A vida em três linhas
O vaivém entre jornalismo e literatura está tanto no estilo de Fénéon, que flerta com o caos cotidiano e com o humor glacial
Félix Fénéon e Samuel Titan Jr. | Edição 19, Abril 2008
Não bastassem as lâmpadas elétricas de Thomas Edison e o metrô, a passagem do século XIX para o XX viu também proliferar na Europa o atentado político. De preferência, a bomba: assim morreu o tsar Alexandre II, em 1881. Por vezes, a faca, instrumento da morte do presidente francês Sadi Carnot, em 1894. Se não, a tiro, método escolhido para dar cabo do arquiduque Francisco Ferdinando, em 1914. Numa dessas ocasiões, uma bomba explodiu no restaurante do Hotel Foyot, em frente ao Palácio de Luxemburgo, sede do Senado francês.
Na falta de provas mais tangíveis, a polícia foi atrás dos suspeitos de sempre e encenou um processo-espetáculo contra um colorido grupo de trinta anarquistas. Afinal, um deles fora visto conversando com um militante atrás de uma lâmpada a gás. Diante de tal evidência incriminatória, o acusado perguntou durante o julgamento: “Mas, senhor presidente, qual lado de uma lâmpada é o lado de trás?”
O autor da pergunta chamava-se Félix Fénéon. Nascera em Turim, em 1861, passara a infância na Borgonha e, por treze anos, fora um funcionário modelar do Ministério da Guerra, em Paris. Ao mesmo tempo, colaborava com diversas revistas de agitação estética e política, freqüentava os saraus de Mallarmé, publicava poemas de Jules Laforgue e Lautréamont e, por fim, foi o primeiro editor das Iluminações, de Rimbaud.
Ainda que tenha sido inocentado, o processo de 1894 pôs fim à sua vida dupla. Fénéon virou jornalista, primeiro como colaborador, e logo em seguida diretor, da Revue Blanche, a mais importante na vida artística parisiense. Nela, Fénéon publicou Marcel Proust e Alfred Jarry, Marcel Schwob e Paul Claudel. André Gide cuidava da coluna de livros e Claude Debussy respondia pela crítica musical. Com o fechamento da Revue Blanche, em 1903, Fénéon foi ser repórter do Le Figaro e, em 1906, redator do jornal Le Matin.
Uma de suas atribuições era cuidar da seção de faits divers – a crônica miúda, quase sempre libidinosa ou violenta, do cotidiano francês. Trabalho pouco nobre, relegado aos menos graduados, ao qual Fénéon se dedicou com afinco, colhendo nas cartas dos leitores e nos despachos das agências noticiosas o material para as suas Nouvelles en Trois Lignes. Ao longo de 1906, publicou 1 220 dessas notas – sempre com a mesma precisão lapidar e desconcertante, e sempre sem assinatura. A autoria jamais seria conhecida não fosse a iniciativa de Camille Plateel, companheira de Fénéon, que as reuniu e conservou num álbum de recortes.
A partir de 1908, ele passou a trabalhar na galeria Bernheim-Jeune e, durante quatro anos, dirigiu as Éditions de la Sirène. Em 1924, sentindo-se, como disse, “maduro para o ócio”, Fénéon saiu da galeria e praticamente deixou de escrever. Morreu em fevereiro de 1944, sob a ocupação. Na mesa-de-cabeceira de seu leito de morte, havia um exemplar de A Jovem Parca, de Paul Valéry, com as aliterações sublinhadas.
Reunidas, suas notas para a seção de faits divers formam uma “Comédia Humana” em parcelas diárias. Elas fecham um círculo de intercâmbio entre o jornal e o romance que se iniciara no século anterior, quando Balzac introduziu jornalistas no elenco de seus romances e Flaubert foi à seção de faits divers para colher o argumento de Madame Bovary. O vaivém entre jornalismo e literatura se deixa ver tanto no estilo, que flerta a um só tempo com o caos cotidiano e com o humor glacial de Bouvard e Pécuchet, como na ambigüidade do título, que pode significar “notícias em três linhas” ou “contos em três linhas” – e que, talvez, valesse a pena traduzir por um falso cognato de gosto melodramático e televisivo: Novelas em Três Linhas. [Samuel Titan Jr.]
Félix Fénéon (1861–1944), jornalista e crítico de arte francês, foi editor da Revue Blanche.
Professor de literatura na USP