
Julia Duailibi | Edição 91, Abril 2014
“Hoje a democracia sofre uma nova ameaça: o comunismo”, diz o locutor, com timbre metálico e em tom alarmista, logo nas cenas iniciais do filme. Enquanto a música ao fundo sobe e desce, modulando o clima de tensão nos rompantes da orquestra de metais, a voz segue, grave, em sua locução doutrinária: “Onde se levanta um muro entre a liberdade e a tirania, acontece isso: o fanatismo oficial do autoelogio.” Mais adiante: “Só a democracia impede que a sociedade fique à mercê de um só homem ou de um só partido político.” Na tela, as imagens se sucedem: militares e tanques nas ruas, filas de refugiados, pessoas com fome, crianças chorando. A voz nos informa que isso é Berlim Oriental, que isso é o comunismo, onde prevalecem “a economia baseada no trabalho exaustivo, o descaso total pelo indivíduo, a dissolução da família, a paralisia da inteligência, o falseamento da educação, o espezinhamento do homem”.
De repente, a música se distensiona e assume contornos mais suaves. Surgem tomadas aéreas, o Cristo Redentor em primeiro plano, a Baía de Guanabara ao fundo – “Brasil, terra da liberdade”. Na tela, imagens de crianças na escola, sequências cívico-esportivas de militares em ação: “Aqui, como em qualquer democracia, as Forças Armadas existem não para a opressão totalitária, mas para a defesa dos sagrados direitos dos civis”, diz, triunfante, o locutor. E lembra a seguir que as eleições estão chegando: “Abra os olhos, veja claramente. Examine no elenco de candidatos aqueles que podem de fato trabalhar pelo Brasil.” Corria o ano de 1962, quando houve eleições diretas para o Congresso Nacional e para governador em onze estados.
Com dez minutos de duração, O que É Democracia? é um dos catorze filmetes patrocinados pelo Ipes, o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais, think tank criado em 1962 por empresários que viam a ameaça comunista no Brasil de João Goulart. Em 2001, a pesquisadora fluminense Denise Assis encontrou os rolos numa lata no Arquivo Nacional, no Rio, e conseguiu restaurá-los.
No último dia 15 de março, um sábado ensolarado, um deles foi exibido para pouco mais de 100 pessoas que participavam da sessão da Comissão Nacional da Verdade (CNV) na Assembleia Legislativa de São Paulo. A advogada criminalista Rosa Cardoso, conselheira da Comissão, assistiu ao curta-metragem num dos três aparelhos de tevê dispostos no auditório. Depois de quase dois anos de atuação, era a primeira vez que a Comissão da Verdade discutia em público o envolvimento de empresários no golpe de 1964. A audiência começara pela manhã, numa reunião fechada, durante a qual Denise e outros quatro pesquisadores apresentaram teses e documentos sobre o financiamento privado da estrutura repressiva instalada com o golpe de 1964 e radicalizada depois do AI-5, no final de 1968.
Os filmes, segundo a pesquisadora, “em momento algum diziam frontalmente: ‘Vamos derrubar o Jango.’ Diziam: o setor tal está precário, o setor tal está sem recurso do governo. Com isso, iam fomentando o sentimento de insatisfação. Foi assim que chegaram a 1964 com pleno domínio da opinião pública no sentido de incutir que o país estava um caos”. A propaganda do Ipes era exibida na tevê, mas também em fábricas, paróquias e praças, com caminhões cedidos pela Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (a Anfavea) e em projetores doados pela cadeia de lojas de departamentos Mesbla. O fotógrafo francês Jean Manzon, parceiro do jornalista David Nasser na revista O Cruzeiro, nos anos 40, produziu a maior parte dos filmes.
“Nós temos que fazer uma responsabilização institucional, não só de pessoas. Qual é a natureza dessa ditadura empresarial-militar? Temos de responsabilizar civis por isso, as empresas por isso. A grande questão é contar essa história e fazer a responsabilização”, disse Rosa após ouvir as demais falas na Assembleia. Os dados revelados na reunião, no entanto, avançaram pouco em relação ao que já se sabia desde o remoto ano de 1981, quando foi lançado o livro clássico de René Armand Dreifuss, 1964: A Conquista do Estado, que mergulha na ação do Ipes e de seu irmão, o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), criado em 1959 para financiar candidatos anticomunistas e opositores a Goulart.
Rosa Cardoso é uma mulher elegante, que aparenta menos do que seus 67 anos. Usa roupas sóbrias, de cores neutras, e batom vermelho, que combina com a armação dos óculos. Sorri pouco e conserva um ligeiro sotaque pernambucano. Não muito alta, bastante magra, passa um falso ar de fragilidade. Na Comissão da Verdade, coordena, entre outros, o 13º Grupo de Trabalho, o GT13, criado por sua iniciativa em abril de 2013, depois que já estavam em funcionamento outras doze frentes de trabalho. As pesquisas e investigações da Comissão se abrigam nesses núcleos, divididos por temas que vão do desrespeito aos direitos humanos de indígenas à violência sexual contra guerrilheiras. O GT13 pretende esquadrinhar a relação entre empresas e Estado na repressão, mas apenas neste ano foi contratada mão de obra adicional – duas pesquisadoras para cobrir um período de 21 anos.
A criminalista assumiu a função de conselheira da Comissão em 16 de maio de 2012, numa cerimônia no Palácio do Planalto, com os outros seis indicados: Gilson Dipp, ministro do Superior Tribunal de Justiça, afastado por motivos de saúde desde 2012; Claudio Fonteles, ex-procurador-geral da República; Paulo Sérgio Pinheiro, cientista político; os advogados José Carlos Dias e José Paulo Cavalcanti Filho, e a psicanalista Maria Rita Kehl. Em junho de 2013, Fonteles renunciou. Em seu lugar assumiu o advogado Pedro Dallari, indicado pelo ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. Com a entrada de Dallari, são cinco integrantes de um total de sete a ter formação jurídica, a despeito da lei que instituiu a Comissão, que fala em composição “pluralista” do colegiado.
O grupo deveria entregar o relatório final até maio deste ano, mas, a pedido dos conselheiros, a presidente Dilma Rousseff prorrogou os trabalhos até dezembro – do ponto de vista político, o adiamento também foi interessante para o Planalto, que se esquiva de questões espinhosas até a eleição de outubro.
Na CNV, Rosa é dona das posições mais firmes – ou radicais, a depender do interlocutor. Quer, por exemplo, que a Comissão defenda em seu relatório final a revisão da Lei da Anistia, que hoje impede o julgamento de ex-militares que tenham cometido crimes contra a humanidade, como torturas, assassinatos e ocultação de cadáveres. Não é o que pensa a maioria dos conselheiros – apesar de questionarem a lei de 1979, eles consideram que essa é uma discussão do Congresso e do Judiciário. Rosa também é a favor de divulgar os nomes de agentes públicos que cometeram os crimes e defende a revisão do currículo das escolas militares. Suas posições, que não hesita em tornar públicas, lhe renderam a simpatia dos familiares de mortos e desaparecidos, mas também muitas críticas dos colegas da Comissão.
“A minha compreensão é a de que esse é um trabalho coletivo, e alguns não entendem isso”, disse Rosa, na sala de reuniões de seu escritório, no 7º andar de um prédio no Centro do Rio, numa tarde de fevereiro. Na parede atrás dela, um pôster estampa as sílabas que formam a palavra “verdade”, seguida de um ponto de exclamação. Em cima da mesa, empilhados ao lado de um pote com canetas, os livros O Brasil de Betinho e História dos Homens no Brasil.
Nos anos 60, Rosa era assistente de Antonio Modesto da Silveira, advogado que defendeu centenas de presos políticos. Com 20 e poucos anos, fazia rondas pelos presídios e instalações do Exército, em nome de famílias que buscavam informações sobre os parentes. Chegou a ser detida pela polícia. Nos anos 70 defendeu na Justiça Militar certa guerrilheira de Belo Horizonte que agia sob o codinome de Estela ou Vanda, e cujo nome verdadeiro é Dilma Rousseff – a relação dela com a presidente é alvo de comentários de alguns integrantes da CNV, para quem Rosa forçaria uma amizade. Militares criticaram sua nomeação alegando que a Lei 12.528, de 2011, que criou a CNV, prevê a “imparcialidade” dos conselheiros.
O grau de envolvimento e de interesse com os trabalhos da Comissão da Verdade varia entre seus membros. A lei não menciona dedicação exclusiva e fixa uma remuneração mensal de 11 179,36 reais – Cavalcanti, Dallari e Dipp abriram mão do salário. No geral, os conselheiros encaixam as tarefas da CNV em seus compromissos profissionais.
Dallari me recebeu em seu gabinete no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), do qual é diretor, antes de uma reunião para tratar de outro assunto. José Carlos Dias me ofereceu um café em seu escritório, no Edifício Itália, no Centro de São Paulo, onde seria entrevistado para um documentário. A conversa com Maria Rita Kehl aconteceu em seu consultório, entre um e outro atendimento. Paulo Sérgio Pinheiro esteve com piauíno escritório paulista da CNV, por ocasião de uma escala entre Genebra e o Oriente Médio – ele também é coordenador da Comissão Internacional Independente de Inquérito sobre a Síria, da ONU. Rosa me recebeu em seu escritório e em atividades da Comissão no Rio e em São Paulo. De Recife, Cavalcanti concedeu duas entrevistas por telefone, a última delas após participar do lançamento de um livro e pouco antes de viajar para sua casa de praia no litoral pernambucano, onde costuma velejar.
“Algumas pessoas estão se dedicando de maneira muito intensa. A Maria Rita Kehl, se você mandar um e-mail para ela, recebe uma resposta automática dizendo que nos próximos anos ela está na CNV, para não procurá-la. A Rosa, vejo sempre participando. Paulo Sérgio está lá, enrolado com as coisas dele, com a ONU, com as guerras no Oriente Médio. Mas quando está aqui ele se dedica fortemente. E acabou”, disse em seu escritório, numa casa geminada em Pinheiros, Zona Oeste paulistana, Ivo Herzog, filho do jornalista Vladimir Herzog. No dia 24 de outubro de 1975, uma sexta-feira, Ivo, então com 8 anos, brincava com uma máquina de telex, na redação da TV Cultura. Ele tinha ido à emissora com a mãe e o irmão para buscar o pai. Dali seguiriam para o sítio, em Bragança Paulista. Mesmo entretido, Ivo percebeu a movimentação estranha. Eram oficiais do DOI-Codi que haviam chegado com o intuito de levar seu pai para depor. Após uma negociação, Herzog ficou de se apresentar no dia seguinte. A viagem para o interior foi cancelada; às oito da manhã do sábado, dia 25, o jornalista se apresentou no DOI-Codi, onde o torturaram até a morte.
A avaliação de Ivo Herzog sobre os trabalhos da Comissão encontra eco nas posições de Marlon Weichert, procurador regional da República em São Paulo, para quem os conselheiros deveriam trabalhar em regime de dedicação exclusiva. “Não houve um decreto da presidente regulamentando a lei da Comissão da Verdade. Isso fez falta. Poderia ter dado um pouco mais de coesão, orientado os comissionados sobre a atuação”, disse ele em seu gabinete na Procuradoria, próximo à avenida Paulista. Weichert faz parte do núcleo de procuradores que já abriram seis ações civis, seis ações criminais e mais de 200 investigações sobre crimes cometidos por agentes de Estado na ditadura. Foi convidado para a reunião do GT13, na Assembleia, durante a qual disse que a lei brasileira não prevê a responsabilização criminal de empresas por violação aos direitos humanos. “Estamos numa fase muito anterior a isso. Ainda procuramos vencer as barreiras criadas pelo Judiciário e pela política brasileira para a responsabilização dos torturadores e dos comandantes dos crimes.”
José Paulo Cavalcanti Filho é um dos que minimizam a questão da exclusividade. Elogiado pelos colegas não pelos trabalhos na Comissão, mas por ter ganhado um prêmio Jabuti com uma biografia sobre Fernando Pessoa, o advogado ressalta que não aceitou “um tostão da Comissão; nem iPad, nem celular. Tenho meu escritório para me manter”. Explica que há apenas dois voos diretos por dia entre Brasília e Recife, e que muitas vezes não é necessário estar fisicamente na sede da CNV, no prédio do CCBB (Centro Cultural do Banco do Brasil). “A minha parte do relatório está pronta. Pergunte à Rosa se a dela está. Ela deu dezoito entrevistas no último mês.”
Ex-secretário-geral do Ministério da Justiça na Presidência de José Sarney, Cavalcanti já se pronunciou contra a revisão da Lei da Anistia. Em 2010, o Supremo Tribunal Federal rejeitou a revisão, por 7 votos a 2. A decisão, porém, pode ser reconsiderada pela Corte na apreciação de recurso da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Os conselheiros não descartam que o STF, com uma composição diferente da de 2010, reveja a questão, principalmente porque depois da votação veio, no mesmo ano, a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos, por não ter punido os responsáveis pelo desaparecimento de 62 militantes da Guerrilha do Araguaia, entre 1972 e 1974. A OEA destacou na sentença que crimes contra a humanidade são imprescritíveis e que a Lei da Anistia viola tratados internacionais assinados pelo país.
Além de Rosa, também Maria Rita Kehl discorda de Cavalcanti e avalia que a CNV deve propor a revisão da lei em seu relatório final. Os outros três integrantes tergiversam. “Nós já tínhamos acertado que não iríamos discutir publicamente as recomendações finais do relatório. Que iríamos postergar os elementos desagregadores. Mas a Rosa, durante o balanço de um ano da Comissão, anunciou para o país que íamos recomendar a revisão da lei”, reclamou Cavalcanti. E continuou, em tom mais irônico: “Os holofotes são poderosos, nem todo mundo resiste. A carne é fraca… Eu já passei da idade. Tenho 65 anos, mas a profissão me dá 200.” Em reuniões internas, mais de uma vez Cavalcanti chamou o golpe de 64 de “revolução”. Foi corrigido pelos colegas. “É uma idiotice. Quem fala isso tem espírito pequeno. É uma questão de nomenclatura. Chamei de revolução e provavelmente vou chamar outras vezes.”
Desde a sua criação, a Comissão da Verdade foi marcada por cizânias entre os conselheiros: Paulo Sérgio, Maria Rita, José Carlos Dias, Cavalcanti e, agora, Dallari defendem uma atuação discreta durante as investigações e, em graus diferentes, apostam as fichas num relatório final “impactante”. Rosa e Fonteles, antes de sair, criticam o que chamam de “secretismo”. Avaliam que o foco deveria ser não só a produção do relatório, mas a discussão de seu conteúdo com a sociedade. A lei explicita que os trabalhos do grupo são “públicos”, e o sigilo, excepcional.
Fonteles vive numa casa ampla, no Lago Norte de Brasília, com horta e quadra de vôlei. Tem 67 anos e mora na capital desde os 13, mas não perdeu o jeito carioca. Bronzeado, veste-se informalmente, de camiseta e calça jeans. Tem orgulho de não gostar de terno e gravata e conta que já participou de um julgamento no STF com a camisa do Vasco – “por baixo da camisa social, é claro”.
Ex-procurador-geral da República no governo Lula, ele protagonizava embates com Paulo Sérgio Pinheiro sobre a maneira de conduzir os trabalhos no grupo. No dia 17 de junho de 2013, as desinteligências entre os dois fugiram ao controle. Estavam todos reunidos no 2º andar do CCBB. Rosa assumira a coordenação um mês antes e pedia explicações sobre gastos na contratação de três jornalistas, ao custo de 6 mil reais mensais cada, efetuada pela historiadora mineira Heloísa Starling, estudiosa do regime militar que assessora Maria Rita.
“Não acredito que você está querendo jogar lama no nome da nossa Heloísa”, rebateu Paulo Sérgio. Fonteles, que, além de concordar com Rosa, considera Paulo Sérgio “autoritário”, estava visivelmente incomodado. Quando o bate-boca entre os colegas deu uma trégua, pediu a palavra e disse que gostaria de fazer um anúncio, sem que fosse interrompido. Paulo Sérgio ignorou o pedido e o atropelou. Fonteles respirou fundo. Teve vontade de partir para cima do colega, mas se segurou. “Não é possível continuar mais. Boa sorte a todos”, disse, colocando sobre a mesa sua carta de demissão. A atitude pegou os conselheiros de surpresa. Paulo Sérgio até tentou demovê-lo. Mas Fonteles já estava decidido. Havia redigido a carta com dias de antecedência.
O desgaste entre os conselheiros começara meses antes, quando Fonteles decidiu comunicar aos demais integrantes do grupo que divulgaria na internet textos sobre suas pesquisas na Comissão. A maioria foi contra, mas ele ignorou e lançou na rede mais de 150 páginas sobre suas incursões ao Arquivo Nacional, em Brasília.
“Com aquele temperamento que é um vulcão, o Paulo Sérgio tinha pedido para o Fonteles não publicar esses textos. E ele publicou. Foi um horror, tinha imprecisão de tudo quanto é tipo”, lembrou Cavalcanti. No final de 2012, Fonteles e Rosa ganharam a antipatia do advogado pernambucano ao questioná-lo sobre sua ausência nas reuniões. “Há uma diferença no modo como entendemos o trabalho da Comissão. Fonteles é aposentado e mora em Brasília. Ele ia para o Itamaraty das oito da manhã às cinco da tarde. E queria que eu fosse junto. Isso é função para assessor, não para membro da Comissão”, argumentou Cavalcanti.
“O problema em relação ao Claudio não era tornar público ou não. Existe sobre isso uma divisão na Comissão. Gente que acha que não deve falar, deixar tudo para o relatório. Eu, às vezes, dou entrevista. Não estou o tempo todo fazendo publicidade, mas não escondo o que estou pensando”, afirmou Maria Rita, sentada numa cadeira de balanço, num casarão em Perdizes, Zona Oeste paulistana, onde funciona seu consultório.
Aos 62 anos, a psicanalista tem os cabelos curtos, as pernas e os braços esguios e bronzeados. Foi musa da intelectualidade paulistana de esquerda entre os anos 70 e 80, quando editou o jornal alternativo Movimento, uma dissidência do Opinião. É ligada ao PT, e outros conselheiros gostam de se referir a ela usando invariavelmente a expressão “não é da área”. Ela diz entender que os colegas têm mais experiência no tema dos direitos humanos. “Eu escrevo, sou psicanalista, não defendo preso político, nada disso.” Escolheu atuar no grupo de trabalho sobre repressão a camponeses e indígenas por ter experiência com o assunto desde 2006, quando atendeu integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), na Escola Florestan Fernandes. Além disso, “escolhi o tema que achei que ninguém ia querer”, disse.
Maria Rita explicou o “problema” com Fonteles: “Ele ia ao Arquivo Nacional, que está aberto desde o governo FHC. Então, os documentos que ele ia pondo na internet já foram usados em livros, como no do Frei Betto, sobre a morte dos dominicanos. Era chato para nós. Nosso medo, e o Paulo Sérgio expressava isso o tempo todo, era que a Comissão caísse no ridículo.”
Claudio Fonteles gosta de relatar que passava horas pesquisando documentos no Arquivo Nacional. Por ser, conforme suas palavras, uma pessoa “um pouco midiática”, a imprensa o procurava para saber dos papéis. No dia 10 de maio de 2013, ele e José Carlos Dias interrogaram Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandou entre 1970 e 1974 o DOI-Codi de São Paulo, um dos principais centros de tortura do regime. Como a Comissão tem o poder de convocar testemunhas, Ustra foi obrigado a comparecer. Estava acompanhado de militares da reserva, entre os quais o general Luiz Adolfo Sodré de Castro, que até 2011 era o comandante militar do Planalto. Era a primeira vez que o coronel seria questionado sobreos crimes em frente às câmeras de tevê.
Fonteles baseou suas perguntas em documento que havia encontrado no Arquivo Nacional, e que exibia, de forma teatral, dizendo ser “se-cre-tôôô, se-cre-tôôô”, como se fosse um personagem de melodrama trazendo a carta que põe fim à trama.
“Coronel Ustra, o senhor nos diz que se nega a responder à maioria das perguntas, sob o fundamento de que está tudo no seu livro. Mas eu vou lhe mostrar uma documentação que, por certo, não está no seu livro.” Fonteles exibiu, então, uma folha de papel para a plateia. Tratava-se de um relatório de estatísticas do DOI-Codi. “Em dezembro de 1973, mortos no DOI-Codi: 47”, leu Fonteles, acrescentando “Isso não está no seu livro.”
“Está sim, senhor. O senhor procura lá”, rebateu Ustra, que usava um botão de lapela da Medalha do Pacificador, recebida pelos serviços prestados ao Exército. Fonteles insistiu que “este documento” não, não estava no livro. Ustra pediu o exemplar de A Verdade Sufocada, que havia dado à Comissão. Com a obra em mãos, pegou o microfone e começou a ler a cópia do “documento se-cre-tôôô”. Estava lá, na página 299. Havia sido publicado pelo Correio Braziliense nove anos antes, em 2004.
O interrogatório suscitou uma série de críticas à Comissão. Com um habeas corpus que lhe permitia ficar calado, Ustra falou apenas o que quis, chamou militantes de terroristas e, quando não lhe interessava responder, ficava quieto.
Hoje distante dos holofotes, Fonteles disse ter ficado cansado das “ironias” de Paulo Sérgio e da “omissão” dos demais. Reclamou também de Maria Rita, “muito agressiva, me chamou de ‘besta autoritária’ na Folha”. Logo depois da declaração foi divulgada uma carta de apoio a Fonteles assinada por familiares de mortos e desaparecidos, que elogiavam também o trabalho de Rosa. “É uma gente maravilhosa. Eu conversava muito com os familiares, eles [os outros conselheiros] queriam distância.”
Maria Rita também se indispôs com Rosa, quando esta se tornou coordenadora em meados de 2013. “Não sei por que Maria Rita ficou tão zangada comigo”, disse a advogada, dentro de um táxi, a caminho de um restaurante japonês, no Leblon, no começo de fevereiro. “Talvez porque seja amiga da Heloísa. Ela fez umas críticas ao Claudio e a mim, gerou uma tensão muito grande e passou a ser muito malvista, principalmente pelos familiares.” Rosa acabara de deixar a inauguração da exposição Resistir É Preciso, organizada por Ivo Herzog, no CCBB. Única conselheira a participar do evento, era cercada a todo momento por familiares de vítimas e expresos, que pediam providências ou perguntavam a respeito do andamento de determinado assunto. “Nunca tive tanto prestígio”, brincou.
A psicanalista faz um mea culpa sobre a briga com Rosa. “Antes de nos reunirmos para ver quem seria o próximo coordenador, a Rosa deu uma entrevista dizendo que ia ser ela. E eu tive a inabilidade de mandar um e-mail dizendo que não tinha achado legal. Poderia até ser a Rosa, mas ela não poderia se autoproclamar coordenadora”, lembrou Maria Rita. “E aí, em seguida, ela demitiu de uma maneira muito ruim, muito rude, o nosso secretário-executivo, o Pedro Pontual, que era ótimo. E colocou o André Sabóia, que está lá até hoje. Aí mandei a carta para todos os membros, o que eu não deveria ter feito.”
O desenho da Comissão, um colegiado com coordenação rotativa, é apontado como um dos maiores empecilhos a seu desempenho. A mudança de coordenador, escolhido pelos conselheiros a cada três meses, dificulta a continuidade das investigações. Quando o nomeado assume, imprime estilo próprio na condução dos trabalhos. Dá mais ênfase à pesquisa que considera mais importante. Manda embora assessores, contrata novos. Já passaram pela Comissão três secretários-executivos. Cada um deles ligado a um coordenador.
A saída de Fonteles e a entrada de Dallari esfriaram os ânimos dos conselheiros, de modo que está mantido um “equilíbrio frágil” no grupo, conforme definição de um deles. Tanto que Dilma, podendo substituir Dipp, preferiu deixar as coisas como estão para evitar mexer nesse castelo de cartas. Contribui também para o armistício a pouca frequência com que os conselheiros têm se visto. No ano passado, havia pelo menos uma reunião por semana. Agora, duas por mês, no máximo.
“A Comissão da Verdade funcionando bem não é uma notícia muito quente. Talvez uma notícia mais quente sejam esses atritos, essas confusões que são para ficar em toda a confidencialidade”, disse Paulo Sérgio Pinheiro. Sob a condição de que não falaria de questões internas da CNV, ele conversou com piauí em fevereiro, durante uma estada de três semanas em São Paulo. “Prefiro falar no relatório. E quem fala sobre a Comissão é o coordenador Pedro Dallari.” Desde o ano passado, quando as quizilas chegaram à imprensa, Paulo Sérgio parou de dar entrevistas, mas mantém conversas em off com alguns jornalistas.
No escritório da Presidência da República, na avenida Paulista, sentado na frente de uma foto da “presidenta” Dilma, como ele a chama, o professor aposentado de ciência política da USP falou de sua relação com o PT e o PSDB. “De certa maneira, tenho conexões com FHC e com Lula. O Lula é adorável, tenho um filho que é corintiano, e ele sempre pergunta dele. Tenho a melhor relação com o Lula e com FHC, que conheci em 67 em Paris.” Aos 70 anos, Paulo Sérgio Pinheiro se veste num estilo híbrido tucano-petista. Usa uma clássica calça bege com camisa azul-clara. A camisa, porém, é uma guayabera – modelo caribenho, com quatro bolsos, que se tornou uma espécie de uniforme da esquerda no poder.
Em julho de 2013, ele defendeu a demissão de Luiz Cláudio Cunha, assessor da Comissão que criticou publicamente a falta de empenho do Ministério da Defesa na divulgação dos documentos. Após a demissão, Cunha divulgou um e-mail no qual Paulo Sérgio advogava o sigilo dos trabalhos. Na mensagem, o conselheiro se dizia contra divulgar dados da CNV para o Instituto de Estudos sobre a Religião (Iser), ONG que monitora as ações da Comissão: “Minha tendência é não responder nada… Ou poderíamos dar respostas lacônicas. […] Creio que podemos nos beneficiar do sigilo em relação a nossos trabalhos internos.”
No ano passado, o professor acabou contribuindo para que as confusões perdessem a “confidencialidade”. Uma reportagem do Valor Econômico dizia que Paulo Vannuchi, ex-secretário de Direitos Humanos de Lula, sem perceber a presença do repórter, havia criticado Rosa Cardoso. Num evento no Rio, Vannuchi, segundo o jornal, teria dito que Rosa queria uma “devassa” na Comissão. As declarações, na verdade, foram de Paulo Sérgio Pinheiro. Ao ser provocado com o assunto, ele admite não ter sido Vannuchi o autor dos ataques, mas desconversa: “Não foi ele, absolutamente. Mas, depois que saiu na imprensa, fazer uma correção não adianta nada, melhor esquecer.”
Ao final da conversa, Paulo Sérgio se despediu de maneira ao mesmo tempo gentil e afoita, como costuma fazer. Já na avenida Paulista para tomar um táxi, virou-se para mim e pediu: “Se possível, diga algo positivo. Aquelas futricas, aquilo foi desastroso.” E seguiu seu caminho, abrindo espaço entre os pedestres com o seu 1,94 metro de altura e um exemplar do New York Times debaixo do braço.
O Brasil foi o último país da América Latina a constituir a sua Comissão da Verdade. Em 1982, o presidente Hernán Siles Zuazo instalava a primeira comissão na Bolívia. Vieram depois El Salvador (1992), Haiti (1995), Guatemala (1997), Panamá (2001), Peru (2001) e Paraguai (2004). Em alguns países houve mais de uma, como no Chile (1990, 2003 e 2010), no Uruguai (1985 e 2000) e no Equador (1996 e 2008). Quarenta comissões já funcionaram pelo mundo, de Uganda, em 1974, ao Canadá, em 2009, esta última criada para investigar violações aos direitos indígenas entre 1874 e 1996. A Comissão da Verdade e da Reconciliação da África do Sul, instaurada em 1995, após 45 anos de apartheid, é a grande referência. Ao custo de 55 milhões de dólares, os trabalhos se estenderam por sete anos, durante os quais foram ouvidas 21 mil pessoas, culminando numa ação inédita: anistia concedida a quem confessou os crimes de racismo e se desculpou.
Outro exemplo citado com frequência é o da Argentina. Em 1983, ano em que os militares entregaram o poder ao governo democrático de Raúl Alfonsín, foi criada a Comissão Nacional sobre Pessoas Desaparecidas, presidida pelo escritor Ernesto Sabato. Um ano depois, o grupo havia produzido um relatório de 50 mil páginas, o Nunca Mais, que falava em 8 961 pessoas desaparecidas e recomendava a abertura de processos na Justiça para investigar os crimes da ditadura e responsabilizar seus autores. Em 1986 e 1987 foram editadas leis de anistia no país, suspendendo os processos. Em 2005, depois da pressão do presidente Nestor Kirchner (2003-07), a Suprema Corte revogou a anistia. Com a decisão, militares passaram a ser julgados e condenados à prisão perpétua; entre eles, Jorge Rafael Videla, que governou o país entre 1976 e 1981. Diferentemente do Brasil, onde as Forças Armadas insistem em negar os crimes, Videla declarou em 2010 que assumia toda a responsabilidade pelo que ocorreu,alegando que o país viveu uma guerra interna. Ele morreu em 2013 na prisão. Agora a Argentina começa a processar civis por crimes contra a humanidade. Juízes e empresários foram para o banco dos réus.
No Brasil, do nome às prerrogativas, a Comissão da Verdade reflete a aptidão nacional para a conciliação. Sua criação foi proposta na 11ª Conferência Nacional dos Direitos Humanos, em 2008, ainda no governo Lula, com o nome de Comissão Nacional da Verdade e da Justiça. Nelson Jobim, então ministro da Defesa, encrencou com “Justiça” e sugeriu, em seu lugar, “Reconciliação”. Paulo Vannuchi insistiu na versão original. A decisão final foi de Lula: tirou “Justiça”, mas não pôs “Reconciliação”.
Para passar no Congresso, o projeto foi alvo de uma rara joint venture entre petistas e tucanos, e contou com a ajuda de FHC, cuja função era amaciar o DEM. Como resultado, a lei acabou ficando genérica e limitou a atuação dos conselheiros, que não podem, por exemplo, propor a abertura de processos contra autores de crimes contra a humanidade.
Além disso, para ser aprovada a lei tirou do foco da comissão os 21 anos de ditadura. O texto diz que as investigações deveriam se debruçar sobre um período de 42 anos, de 1946 a 1988. Em mais uma concessão no Congresso, não se especificou que o alvo dos trabalhos seriam os crimes cometidos pelos militares. Com base nessa imprecisão, José Carlos Dias soltou que o grupo investigaria “os dois lados”. A reação dos demais conselheiros foi imediata: por conta própria, editaram uma resolução dizendo que as investigações se ateriam aos crimes cometidos “por agentes de Estado”.
Com as limitações impostas pela lei, sobrou para a Comissão da Verdade a possibilidade de convocar testemunhas e promover audiências. Foram até agora mais de 400 depoimentos, abordando da Operação Condor à Guerrilha de Porecatu (conflito entre posseiros e fazendeiros no final dos anos 40 que teve participação do PCB). Além disso, a Comissão tem a prerrogativa de solicitar documentos secretos. Ministérios civis e empresas estatais mandaram para a CNV arquivos produzidos por suas respectivas seções de informação, criadas durante a ditadura para abastecer o antigo Serviço Nacional de Informações, o SNI. Estima-se que ao todo 20 milhões de páginas serão digitalizadas e colocadas para consulta pública no Arquivo Nacional, ao custo de pelo menos 2,8 milhões de reais. O mais importante, porém, são os arquivos militares, e eles continuam desaparecidos. Essa é a papelada que realmente importa na missão de desvendar a cadeia de comando das violações que chega até o Palácio do Planalto e enterra a ideia de que torturas e assassinatos ocorreram por desvios de conduta isolados ou desmandos de grupos de sádicos fora de controle.
Os militares alegam que não têm mais os documentos, que eles foram destruídos – incluindo aí informações básicas, que hoje são usadas para calcular as aposentadorias de quem está na reserva. A Comissão pede, então, que apresentem os autos de incineração. Os militares alegam que a lei permite que os autos também sejam destruídos, e por aí a história se arrasta, num enredo kafkiano.
Conselheiros já se reuniram algumas vezes, secretamente, com representantes das Forças Armadas. Mas a interlocução é frágil e, como tudo na Comissão, não há consenso sobre como proceder. Há quem defenda negociação em troca de documentos. A Comissão mostraria boa vontade com os militares no relatório final, deixando de lado a proposta de revisão da Lei da Anistia, e receberia os arquivos. Há quem diga que não há barganha possível e que é dever legal dos militares entregar a documentação.
Para Heloísa Starling, assessora da Comissão que pesquisa o período, “não há nada mais importante que esses papéis”. “Faria qualquer coisa para pôr as mãos neles”, disse ela, sorrindo, durante um seminário sobre os cinquenta anos do golpe, promovido pelo Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), em São Paulo. Mostrando otimismo, disse haver “indícios muito fortes” de que a Comissão conseguirá acessá-los. Afirmou, no entanto, desconhecer qualquer negociação com os militares.
Desde a criação da Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, em 1995, no governo de FHC, o Estado admitiu o assassinato de 362 pessoas, o que até hoje resultou no pagamento de 39,9 milhões de reais em indenizações. Já a conta dos anistiados políticos que recorreram à Comissão de Anistia – também criada por FHC em 2001, e turbinada no governo Lula – ultrapassa 3,4 bilhões de reais. E não para de crescer. Para muitos, a má vontade da sociedade com a questão dos perseguidos políticos resulta desse gasto bilionário. Nas discussões sobre a ditadura no Brasil, o termo “reparação” precede sempre a palavra “justiça”.
“Há uma responsabilidade assumida em abstrato. O Estado reconhece que a pessoa morreu em suas dependências, mas não indica exatamente por que razões essas pessoas foram mortas, quem são os envolvidos, onde estão os restos mortais. Não há uma concretização dessa assunção de responsabilidade. Nunca houve um pedido de retratação das Forças Armadas”, afirma o advogado Renan Quinalha, autor do livro Justiça de Transição: Contornos do Conceito.
Com 28 anos, óculos, cabelos revoltos e barba por fazer, Quinalha parece ter saído do filme Os Sonhadores, de Bernardo Bertolucci, sobre as manifestações estudantis de maio de 68 em Paris. Sua tese de mestrado na Faculdade de Direito da USP é uma referência nos estudos sobre comissões da verdade e justiça de transição (conjunto de medidas adotadas por países que passaram por períodos de exceção ou guerras civis), o que o levou a ser chamado para trabalhar na Comissão da Verdade Rubens Paiva, da Assembleia paulista.
Quinalha avalia que haverá “frustração de qualquer modo” na conclusão do trabalho da CNV. “Em se tratando de uma demanda tão íntima e tão particular (que é a busca por mortos e desaparecidos), é óbvio que essas pessoas vão estar frustradas sempre, porque o Estado, com todas as amarras que a gente sabe que tem, herdadas da ditadura, e escolhas feitas na própria democracia, não vai dar essas respostas.” O advogado vê “um isolamento total da Comissão no governo, no sentido político, que faz com que o vetor do controle das transformações acabe prevalecendo sobre a reinvindicação dos grupos de direitos humanos e dos familiares”.
Apesar das limitações, conta a favor da CNV a reação que provocou país afora, ao fazer pipocar comissões estaduais,municipais e da sociedade civil, algumas em pleno funcionamento, outras criadas apenas para tomar carona no burburinho. De acordo com o Iser, há pelo menos 77 comissões da verdade pelo Brasil, entre as quais sete de seções regionais da OAB, 17 de universidades e 19 de sindicatos. Com menos estrutura, a Comissão da Verdade do Rio de Janeiro e a Comissão da Verdade Rubens Paiva, da Assembleia de São Paulo, conseguiram descobrir fatos novos e de maior repercussão que os feitos da comissão criada pelo governo federal. Em vários casos, ocorre uma parceria entre a CNV e as regionais para realizar audiências e tomar depoimentos. Foi o que aconteceu na reunião sobre a colaboração de empresários com o golpe e o regime de exceção, que foi conduzida por Rosa Cardoso e pelo deputado estadual Adriano Diogo, do PT, presidente da comissão da Assembleia paulista.
Observado por Rosa, Diogo tentava colocar limites na reunião. O tempo tinha estourado na parte da manhã, e os participantes tentavam ganhar alguns minutos, almoçando sanduíches de queijo e presunto na sala de reuniões da Assembleia. À tarde, a discussão foi aberta ao público e representantes de sindicatos quiseram falar. “Eu tenho receio de que isso aqui vire uma sessão de descarrego. Nunca vi comissão da verdade com comício”, disse Diogo. O secretário-executivo do GT13, Sebastião Neto, emendou, pedindo foco aos presentes: “Toda essa questão dos mortos, desaparecidos, das perseguições, que as empresas são filhas da puta, já sabemos. Não precisa repetir isso para nós, aqui é tudo cobra criada. Ah, ‘eu fui perseguido’. Sim, companheiro, e daí? Todo mundo foi perseguido, não é essa a discussão. A discussão é aquilo que está na telinha: o que as empresas tiveram a ver com o regime?”
Pouco antes, o próprio Neto reclamava da falta de estrutura e apoio ao grupo coordenado por Rosa Cardoso. Não tinha conseguido autorização para imprimir na gráfica da Assembleia o material que seria debatido na reunião, não obteve verba para o lanche que foi distribuído. “Não conseguimos nem comprar passagem para o Pedro Campos [pesquisador e autor de A Ditadura dos Empreiteiros: As Empresas Nacionais de Construção Pesada, Suas Formas Associativas e o Estado Ditatorial Brasileiro], muita gente viajou sem diária”, disse Neto, comunicando à plateia que cópias de um livro a respeito de empresas que colaboraram com a ditadura na Argentina poderiam ser obtidas por 15 reais, “único jeito de recuperar o dinheiro”.
Passar o chapéu não é regra nas demais frentes de trabalho da comissão, que tem orçamento de 8,3 milhões de reais em 2014. A maior parte dos recursos é gasta com mão de obra. A CNV pagará ao longo de dois anos 8,6 milhões de reais ao PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) para a contratação de trinta dos seus 55 funcionários, entre os quais dezoito pesquisadores. O dinheiro da CNV também é usado em audiências, eventos e viagens – no ano passado, foram 486 mil reais. Conselheiros, pesquisadores e assessores viajaram para Nova York, Canadá, Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai. Há ainda outros 2,5 milhões de reais do Ministério da Educação aplicados pela Universidade Federal de Minas Gerais em pesquisas de interesse da comissão.
Adriano Diogo diz que a comissão paulista vive a “pão seco e água barrenta”. Citou com um pingo de inveja a comissão do Rio, que obteve 2 milhões de reais da Faperj para as pesquisas. O governo de Geraldo Alckmin não quis uma comissão ligada ao Executivo, mas aceitou a do Legislativo, no qual tem a maioria. Como resultado, a Comissão da Verdade Rubens Paiva não conta com orçamento próprio e tem uma estrutura pequena, formada por sete assessores, contratados pela Assembleia. Mesmo assim, conseguiu realizar 115 audiências sobre mais de 100 casos de assassinatos e torturas, além de colher 47 testemunhos de filhos de presos políticos que nasceram na cadeia ou que foram levados para lá ainda crianças devido à prisão dos pais. É um trabalho solitário, que não desperta o menor interesse dos outros 93 deputados.
Assessor da comissão da Assembleia paulista, Ivan Seixas, 59, foi o responsável por encontrar um dos documentos mais importantes revelados até agora, a lista de pessoas que visitaram o Dops, nos anos 70, que jazia no Arquivo Público de São Paulo. Os livros, com páginas amareladas, escritas com caligrafias variadas e enfeitadas com rabiscos e desenhos, parecem antigos cadernos de escola. Mostram, porém, que empresários e diplomatas dos governos americano, britânico, japonês, coreano e israelense frequentavam o centro de repressão política. Alguns eram habitués. “Paulo Sawaya era assessor no Ministério da Fazenda. No livro, tem ele entrando muitas vezes, ora apresentado como delegado, ora como do 2º Exército”, disse Seixas.
Ele acompanha todas as audiências, invariavelmente de camisa de mangas curtas e calça jeans. É um homem grande de olhos pequenos, uma careca avançando pelo cocuruto e fios desgrenhados nas laterais; guarda uma leve semelhança com Jack Nicholson. Quando repórteres estão à cata de notícia ou integrantes da comissão têm alguma dúvida sobre datas ou acontecimentos, recorrem a Seixas. Nossa conversa, na pequena sala onde funciona a comissão da Assembleia, foi interrompida por ligações de jornalistas da Folha, de O Globo e do Estadão. Também costuma ser dele o veredicto sobre a novidade de algum depoimento ou investigação.
Preso pelos militares aos 16 anos, Ivan Seixas ficou retido por seis anos, mesmo sendo menor de idade. Foi pego durante uma ação do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), ao lado do pai, que foi torturado e morto. Ele costuma corrigir quem usa o termo “assassinato” para mortes cometidas pelos militantes de esquerda. “Justiçamento”, diz. O MRT, do qual fez parte, atuou em 1971 com outros grupos no assassinato do empresário de origem dinamarquesa Henning Allbert Boilesen, diretor do Grupo Ultra. Boilesen comandava um esquema de arrecadação entre empresários paulistas para financiar a Oban (Operação Bandeirante), criada pelo Exército em 1969 para agir contra as organizações de esquerda.
Jorge José de Melo é autor de Boilesen, um Empresário da Ditadura: A Questão do Apoio do Empresariado Paulista à Oban, tese de mestrado em história pela Universidade Federal Fluminense. “A morte do Boilesen foi boa para os empresários porque toda colaboração ficou centrada nele”, disse Melo para Rosa, Diogo e Seixas. Aconselhou a CNV a procurar Paulo Egydio Martins, governador paulista entre 1975 e 1979, entrevistado por ele em 2008. O depoimento do ex-governador é reproduzido no documentário Cidadão Boilesen, no qual ele fala da ajuda dos empresários ao 2º Exército, que, na “penúria”, precisava reagir à “implantação da República Socialista do senhor Jango Goulart”.
Na lista do Dops que Seixas encontrou também aparece quase que diariamente um “dr. Geraldo Resende de Mattos”, acompanhado da sigla “Fiesp” no espaço destinado para os cargos. No ano passado, O Globo revelou tratar-se de um assessor do empresário Nadir Figueiredo, uma das principais vozes do PIB paulista e influente integrante da Fiesp daquele tempo. Entre 1971 e 1978, Mattos compareceu, às vezes por até três horas, ao prédio, comandado pelo truculento delegado Sérgio Paranhos Fleury. Não se sabe o que fazia por lá, mas suspeita-se que Figueiredo ajudava a recolher as famosas “caixinhas” entre os empresários paulistas.
A divulgação da lista rendeu a Seixas uma reprimenda de Paulo Sérgio Pinheiro, que o acusou de prejudicar negociações para obter acesso a outros documentos secretos dos Estados Unidos. A lista também levou Alckmin a exonerar o diretor do Arquivo e outro funcionário que estava envolvido na pesquisa.
O gabinete de Adriano Diogo tem vários papéis, de diferentes cores e tamanhos, afixados na entrada. Lembra um grêmio estudantil. De perto, vê-se que são cartazes sobre mortos e desaparecidos políticos. Aos 65 anos, pequeno, com a pele morena e os cabelos lisos e bem pretos, permeados por alguns poucos fios brancos, o deputado tem aparência displicente. Combina calça jeans e sapatênis sem meia com camisa e uma gravata, que saca de uma arara atrás da mesa. Fala com a voz baixa e rouca e tem o respeito até de adversários políticos, ao mesmo tempo que sua obstinação lhe rende adjetivos como “doido”, “excêntrico” e “louco”. Já ele emprega o termo “louco” para se referir a outra pessoa.
Diogo era estudante de geologia da USP quando foi preso em 1971. Ficou noventa dias na solitária sob o comando de Ustra. “Eu tenho medo dele até hoje. É um louco. Quando cheguei lá, ele falava assim: ‘Você sabe o que é um [revólver] Magnum? Isso aqui é um Magnum. E eu vou te mandar para a Vanguarda Popular Celestial, como mandei aquele filho da puta do Minhoca’, que era o meu amigo Alexandre Vannucchi. Perguntei para o carcereiro onde eu estava. ‘Você está na Oban, você está na antessala do inferno’, foi a resposta.”
O deputado repete outras sete vezes a frase “Ele é louco”. “Mostravam os cadáveres. Traziam as fotos dos meus amigos, todos costurados. O major [Ustra] era completamente louco. O dia que dom Paulo Evaristo celebrou uma missa, ele abriu todas as celas, pôs todo mundo no pátio e bateu em todos, com caibro, indiscriminadamente, sem perguntar porra nenhuma. Chamava o cardeal aos berros de ‘fanchona, puta, viadaço’.”
Procurei Ustra e recebi dele o seguinte e-mail: “Eu gostaria de conversar com a senhora, mas por vários motivos resolvi não dar entrevistas. Sei que a senhora está cumprindo o seu papel. Gostaria de ajudá-la, mas, após as entrevistas que dei, o que saiu publicado não foi exatamente aquilo que eu falei. Desculpe-me se não posso ajudá-la, como seria o meu desejo.”
Numa sexta-feira de fevereiro, mais de quarenta anos depois da prisão no DOI-Codi, Diogo dirigia seu Astra modelo 2001, sem cinto de segurança, e falava ao celular: “Tô indo dar um rolezinho na Oban.” Havia combinado de mostrar a uma jornalista alemã o local. O deputado não tinha autorização da Secretaria de Segurança Pública para entrar nos prédios, no bairro do Paraíso, onde hoje funciona a 36º Delegacia de Polícia. Poderia apenas fazer um tour pelo pátio do estacionamento. Mas um agente da Polícia Civil, que pediu para não ser identificado, autorizou a entrada no interior do prédio: “Aqui quem manda sou eu.”
O agente nos conduziu ao 2º andar. No fundo do corredor, mostrou um quarto que ele diz ter sido de Ustra. O local estava abandonado, tomado por pilhas de pneus. Quando o funcionário abriu a porta do banheiro, surgiu a carcaça de um automóvel. Não havia pistas de como ou por que ela foi parar lá dentro. No corredor, o agente indicou com o dedo um rombo na parede. Alguém fez o buraco para verificar se o reboco escondia uma janela, como havia na sala onde o corpo de Vladimir Herzog foi pendurado para simular o suicídio. “Mas a merda não foi aqui, foi lá”, diz, apontando para o prédio vizinho. “Estou na polícia há mais de 20 anos. A tortura nunca é do lado do chefe.”
Quinze dias antes da reunião na Assembleia, os pesquisadores das comissões nacional e paulista haviam colhido o depoimento de um ex-escrivão do Dops e do DOI-Codi. Manoel Aurélio Lopes, que atendia pelo codinome “Pinheiro”, foi questionado sobre a visita de empresários às prisões. “Ah, sim”, respondeu, e logo desatou a falar. “Quando eu cheguei lá a marmitinha era do Grupo Ultra.” A comida dos “panelões para fazer o rancho”, continuou, era da Supergel – uma empresa do Ultra. “A Cofres Bernardini fechou com chapas de aço as paredes. E a General Motors forneceu o protetor de ouvido”, disse, referindo-se ao estande de tiros do Dops, embaixo da carceragem. Familiares de desaparecidos tentaram sensibilizar o ex-funcionário para conseguir informações sobre a circunstância da morte de seus parentes. Foi ele o responsável pela elaboração de termo de apreensão de armas e documentos que estavam com Arnaldo Cardoso Rocha, um militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) morto pela polícia em 1973. “Meu nome é Iara Xavier Pereira, e eu sou viúva do Arnaldo, a quem o documento está se referindo. Na plateia está a irmã dele, minha cunhada Maria Letícia. Passados 41 anos, nós ainda sofremos para saber o que ocorreu. O senhoré pai, deve ser avô, o senhor estava de um lado, eles estavam de outro, mas eu queria apelar para que o senhor fale o que tiver de informação que nos possa trazer um conforto.”
Iara apelou a Lopes, que apelou para dificuldades auditivas, decorrentes, segundo ele, da exposição ao barulho dos tiros no estande do Dops. Em alguns momentos ele dizia não ouvir direito a pergunta, em outros, que simplesmente não se lembrava. No final, limitou-se a dizer que “delicadeza era apelido” para a forma com que os presos eram tratados no local.
A CNV tem documentos de arquivos públicos e de estatais que revelam outro tipo de colaboração de empresas com o regime: a barganha de informações sobre líderes grevistas. Há dados pessoais de funcionários que a Volkswagen enviou ao Dops, assim como fichas de registro de empregados da Monark, das Tintas Coral e da Tecnoforjas. Num dos documentos, de 1965, a Cobrasma, empresa de Osasco, “apresenta” ao Dops o seu chefe da segurança e solicita “os antecedentes nessa delegacia de elementos pertencentes ao nosso quadro de funcionários”. Em outro, um delegado do ABC paulista relata ao Dops que manteve “contato telefônico com a firma General Electric” e que, na conversa, lhe foi repassado o nome de um funcionário que “teria ligação com a Convergência Socialista”, uma organização trotskista. A Petrobras enviou à Comissão um acervo de mais de 426 rolos de microfilmes, nos quais foram encontradas fichas de Controle de Investigação Político-Social, que monitoravam atividades dos funcionários e que eram produzidas pela Divisão de Informações, a ASI/Petrobras.
Todas essas informações, assim como o depoimento do ex-escrivão do DOI-Codi, ficarão disponíveis no capítulo quatro do relatório final, provisoriamente chamado “Vítimas e grupos sociais vitimados”.
“Não tivemos uma grande descoberta, mas pequenas descobertas”, resumiu a cientista política Glenda Mezarobba, que assessora a Comissão, durante o seminário do Cebrap, em São Paulo, sobre o golpe de 64. Isoladamente, o grande feito da Comissão até agora foi o esclarecimento do caso Rubens Paiva. Ainda assim, os méritos são divididos com a Comissão da Verdade do Rio, que colheu um depoimento de vinte horas do coronel reformado Paulo Malhães, durante o qual ele admitiu ter participado da operação para ocultar o cadáver do ex-deputado, morto sob tortura após ser preso em 1971.
Houve também ações “midiáticas”, como diria Fonteles. Foi o caso da exumação do corpo do presidente João Goulart, visando apurar a suposta operação dos militares para assassiná-lo. Em 2012, a CNV também pôs em evidência a alteração no atestado de óbito de Vladimir Herzog. A nova versão do documento registra como causa da morte não o infame “suicídio”, mas “lesões e maus-tratos sofridos na dependência do II Exército de São Paulo (DOI-Codi)”. “O atestado ia mudar com ou sem comissão. A gente ia pegar os advogados e fazer”, disse-me Ivo Herzog.
O maior desafio dos conselheiros agora é evitar que o relatório final, com as recomendações aos poderes públicos, resulte num documento enorme e repetitivo, que pouco acrescente às três produções que são referências sobre o período: Brasil: Nunca Mais, coordenado por dom Paulo Evaristo Arns, de 1985; o Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos a Partir de 1964, editado em 1995 e atualizado pelos familiares dos militantes; e o Direito à Memória e à Verdade, da Secretaria dos Direitos Humanos, de 2007. No momento, o principal motivo de atrito entre os conselheiros gira em torno de quanto cada um poderá escrever do relatório – Dallari, que coordena o documento, quis impor limites.
Advogado especialista em direito internacional, Pedro Dallari foi vereador, deputado estadual e secretário de governo de Luiza Erundina (1989–92). Hoje é filiado ao PSB de Eduardo Campos. Em pouco mais de uma hora de conversa, ele destacou três vezes sua experiência como político, o que lhe daria condições de enxergar de maneira realista a extensão do relatório final da Comissão da Verdade.
Aos 55 anos, alto, rosto quadrado, cabelo liso e penteado para o lado, Dallari poderia passar por irmão do Sr. Incrível, personagem do desenho animado da Pixar. Num discurso que tempera pragmatismo com jargões administrativos, ele minimiza o mérito das recomendações finais: “Embora importantes, as recomendações são opiniões, sugestões. O que será determinante é a consistência do relato. Esse é o core business.” Para Dallari, “mais do que isso” a Comissão não pode fazer. “Não acredito que opiniões movam a história. Acho que fatos movem a história. Não será a opinião minha, a do doutor Paulo Sérgio, a do doutor José Carlos Dias, a da doutora Rosa, a do doutor Zé Paulo, a da querida professora Maria Rita que vão fazer com que todo mundo diga: ‘Aaaaaaaah!’.” E arrematou: “Não somos um conselho de sábios.”
O procurador Marlon Weichert discorda frontalmente. Para ele, a Comissão deveria dizer com todas as letras que crimes cometidos durante a ditadura são imprescritíveis, e que a Lei de Anistia deveria ser revista. “Não me parece crível que a Comissão da Verdade, uma instituição criada pelo governo para analisar a violação aos direitos humanos, possa fazer um relatório contra tudo o que se diz sobre direitos humanos no direito internacional. Corre-se o risco de o relatório ser uma obra monumental incapaz de gerar discussão por mais de uma ou duas semanas.”
Weichert começou a atuar na área em 1999, quando chegou às suas mãos uma representação de familiares que reclamavam da demora na identificação das ossadas de Perus, Zona Norte de São Paulo, onde militantes foram enterrados como indigentes. A vala foi aberta em 1990 e, a despeito do esforço do Ministério Público – que processou os governos estadual e federal para que fosse feita a identificação das 1 049 ossadas –, até agora o processo pouco andou. Nesse período, os ossos foram analisados por diferentes equipes de antropologia forense, ficaram trancafiados em armários e chegaram a ser danificados devido a uma inundação num laboratório de Campinas.
“É terrível. Quase todas as mães já morreram. Agora são os irmãos e os filhos que pedem a identificação de parentes”, afirmou o procurador.
Elzita Santa Cruz Oliveira procura notícias do filho Fernando desde 1974. Em outubro de 2013, ela completou 100 anos. Fernando, ex-militante da APML (Ação Popular Marxista-Leninista, nome adotado pela AP a partir de 1971), desapareceu aos 26 anos, depois de encontrar um amigo em Copacabana. Ao sair, avisou que, se não voltasse, é porque teria sido preso. Os dois nunca mais foram vistos.
Elzita chegou a ir ao DOI-Codi, onde funcionários do major Ustra receberam de suas mãos roupas e pertences pessoais para encaminhar ao filho. Depois, disseram que foi um engano, que ele não havia passado por lá. Ela viveu anos na mesma casa, em Olinda, Pernambuco, conservando o mesmo número de telefone, na expectativa de que Fernando pudesse aparecer. Procurou o filho em São Paulo, no Rio, na Argentina. Escreveu artigos em jornais, cartas para presidentes. Recebeu todo tipo de informação. Um general lhe disse que Fernando tinha fugido do país. Outro militar, que ele estava num manicômio. Com o tempo, ela perdeu a esperança de encontrá-lo vivo. Começou a procurar o corpo. Recebeu a informação de que o filho havia sido esquartejado e jogado no mar.
Em 2012, o ex-delegado Cláudio Guerra, do Dops, deu depoimento para um livro no qual sustenta que Fernando estava entre os dez militantes que, mortos em tortura, foram incinerados nos fornos da usina de açúcar Cambahyba, no Rio, que pertencia ao empresário Heli Ribeiro Gomes, ex-vice-governador do Estado. A família relutou em contar para Elzita, mas depois concluiu que ela, após tanto tempo de busca, tinha o direito de saber. Marcaram um jantar. Convidaram uma médica por precaução. Contaram a história. “Isto já está provado?” Responderam-lhe que não. “Então vamos jantar. Já passamos por muitas dessas.”
No começo de março, Elzita compareceu a um evento no Recife sobre os cinquenta anos do golpe. “Antes de morrer, quero fazer o enterro do meu filho”, disse, com uma rosa na mão. Durante as décadas de espera, Elzita costuma recitar os mesmos versos – diz que aprendeu na escola e que falam de uma mãe cujo filho foi para a Guerra do Paraguai, mas os irmãos de Fernando desconfiam que ela mesma os escreveu: “Passam-se os anos, e o véu do esquecimento/Baixando sobre as coisas, tudo apaga/Menos da mãe, no triste isolamento, a saudade que o coração lhe esmaga.”
Em quase dois anos de atuação, a Comissão da Verdade não descobriu o paradeiro de um único corpo dos 136 desaparecidos políticos oficialmente reconhecidos pelo Estado.