Para Hebe, entre Serra, Dirceu, Dilma e o general Costa e Silva não parece haver diferença ILUSTRAÇÃO: CAIO BORGES_ESTÚDIO ONZE_2011
A volta da madrinha
Hebe Camargo teria mudado desde que ficou famosa, em 1965? O Brasil e a televisão mudaram, mas a modernização conservadora não eliminou alguns aspectos arcaicos da sociedade. O público preferencial do programa – donas de casa de classe média – não comprovaria a persistência dos valores desse segmento?
Eduardo Escorel | Edição 55, Abril 2011
Beijo técnico de tirar o fôlego, seguido de sonoro palavrão. Foi assim que Hebe Camargo concluiu a primeira entrevista do seu programa de estreia na Rede TV!, depois de ter passado por cima das mesas circulares em que convidados vestidos a rigor – mulheres de vestido longo, homens de smoking – riam e aplaudiam à meia-luz. Em destaque, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, acompanhado da esposa, e José Serra.
Como sempre na televisão, o programa começou de fato com os comerciais – fabricantes de leite condensado, móveis e tintura para cabelo, além de banco oferecendo empréstimos a serem descontados em folha. Além desses, outros comerciais e ações de merchandising pontuaram o programa, sem necessidade dos intervalos habituais, graças ao talento de Hebe como garota-propaganda. Apresentados sem interrupções, números musicais, entrevistas, promoção e publicidade acabam não se diferenciando uns dos outros.
Ao som de El Día que Me Quieras, Hebe cruzou o salão suspensa numa periclitante gaiola metálica, vestida até os pés de branco angelical, com apliques bordados e paetês assegurando brilhos, passou por um enorme lustre decorativo e foi recebida no palco pelo cantor e ator Daniel Boaventura, a tempo de um dueto ao final da música. Em tradução livre, os versos falam “na noite em que tu me quiseres, no céu azul as estrelas ciumentas verão o casal passar, e um raio misterioso se aninhará no cabelo do pirilampo curioso, fazendo-o perceber que ela é o consolo dele”.
Momento “inesquecível”, declarou Hebe Camargo, antes de assumir outra personagem – a da entrevistadora inconveniente, empenhada em constranger os convidados com perguntas maliciosas. Ela e o cantor travaram o seguinte diálogo:
“Você encontrou alguém ou algumas?”
“Você sempre consegue me deixar sem graça, Hebe.”
“Tá sem graça, por quê?”
“Eu sou uma pessoa tímida.”
“No quarto, você também é tímido?”
Ao cantor restou dar sonora gargalhada, antes de ser mandado para o sofá.
Nesse ambiente, a presença de Alckmin e Serra provocava estranheza. Na segunda vez em que foram focalizados pela câmera, o sorriso do governador já sugeria constrangimento, enquanto Serra mantinha expressão impassível. Quem não cabia em si de satisfação era José Dirceu, o único a quem a apresentadora incentivou os convidados a aplaudirem, numa espécie de bênção simbólica.
Depois de quase uma hora, as câmeras mostraram Serra levantando e saindo. Teria finalmente caído em si, percebendo o inusitado da sua presença no que não passou de um longo show de aquecimento para a entrada em cena da estrela da noite, a presidenta Dilma Rousseff?
Em 1969, Hebe Camargo mostrou, brincando, ao repórter da revista Realidade, Hamilton Ribeiro, um diploma para comprovar não ter só o curso primário. Nele estava escrito: “Homenagem a Hebe Camargo, pela colaboração prestada na divulgação do primeiro aniversário do governo do presidente Costa e Silva.”
Para Hebe Camargo, uma ex-malufista, entre Alckmin, Serra, Dirceu, Dilma e o general-presidente Costa e Silva não parece haver nenhuma diferença.
A entrevista da presidenta Dilma durou mais de trinta minutos, dando impressão de que o objetivo do programa foi promover o governo federal e suas ações para diminuir a pobreza e distribuir remédios, além das campanhas de prevenção da hipertensão e diabetes e de combate ao crack.
Ao elogiar a beleza e a simplicidade do Palácio da Alvorada, Dilma fez crítica certeira, ainda que involuntária, ao programa de estreia de Hebe – postiço e exagerado. A inclusão de segmentos gravados em Las Vegas promovendo empresa de tevê por assinatura, com direito a um cover de Elvis Presley e um Roberto Carlos fictício, comprova a overdose. Nem Glauber Rocha, em seu momento de maior inspiração pré-tropicalista, poderia imaginar um elenco tão eclético de políticos, empresários, artistas e figurantes.
Nesse grupo, Paulo Coelho não poderia faltar. O holograma reproduzindo a figura do escritor, transmitido da Suíça, foi a forma ideal para a entrevista – a imagem tridimensional translúcida sugere um espaço vazio, metáfora adequada para o que Paulo Coelho tem a dizer. Intimidada talvez pela tecnologia, assim como pela residência oficial da presidenta, a apresentadora assumiu outro papel – o de tiete deslumbrada – diante do autor consagrado e de Dilma.
O Carnaval coroou o ecletismo. No camarote de um fabricante de cerveja, Hebe recebeu os convidados vestida, como eles, com a camiseta do patrocinador, passando a interpretar a personagem da beijoqueira, e distribuindo selinhos em celebridades de diferentes quilates – da musa da Copa do Mundo, a torcedora paraguaia Larissa Riquelme, ao recém-aposentado Ronaldo; e também a um surpreso Jude Law, cumprindo feliz da vida o contrato de 500 mil reais para assistir ao Carnaval e ser aplaudido por Hebe ao dizer que está solteiro.
Hebe Camargo continuaria a mesma, ou teria mudado desde que ficou famosa, em 1965, no papel de dona de casa exemplar? Naquela época, recebia seus convidados no cenário que reproduzia a sala de visita de uma casa de classe média, diante de câmeras estáticas.
O país e a televisão mudaram nesses 46 anos. Mas a modernização conservadora ocorrida não eliminou alguns aspectos arcaicos da sociedade nacional. O público preferencial do programa – donas de casa de classe média – não comprovaria a persistência dos valores desse segmento?
A queda de audiência dos programas de auditório dominicais, inclusive o de Fausto Silva – o mais bem-sucedido do gênero –, confirma, por outro lado, a ocorrência de alterações no perfil dos telespectadores. Na estreia, a audiência média do programa de Hebe foi de 4.2, enquanto a Globo, no mesmo horário, chegou a 23 pontos. No segundo programa, porém, a audiência caiu à metade. Como na mitologia clássica Hebe tem o privilégio da eterna juventude, convém esperar para ver se estamos testemunhando mais um revival ou uma despedida melancólica.
Em reportagem da revista Intervalo, publicada em 1971, reproduzida em A Noite da Madrinha, análise sociológica do programa escrita por Sergio Miceli, Hebe declarou que era uma “calúnia dessa gente” considerá-la “uma atriz”. E que era absurdo quererem ver suas participações em especiais humorísticos da Record “como se estivessem julgando uma Cacilda Becker, uma Fernanda Montenegro”. “Será que eles não entendem que tudo isso é só uma brincadeira?”, concluiu antes de dar uma de suas gargalhadas características.
Os variados papéis que Hebe Camargo representa em seu programa não deixam dúvida de que, à sua maneira, ela sempre foi e continua a ser uma atriz, embora pareça não saber que brincadeira é coisa séria.