ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2007
A vida sem grades
Um astro global à vontade no Leblon
Marcos Sá Corrêa | Edição 9, Junho 2007
A vantagem do Simoger sobre outros prédios cenográficos é que ali, entre um capítulo e outro de alguma novela da Globo, a vida não pára de imitar o bairro que havia no Leblon meio século atrás.
O sólido edifício de cinco andares, com quatro apartamentos de 160 metros quadrados por andar, tem mármore travertino no chão da entrada e, na portaria, um funcionário chamado Manuel Alves, de 63 anos, no prédio desde que chegou ao Rio de Janeiro, vindo de Campos, no norte fluminense, em 1953. A amendoeira em frente foi ele quem plantou. O Simoger mudou pouco nesse meio século. Não entrou na moda dos circuitos internos de TV nem na onda de botar grade na calçada. Continuando fiel a si mesmo, ficou diferente de tudo o que há em volta naquele trecho da rua Aristides Espínola, a duas quadras da praia. E, singular até no nome, feito com sílabas de Simão e Rogério, seus construtores, virou típico. É o edifício que mais se vê no Leblon – isto é, quando se vê o Leblon pelas lentes da Globo.
O verdadeiro endereço do Simoger é a década de 50. Na época, lembra Manuel Alves, afora as casas térreas e os terrenos baldios, só havia naqueles ermos prédios de apartamentos que hoje pareceriam estranhíssimos: davam diretamente para a calçada. O Simoger inaugurou nas redondezas a era dos pilotis, assim que os pilotis, regulamentados em 1951 por decreto municipal, começaram a anunciar a expansão do modernismo. A Aristides Espínola era ainda de paralelepípedos, desconjuntados pelos trilhos do bonde que, de Ipanema à Gávea, fazia a volta bem ali na esquina. Aos domingos, os bondes levavam Manuel Alves para o melhor programa da cidade, que, no caso, não era ir à praia. Era “andar de bonde olhando a paisagem”.
O Simoger hoje parece atarracado, ultrapassado pelos imóveis mais novos, que foram subindo junto com as decisões municipais que regulam, sempre para cima, o gabarito do bairro. Ele destoa num Rio de Janeiro onde as fachadas afundaram em barras de ferro, portões automáticos, cercas eletrificadas, alarmes de garagem, interfones e outros aparatos da arquitetura da segurança. Sua única proteção é uma corrente de ferro, dessas de puxar âncora em navio. Entra-se no hall do elevador por duas portas de madeira. Sob os pilotis, o vestíbulo parece vulnerável. Outros prédios da Aristides Espínola, com todo o engenho defensivo, sofreram tentativas recentes de invasão. Ele, tão devassado, escapou incólume.
O Simoger pode ser um sinal de que o Leblon talvez não seja tão perigoso quanto pensam seus vizinhos. Só oito assaltos a residências foram registrados, em 2005, na delegacia do bairro. No ano passado, o número caiu para seis. Seus índices de criminalidade são equivalentes aos da cidade serrana de Petrópolis. E, de janeiro para cá, a vigilância sobre a Aristides Espínola deve ter melhorado: um morador da rua, Sérgio Cabral Filho, tomou posse no governo do estado anunciando que não pretendia mudar de endereço.
Nas novelas, o Simoger faz o papel de Leblon real num Rio de Janeiro de cariocas fictícios. Para gravar naquele oásis de pilotis e usá-lo como cenário, a Globo paga aluguel. A emissora tornou a entrada e a fachada do prédio conhecidas, pelo menos de vista, no Brasil inteiro e até fora do país. E ajudou a popularizar, no condomínio, o decreto municipal nº 20 300, de 2001, que pôs o Simoger no rol dos 218 imóveis tombados no Leblon em nome da proteção ao “ambiente cultural”.
No Simoger, se dependesse do secretário extraordinário André Zambelli, encarregado pela prefeitura de zelar pelo ambiente cultural, até Manuel Alves seria tombado como “patrimônio imaterial, até porque combina com a arquitetura, que não segrega”. O veterano porteiro é do tempo em que “as pessoas batiam palma na entrada dos edifícios para chamar alguém” e por isso, diz Zambelli, “faz a ligação entre a história do prédio e a história da rua”. Donos de imóveis tombados reclamam. Pelo decreto, eles podem mudar os apartamentos por dentro, mas, por fora, devem deixá-los com a cara, a altura e a metragem que sempre tiveram. Em troca, ganham isenção de IPTU, taxa de conservação e ISS de obras. Para quem teve projetos imobiliários abortados pelo tombamento, parece pouco.
O Simoger se conformou. Segundo Christian Negri, o síndico, ex-diretor de uma multinacional, e morador da cobertura desde 1990, o decreto o ajudou a barrar um projeto de “moradores mais jovens”, que pretendiam trocar “as janelas de madeira por esquadrias de plástico”. Na França, de onde veio esse brasileiro naturalizado, a legislação para conservar o patrimônio histórico pegou no século XIX. Aqui, Negri ainda estranha a preferência nacional por botar abaixo tudo o que pareça velho. Mas no Simoger a maioria dos condôminos “teve o bom senso e o bom gosto de dispensar a grade”, para não descaracterizar o prédio, e de conservar Manuel Alves, o que também tem lá seu preço. “Um Manuel custa duas vezes um porteiro normal”, afirma Negri. “A folha pesa no orçamento do condomínio, mas vale muito a pena. Deixo minha carteira na mão dele sem medo.”
O Simoger não pretende mudar. Se ficar igual a todos os outros prédios – ou seja, cercado – despencará imediatamente da sua posição de astro global. Pior, ficará feio.
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