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    ILUSTRAÇÃO: A GAVETA DE MEMÓRIAS_CAIO BORGES_2016

autoficção

A vulgaridade silenciosa, invisível

Detestaria ter uma família onde só houvesse gente estupidamente sã, insuportavelmente feliz

Ana Cássia Rebelo | Edição 122, Novembro 2016

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SEXTA-FEIRA

Os mais novos estão com o pai. Não sei por onde anda o mais velho. Arrumei a casa ao som das Variações Goldberg. Desde que a Graça deixou de vir (não tenho como pagar-lhe o ordenado), a casa enche-se de lixo. Vejo sujeira em toda parte, manchas nos tapetes, bolas de poeira nos cantos, sarro nas louças sanitárias, gordura nos azulejos, pó nos livros, nódoas nas colchas, e assusto-me. A sujeira é um sinal do meu desnorte. Detesto sujeira. Consegui limpar os quartos, os banheiros e a cozinha a tempo de, durante a 22ª variação, a minha preferida, parar para fumar um cigarro. Escrevi um pequeno texto baseado na viúva Fidélia do Machado de Assis e saí para comprar o jantar: um pacote de batatas fritas, dois pãezinhos e uma garrafa pequena de vinho branco. Voltei a casa. Troquei as Variações Goldberg por Stabat Mater de Pergolesi. Abri um pãozinho, que recheei de batatas fritas, e enchi um copo de vinho morno. Senti-me imediatamente cheia de paz. Talvez Deus me habite. O gato veio roçar-se nas minhas pernas. Peguei-o ao colo e sussurrei “amorzinho querido”, exatamente como fazia aos meus filhos quando eram pequenos.

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Reportagens apuradas com tempo largo e escritas com zelo para quem gosta de ler: piauí, dona do próprio nariz

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