ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
A vitória invisível
O alagoano que ensina uma antiga arte marcial chinesa
Sofia Nestrovski | Edição 190, Julho 2022
Às três da manhã do dia 18 de junho, sábado, Givanildo Rodrigues de Paula, mais conhecido como Gil, estava a postos na instituição onde dá aulas de taiji quan (ou tai chi chuan, embora essa grafia esteja ultrapassada), o centro de cultura oriental Shàoshèng, no bairro de Santa Cecília, em São Paulo. De lá, o professor e dez alunos – eu era um deles – partiram em um ônibus fretado para uma viagem de quatro horas, madrugada adentro, até Lençóis Paulista, a 280 km da capital, onde aconteceria o 33º Campeonato Paulista de Kung Fu. Estavam acompanhados de treze praticantes de kung fu estilo louva-a-deus, do mestre deles e os respectivos instrutores.
Para as competições, o grupo levava seus uniformes, toalhas para enxugar o suor, casacos para o frio da estrada, espadas, facões, leques e lanças. Era a primeira vez que a Chenjiagou Brasil, equipe de taiji do centro Shàoshèng, participava do Campeonato Paulista. Seria a única representante do estilo Chen, o mais tradicional, a raiz do que se conhece hoje por taiji.
Natural de Lagoa da Canoa, no interior de Alagoas (o mesmo município em que Hermeto Pascoal foi criado), Gil tem 46 anos e é uma das quatro pessoas no Ocidente – e a única no Brasil – que recebeu o título de discípulo do mestre Chen Ziqiang, 20ª geração da família que criou o taiji no século XVII.
Como muito do que vem do outro lado do mundo, o taiji não é tão milenar quanto parece. Não deixa, porém, de ser uma arte alicerçada em tradições. A cerimônia de discipulado, à qual poucos têm acesso, prevê a inclusão do discípulo na árvore genealógica da família marcial, que inclui não apenas os descendentes sanguíneos, mas também os que receberam o bastão da tradição. No caso de Gil, ficou registrada na genealogia a alcunha que ganhou de seus colegas chineses: Dahei (大黑), combinação de “grande” ou “alto” com “preto”.
As semanas que antecedem um campeonato são preenchidas por treinos intensos e, para alguns de nós, dietas restritivas. A primeira etapa da competição começa às sete da manhã, com a pesagem, que divide os lutadores por gênero, idade e peso. Passado esse momento, o reencontro com o açúcar já pode ser considerado uma primeira vitória – o que talvez explique por que levamos até Lençóis Paulista um contêiner de plástico de 30 litros cheio de bolos fatiados.
O dia se estende longamente depois da chegada. Pela manhã, as 31 delegações vão enchendo o ginásio. Vendedores se estabelecem nas arquibancadas logo abarrotadas de atletas e torcedores, oferecendo parafernálias marciais – armas trazidas da China, incensos, camisetas com a cara do Bruce Lee estampada. Até dez da noite, há disputas simultâneas acontecendo em áreas diferentes. São cerca de 540 atletas, que se revezam nas mais de 650 apresentações e lutas marcadas para acontecer. Nos intervalos, há muito tempo de espera – às vezes horas inteiras –, que pode ser gasto assistindo aos colegas, cochilando em um canto, ou, enfim, comendo. Ao ouvir seu nome sendo chamado nas caixas de som, é preciso, de prontidão, convocar o ânimo, aquecer o corpo e entrar em cena.
No dia do campeonato, pouco antes de as disputas começarem, Gil reuniu seus alunos para a leitura em voz alta de uma carta que havia escrito para nós. Abria dizendo: “Este ano celebro 33 anos de reconexão, estudo e prática de cultura chinesa, sobretudo da arte do taiji quan” – fato que ele então descreve como “muito doido”: tudo isso coube a “um menino preto, nordestino do interior de Alagoas”.
Em sua carta, Gil agradece a cada um dos alunos ali presentes. Nenhum de nós é alagoano nem, muito menos, chinês. No entanto, a prática do taiji cria outro pertencimento: “Podem acreditar numa coisa, neste momento todos os ancestrais estão celebrando e vibrando muito por nós.” Já perto do final do evento, William Pense, diretor do departamento que cuida do taiji na Federação Paulista de Kung Fu, declarou-se emocionado com o retorno de um estilo tradicional ao campeonato.
O taiji é considerado uma arte marcial interna, diferente do kung fu, que é externa. Em comum, ambas são pensadas para o combate – na hora de ir ao ringue, as duas funcionam. No caso da primeira, porém, muito do esforço do praticante é imperceptível do lado de fora, e tem a ver com um aumento de concentração e um alargamento das percepções sobre si mesmo e sobre o outro. O fato de o trabalho – tanto físico como mental – ser nítido para um atleta, mas invisível para quem o observa, abre espaço para que qualquer coisa que se tente falar a respeito dessa arte soe como mistificação. Durante a luta (chamada tuishou), seria possível adivinhar como o oponente vai se mover antes mesmo de ele dar qualquer pista. Em um treino anterior ao campeonato, Gil comentou com os alunos que, no limite, é possível saber o que o outro está pensando. Mas sobre isso é melhor calar. E Gil não diz nada, apenas sorri.
Todos os atletas da Chenjiagou Brasil inscritos na categoria de tuishou ganharam por w.o. Competiram apenas nas modalidades de apresentação individual, em que se demonstra uma espécie de coreografia marcial, ensaiada à exaustão e avaliada por uma bancada de árbitros. Apesar de haver outros inscritos para a modalidade de combate, não foi o bastante para formar duplas dentro das categorias de gênero, idade e peso. “Mas toda competição, no fundo, é contra você mesmo”, resumiu a atleta Helga Dias, uma das medalhistas sem luta. Como os seus colegas, ela está automaticamente classificada para a próxima etapa, o Campeonato Nacional, que ocorre em outubro deste ano, em Goiânia. Seguimos na expectativa de haver mais gente espalhada pelo país disposta a lutar taiji.
Os treinos constantes instauram uma espécie de vida paralela para nós: estamos lá, praticando diariamente ou quase, mas no horário comercial continuamos com nossas profissões – as mais variadas –, e os uniformes vão para a máquina de lavar. O taiji do estilo Chen não padroniza a aparência dos corpos. Não existe algo análogo a, por exemplo, os ombros de um nadador – no máximo, percebe-se certo jeito de andar, mais enraizado no chão. A sensação, assim, é de partilhar um segredo com os colegas de treino. E vale para as artes marciais o que o pianista Glenn Gould disse sobre a música: “A finalidade da arte não é a liberação momentânea de uma injeção de adrenalina, mas sim a gradativa construção, ao longo de uma vida inteira, de um estado de maravilhamento e serenidade.” Mesmo em um campeonato.
Pelas nove da noite, faltando pouco para o término oficial do evento, decidimos encerrar o dia e voltamos ao ônibus para encarar a viagem de retorno. Na estrada, dava para ouvir os colegas do kung fu trocarem, a meia-voz, impressões sobre o torneio. E, finalmente, luzes apagadas, pegamos no sono.