Quem malha exerce uma atividade de autorregulação, do tipo que se costuma reservar ao âmbito privado: dormir, defecar, tomar banho. Mas os adeptos da ginástica anseiam por companhia FOTO: NATIONAL MUSEUM OF SCIENCE AND TECHNOLOGY_SUÉCIA
Abaixo a academia
O que a malhação tem feito com a nossa ideia de corpo
Mark Greif | Edição 127, Abril 2017
Se a novela Na Colônia Penal fosse escrita hoje, Kafka teria de falar de um daqueles aparelhos das academias de ginástica. Em vez de tatuar a sentença no corpo da vítima, a máquina inscreveria na carne diversas fileiras de números: x calorias, x quilômetros, x watts, x voltas.
A prática moderna do exercício físico permite que reconheçamos a máquina que opera dentro de nós. Não há nada como uma academia moderna para nos fazer acreditar que sentimos saudade da labuta nas fábricas. A alavanca da prensa de estampagem não comanda mais o trabalho. Com o advento da academia, porém, importamos para nosso lazer vestígios remanescentes de equipamentos industriais. Saímos do escritório, subimos na esteira rolante e corremos como se perseguidos por demônios. Enfiamos voluntariamente nossas pernas na prensa e submetemos nossos braços retesados à engrenagem. É crucial que os equipamentos sejam simples. Planos inclinados, pinos, alavancas, roldanas, travas, manivelas, cremalheiras e correias da máquina de musculação Nautilus ou dos equipamentos para exercícios aeróbicos põem à nossa disposição antigos estágios do progresso tecnológico, só que em miniatura. Os elementos são visíveis e inteligíveis, sabemos usá-los, mas não representam perigo para nós. Deslocados e neutralizados, constituem resquícios de uma necessidade que não precisa mais ser suprida com antevisão ou engenho. No passado, fazendeiros já recorriam a roldana, cabo e barra para erguer a viga do telhado; hoje, nós nos valemos dos mesmos meios para exercitar os músculos dorsais.
Neste nosso presente, com cérebros que supomos computadores, a imagem de um homem-máquina, seja ela a de Descartes ou a de La Mettrie, conserva um aspecto antigo e venerável, como um cartaz amarelado na parede de uma enfermaria. A pressão sanguínea é a componente hidráulica; a força, a mecânica; a alimentação fornece a combustão; os membros são as alavancas; as juntas, a articulação. O mundo dos exercícios físicos não faz nenhuma declaração conceitual notável, não afirma que somos homens e mulheres mecânicos. Isso nós já éramos, pelo menos do ponto de vista da ciência. Mas esse mundo, antes de mais nada, expressa a vontade de cada um de descobrir e regular no próprio corpo os processos semelhantes aos de uma máquina.
E nos lançamos a esse trabalho árduo sem nenhuma recompensa imediata, apenas porque desfrutamos da liberdade para fazê-lo. E é justamente esse tipo de liberdade que pode ser o bastante. As máquinas de fazer exercício nos oferecem o poder supremo de submeter nossos corpos à experimentação. Ocultamos nossas razões para encarar a difícil empreitada e, sem pensar, nós as substituímos por uma nova necessidade. Ninguém nos pergunta se queremos que nossa vida adentre o reino da malhação.
Exercitar-se não é uma escolha, mas algo que nos chega como um emissário proveniente do mundo dos processos biológicos. Pertence à alçada jurisdicional das obrigações da vida, só negligenciadas pelos indivíduos autodestrutivos. Nosso controverso futuro, diz-se, dependerá de genes modificados pela engenharia, de tomografias computadorizadas do cérebro, da neurociência e de raios laser. Sobre tudo isso temos debates ruidosos, públicos e estéreis – enquanto as mudanças históricas reais são alcançadas nos tapetes emborrachados de uma academia, ao som de uma bicicleta ergométrica e da engrenagem de um plano inclinado.
Na academia, vemos pessoas engajadas num processo biológico básico de autorregulação. Atividades semelhantes acontecem em âmbito privado. Uma pergunta que se coloca, então, é por que a prática do exercício físico não se restringe à esfera privada. Seu lugar poderia ser a nossa casa, que é onde se dão outros processos similares: comer, dormir, defecar, tomar banho, nos arrumar ou nos masturbar.
Quem malha vê o quê na parede espelhada da academia? Faz caretas associadas à dor, ao choro, ao orgasmo, a um tipo de esforço passível de demandar socorro imediato. Mas não esconde o rosto. Geme como se contorcesse os intestinos. Repete esforços terríveis, como se esfregasse o chão. Bufa, grita e se empenha. Veste traje apertado de lycra, mas desprovido de toda e qualquer forma. O vestuário revela a outros olhos o formato da genitália e os seios enfaixados e comprimidos, mas não admite o apelo sexual.
Embora a palavra “ginásio” venha do grego, nossos ginásios modernos – as academias – não estão imbuídos do mesmo espírito. Na Antiguidade, as práticas atléticas eram públicas e de caráter agonístico. Consistiam no treinamento de rapazes para embates igualmente públicos. O ginásio era mais parecido com aquilo que hoje conhecemos como uma academia de boxe – à diferença que era também o lugar em que homens adultos se reuniam para admirar os jovens mais bonitos e, à maneira grega, atuavam como seus mentores sexuais. O ginásio era o principal espaço da educação sistemática dos jovens, além do local em que os adultos debatiam informalmente, modelando a sociabilidade intelectual (apartada da política propriamente dita) que está na origem da filosofia ocidental. Sócrates passava boa parte do tempo em ginásios. Aristóteles deu início à sua escola filosófica no caminho de acesso a um ginásio.
Os métodos socráticos e peripatéticos encontrariam pouca acolhida numa academia moderna. O que nós, modernos, fazemos nesse ambiente é algo que pertencia à vida privada. Os gregos exerciam suas ações verdadeiramente privadas no chamado oikos: a esfera doméstica. Era lá que ocorriam todas as ações que davam sustentação à vida meramente biológica – que incluía o trabalho de manter a moradia e o corpo, plantar a comida e comê-la, ter filhos e alimentá-los. Hannah Arendt interpretou essa marcada distinção dos gregos entre as esferas doméstica e pública como símbolo de uma verdade de caráter geral: a de que é necessário manter longe da observação dos outros as ações que dão sustento à vida nua e crua. Uma esfera oculta, livre do escrutínio alheio, fornece o alicerce para a pessoa pública – alguém que dispõe de segurança suficiente na esfera privada para, com independência total, assumir os riscos da vida pública, pensar, contrariar a vontade dos outros e escolher por si próprio. Na privacidade do lar, apenas em companhia da família, a necessidade dominante e os apetites indizíveis poderiam encontrar satisfação no não pensamento e na dor de permanecer vivo.
Nossa academia mais se parece com um clube, um spa, só que ela não é um lugar de reunião de pessoas. É, ao contrário, o espaço atomizado em que se fazem aos olhos dos outros coisas outrora privadas, em que um corpo solitário age como se ainda estivesse em ambiente privado. As pessoas se submetem a tais contorcionismos para desfazer e refazer sua identidade, seu self; se os que observam não estão autorizados a aprovar, um certo “outro”, coletivo e imaginado, está. O exercício físico nas academias modernas conduz a biologia à companhia insocial de estranhos. Espera-se que os frequentadores coexistam, mas não se olhem muito de perto; que limpem o metal dos guidões e a borracha das esteiras como se não tivessem deixado nenhum vestígio. Assim como no elevador, espera-se que olhem apenas para a frente.
É como um castigo por nossa libertação. As formas mais onerosas da necessidade – a luta por comida ou contra a doença, sempre pela via do trabalho árduo – foram superadas. Pode ter sido ingênuo pensar que a nova liberdade humana nos levaria a uma sociedade do interesse público, como a Atenas de Péricles, ou do prazer pelo que existe, como no Jardim do Éden. Mas o verdadeiro resultado de uma sociedade que escolhe fazer das liberdades e dos lazeres privados sua principal substância tem sido bem mais inesperado. Esse resultado compõe-se de um conjunto de formas de autorregulação do corpo que põe os derradeiros vestígios de vida biológica sob os holofotes, na condição de atração social.
Os únicos equipamentos necessários e essenciais à malhação moderna são os números. Na academia ou na trilha de corrida, a tecnologia fundamental é a aritmética básica. Assim como se contam os pesos levantados, calculam-se também as distâncias percorridas, o tempo de exercício, os batimentos cardíacos.
Um teste simples para saber se uma atividade constitui ou não a moderna malhação é se perguntar se ela teria sentido sem contagem ou medição. (Nos esportes, os números são utilizados de outra forma: os placares são um meio de registrar a competição que ocorreu num encontro social.) Mesmo aqueles exercícios que dispensam o equipamento mecânico, como correr, não podem prescindir dos números.
Ao malhar, o indivíduo tem uma ideia de seu corpo como uma coleção de números representativos de suas capacidades. Outro local em que os números de um indivíduo adquirem status talismânico é o consultório médico. Há certa uniformidade entre os lugares aos quais se vai para malhar e aqueles em que as pessoas fazem exames para detectar doenças, passam por reparos e morrem. No consultório médico, no laboratório de análises e no hospital, ficamos à mercê de especialistas em contagens. Um técnico de laboratório de avental branco coleta uma amostra de sangue. Uma enfermeira aperta o braço do paciente para medir sua pressão, conecta-o ao aparelho do eletrocardiograma, faz medições básicas de altura e peso – jamais satisfatórias. Ela recompensa o paciente com os números óbvios da pressão sanguínea, do percentual de gordura corporal, da altura e do peso. A prancheta com essas medidas é, então, passada adiante. Por fim, o médico chega – um mecânico que veste o branco de um anjo e é arrogante como um patrão. Em linguagem técnica, que exacerba a expectativa e o medo, ele informa os números relativos ao colesterol (os dois tipos), aos glóbulos brancos, ao ferro, à imunidade, ao resultado do exame de urina – e assim por diante. Desnecessário lembrar que esses números estão relacionados à chance de o paciente sobreviver.
Como obtemos a coragem de existir como um conjunto de números? Recorrendo à academia ou à pista de corrida, as pessoas adquirem a liberdade ansiosa de fazer sua própria contagem. Isso pode propiciar um grande alívio. Afinal, aí estão os números que elas podem modificar. Podem transformar exercícios em experimentos que fazem com matéria a seu alcance: a gordura e os músculos de sua armadura exterior. Também esses números – é o que lhes garantem –, e não apenas as anotações feitas pelo médico, corresponderão a quanto tempo vão viver. Com força de vontade e suficiente disciplina, isto é, adequando-se rigorosamente a uma regra, elas vão mudar.
A academia parece um hospital de voluntários. Os pacientes também integram a equipe. Algumas máquinas nos submetem a trações das quais podemos escapar, ao passo que outras nos libertam da prisão de um aparelho para respiração artificial ao nos instruir a bombear o pulmão por conta própria, ao mesmo tempo que indicam os batimentos cardíacos num visor. Auxiliado por um amor pelas próprias dores, esse autoexame se transforma em hábito.
A curiosa compilação de números que conformam o indivíduo se transforma num aspecto de sua liberdade, às vezes o mais importante de todos, mais angustiante que seus pensamentos ou sonhos. Ele descobre os altos números que pode alcançar e quão imortal pode se tornar. Sim, porque ele vai viver para sempre. Em eterna manutenção.
A justificativa para toda essa obrigação à prática de exercícios é a saúde. Uma extensão daquela contagem típica dos exercícios confere um caráter econômico preciso à saúde: ela determina e antecipa quantos dias e horas vamos viver.
Hoje podemos de fato nos preservar por muito mais tempo. Os meios são confiáveis e baratos. A pressa de viver nossa vida mortal diminui. A tentação da preservação perpétua cresce. Preservamos o corpo vivo num estado otimizado. Não é que queiramos fazer alguma coisa com ele: agimos assim em prol do próprio bem-estar propiciado pela boa forma física eterna, a confiança e a segurança. Acumulamos esse capital para ganhar juros e, enquanto isso, subsistimos no cotidiano com migalhas de pão. Mas ninguém herdará nossa boa saúde quando nos formos. As horas dispendidas em manutenção da vida desaparecem conosco.
Segundo nossa concepção atual, quem não se exercita está se suicidando lentamente. Não assume a responsabilidade da própria vida nem trabalha com o vigor necessário para prevenir sua morte. Portanto, começamos a pensar que quem age assim causa a própria morte.
Quando um dos conhecidos de nossos pais morre, pode ser um consolo lembrar que o sujeito em questão não comia bem ou não corria. Aquele que não pratica exercícios se junta a outros desafortunados que, socialmente, já descartamos. A vida deles vale uma porcentagem da nossa, e isso por negligência deles próprios. Seu valor fica comprometido pela incapacidade de garantir para si o maior tempo possível de existência física. Quem não se exercita junta-se a todos os inadequados: os lentos, os mais velhos, os pobres e os desesperançados. “Vocês não querem ‘viver’?”, perguntamos. E não existe resposta capaz de nos satisfazer.
Pense numa sociedade que acredita que os sentidos possam se desgastar. A visão piora quanto mais vividamente vemos as coisas; a audição declina quanto mais sons intensos ouvimos. É inevitável que tal crença transborde para outros aspectos da vida, modificando o modo como vivemos. Se é nisso que acreditamos, vamos gastar nossos sentidos com as cores mais saturadas, os sons mais inebriantes? Ou vamos nos recusar a nos mover, os olhos fechados, os ouvidos tapados, poupando as reservas de sentido de que ainda dispomos? Acreditamos que nossa vida cotidiana não está sendo vivida, mas consumida pela idade. E vivemos o tempo todo em desespero. Das desesperadas satisfações materialistas de uma sociedade hedonista que exige bem-estar e felicidade imediatos, recuamos rumo à economia desesperada da saúde, à caça de maiores felicidades proteladas e bem-estares adiados, o que fazemos aplicando a melhor parte de nossa vida na preservação da própria vida.
Do ponto de vista da estatística, o exercício de fato nos inclui em grupos que morrem com menos frequência em determinadas idades. Malhar aumenta nossas chances. Essa é a principal explicação racional que justifica os bilhões de horas na academia. A verdade, porém, é que ser saudável também faz com que a gente se sinta radicalmente diferente. Para um segmento de seus praticantes mais ardentes, a forma contemporânea do exercício é, em grande parte, a busca de certos estados emocionais. Mais comum que a figura do jovem malhador que sofre ao não malhar por um ou dois dias é a do jovem fisicamente infeliz pela falta de exercício. Mas talvez o fenômeno mais comum seja o do indivíduo que, consigo próprio (quando não em voz alta), a cada momento julga seu estado absolutamente saudável baseado no que comeu, bebeu, em quanto e quando se exercitou, nos sentimentos que experimentou durante a prática e se a fez de acordo com a recomendação ou advertência mais recente ouvida no noticiário. As pessoas se sentem mais saudáveis mesmo quando seu corpo não apresenta nenhuma diferença perceptível. Ou o corpo começa, sim, a parecer diferente – mais leve, mais forte, mais eficiente, menos intoxicado –, mas de uma maneira que excede as possíveis consequências dos exercícios praticados. Essa pode ser uma “medicalização da vida humana” que, do ponto de vista psíquico, talvez conte mais do que qualquer coisa que o médico possa fazer com seus exames.
A justificativa menos respeitável, mas ainda mais poderosa, para a malhação cotidiana é a magreza – mais do que a responsabilidade honrosa de manter a saúde do corpo-máquina e seu lastro de capital, é preciso disciplinar uma vontade débil.
As mulheres despem seus corpos de camadas de gordura para exibir uma forma desprovida do excesso normal de carne. Apesar da nova ênfase na mulher atlética, a tarefa da mulher que malha permanece sendo a da emaciação. Os homens também emagrecem, mas, mais importante que isso, ressaltam certos músculos, inchando aqueles mais importantes no bíceps, no peito e nas coxas. Despertam uma musculatura incipiente que nenhum tipo de trabalho ou atividade habitual poderia ressaltar em sua totalidade. A tarefa dos homens é, pois, de expansão e descoberta. Já a emaciação das mulheres provoca caretas e apelidos lastimáveis: “Radiografias ambulantes”, por exemplo (nas palavras de Tom Wolfe), aquelas que eram pele e osso. No homem, a orgulhosa expansão e descoberta de seis músculos da parte inferior do abdome, reminiscentes do exoesqueleto segmentado de um inseto, também ganha apelido pejorativo e vira piada: Six-pack, a embalagem com seis garrafas de cerveja, que coloca a malhação no mesmo nível de masculinidade do ato de beber.
Ao contrário do modelo de saúde que parece obter um ganho contínuo na mortalidade, na magreza e na expansão muscular, operam numa economia cruel da perda acelerada. A mortalidade teve início quando o primeiro homem e a primeira mulher deixaram o paraíso. Todo mundo tem de morrer, mas ninguém precisa moldar seu físico; uma vez, porém, iniciada a modificação do corpo, ela é mais implacável que a morte. Todo praticante de exercícios físicos sabe que a propensão a ganhar peso é a expressão física da decadência moral. Todos sabem que, quando confortável ou em repouso, a tendência do corpo a amolecer (em vez de permanecer rijo para sempre) é falta de disciplina. Esse é o sabor da nossa nova árvore do conhecimento. Nesta época de abundância, descobrimos que nutrir-se torna as pessoas gordas, em vez de bem alimentadas, e que prazeres nos fazem flácidos, em vez de satisfeitos. Só os anoréxicos possuem força de vontade para parar de comer e morrer.
Para uma jovem mulher que considera a atratividade sexual sua maior virtude, exercitar-se significa mais do que cuidar da saúde. E a juventude está se tornando permanente graças à exigência de que adultos, em sua aparência, sigam exibindo uma sexualidade juvenil. O corpo se torna o local da sensualidade, em vez das roupas, da inteligência ou do carisma. Isso é menos verdadeiro para a sociedade – que ainda valoriza a personalidade – do que para a jovem que malha, porque ela imagina um público que não existe. O mais triste é a crença de que um corpo bem definido trará bem-aventurança às não amadas.
A tropa de choque da malhação moderna é composta de mulheres que acabam de sair da faculdade. Recém-beneficiária de um corpo sexualmente maduro e, em nossa cultura, uma das únicas possuidoras por direito inato do tipo de corpo reduzido que preferimos (e preferimos a cada dia mais aberta e veementemente), a mulher de 22 é uma figura paradoxal no universo dos exercícios físicos vigorosos. Ainda não a descartamos, mas ela conhece seu destino. De imediato, dispara na corrida para preservar uma forma que jamais pode exceder a barreira do mínimo necessário de carne. Uma honestidade revigorante pode se manifestar entre as ainda não cooptadas pela doutrina da saúde. Há uma coincidência entre a crescente incidência de fumantes entre mulheres jovens, o que preocupa os defensores da saúde pública, e uma incidência igualmente crescente das frequentadoras de academia, o que não preocupa. Enquanto o cigarro (rebelde) elimina o apetite, o simulador de escada (obediente) ataca as calorias. Cada um deles pode se tornar intensa e eroticamente prazeroso, mas nenhum mira de fato a saúde ou a longevidade.
A doutrina da magreza traz consigo uma fantasia radical da malhação. Ela admite o sonho do corpo livre de qualquer excesso de corporalidade. Tânatos adentra pela porta aberta por Eros, e a prática de malhar flerta com uma vontade de, em vez de preservar sua longevidade, aniquilar o corpo não atraente. Se não se fizesse acompanhar da ideologia da saúde, a magreza desconheceria todo e qualquer limite e conferiria ao exercício físico uma aura exterminadora. Curiosamente, a saúde retorna como único freio a uma prática que, de outro modo, se tornaria pura e simples agressão ao corpo.
No entanto, considerando-se a saúde, é mais provável que a agressão ocorra fisicamente. Ela se acumula e, então, gera uma subcorrente de ódio a essa forma humana inclinada a continuamente desfazer todo o trabalho que investimos nela. Sessenta quilos de nossa própria carne começam a parecer a rocha de Sísifo. A amargura, porém, de ver o corpo desfazer o trabalho que fizemos é contrabalançada por uma curiosa compensação que Sísifo desconhecia. Se o corpo odiado é cenário de uma batalha, certo prazer ainda emerge da luta sem fim e, numa ordem hedonista em guerra com seus próprios luxos, pelo menos esse prazer, ainda que nenhum outro, pode ser estendido indefinidamente.
Um mistério da prática de malhar é a necessidade proselitista que a acompanha. Seus adeptos sempre anseiam por companhia, querem que todos compartilhem de sua experiência. Se uma pessoa faz exercícios, por que outras também têm de fazê-los?
Ninguém que joga beisebol ou hóquei exige que todo mundo pratique o esporte. Esportes são atividades sociais. As vitórias se tornam visíveis no cenário público temporário em que a competição acontece. Feitos reconhecidos pelos outros no momento em que ocorrem poderiam, talvez, ser dados como encerrados. O frequentador de academia, no entanto, é um evangelizador solitário. Ele está o tempo todo batendo à sua porta, a fim de convencê-lo daquilo que não o deixa em paz. Todos precisam malhar. Contudo, no exato momento em que se preocupa com a salvação dos outros, ele cintila como alguém já à frente deles, alguém escolhido por Deus.
A corrida é a prática mais insidiosa, porque retira o proselitismo de dentro das academias. Tem-se aí uma invasão direta do espaço público. Sob o disfarce de um passeio corriqueiro ao ar livre, ela oculta a contagem, o ritmo dos passos, o frenesi controlado, a conhecida roupa de baixo usada por cima e o aspecto esquelético do corredor. Uma coisa que se pode dizer a favor da academia é que um contrato implícito vincula todos aqueles que malham em seus salões espelhados e suados. Todos concordam em fazer seus esforços em separado e em camuflar seus olhares, como num bem-ordenado masturbatorium. Nesse sentido, a academia é mais gentil que a vereda à beira d’água, a rua, a trilha pela natureza ou qualquer um daqueles lugares que os praticantes compartilham em suas corridas. Com velocidade e intensidade narcisista, o corredor corrompe o espaço dedicado à caminhada, à reflexão, ao colóquio e ao contato diário entre as pessoas. Ele afasta o ocioso de seu devaneio. Ele corre entre pedestres que conversam. O corredor pode se opor à sociabilidade e à solidão suando publicamente sobre elas.
Não resta dúvida de que a impossibilidade de compartilhar o exercício estimula um tipo incomum de solidão.
Quando o exercício é verdadeiramente compartilhado e visível, como acontece com a aeróbica que se aproxima da dança ou com o fisiculturismo, sempre erótico e fraterno, ele se aproxima do esporte ou da arte e começa a se transformar em seu contrário. Quando praticado no espaço privado da casa, numa paisagem desabitada, ou sem método formal, aparato ou contagem, então ele recupera certas liberdades excêntricas e particulares do self.
Contudo, a categoria mais pura do exercício físico moderno não se preocupa com o processo criativo da reprodução (como nas atividades em comum), nem com as descobertas da solidão (como na excentricidade privada): ele persegue uma ideia de replicação. A replicação num exercício recria a forma e as capacidades dos outros com o material fornecido por nosso próprio corpo, sem nada de novo e sem a troca com o outro ou a transferência de material de um self a outro. Na verdade, constitui uma questão enigmática se “nós” e “nosso corpo” somos a mesma coisa durante a prática do exercício físico. Se, por um lado, malhar parece promover uma forte identificação do praticante com seu corpo, na medida em que trabalham em conjunto, por outro, parece também alienar o praticante do corpo que administra e do qual, afinal, precisa cuidar. Onde reside de fato o bem-estar físico, a chamada fitness? Aparentemente, bem dentro de nós; e, no entanto, esse interior emergiu para uma superfície modificável. E essa superfície já não pode ser despida, como podíamos fazer com nossos trajes, quando nos valíamos de métodos mais antigos para melhorar nossa capacidade de sedução. Historiadores da moda observam que as mulheres se libertaram dos espartilhos que vestiam externamente, mas apenas para criar um espartilho interno, o que ocorreu no momento em que começaram a tonificar os músculos do abdome e do peito e a fazer dieta e exercícios para queimar permanentemente o corpo bem alimentado que as hastes de barbatana de baleia continham temporariamente. Embora aquele que malha aja sobre o próprio self, esse self se torna cada vez mais identificado com sua superfície visível. Embora trabalhe em seu corpo, a replicação faz desse corpo cada vez mais um corpo qualquer, por assim dizer, o corpo de qualquer um.
Esta crítica implica um ódio do corpo? Pelo contrário. O éthos da malhação na academia extingue a margem de segurança que os humanos têm em sua relação com o próprio corpo. Homens e mulheres parecem sentir mais vergonha do corpo no ambiente atual de exposição biológica que no passado pré-academia. Uma era da malhação resultou para nós não em menos, mas em mais obsessão e ódio em relação a nós próprios.
Uma preocupação feminista ganha importância. Com certeza, é possível acostumar as pessoas a exibir a olhos alheios seus processos biológicos de transformação. E esse tem sido, por vezes, o objetivo das feministas, visando atacar um patriarcado que vilificou o corpo natural ou fez de processos biológicos uma fonte de vergonha e inferioridade. Mas as formas de exposição recém-surgidas não se alinham com a libertação feminista do corpo não condicionado.
O patriarcado fez da biologia um espetáculo negativo, uma sujeira que precisava ser ocultada. O éthos do exercício físico a transforma num espetáculo positivo, num fascínio competitivo que precisa ser revelado. A retórica do “amor ao corpo” pode, portanto, ser mal utilizada. Com a expansão do clichê segundo o qual “não devemos ter vergonha” do corpo, hoje as pessoas são menos capazes de se defender da exposição constante de seu corpo real e seus processos biológicos, e em novos estados disciplinadores que não são nem privados nem públicos. Passa a ser um retrocesso, um defeito moral, querer se defender dessa exposição, pretender retirar a própria saúde, o corpo, a excitação e a autorregulação da cena social, como se esse tipo de privacidade fosse mero puritanismo ou repressão.
Uma vez submetido a essa socialização dos processos biológicos, o corpo sofre nova humilhação, dessa vez não mais enraizada nas distinções entre o revelado e o oculto, o natural e o vergonhoso, o ideal sexual e a realidade física, e sim no crime mais profundo de meramente existir como o não regulado, o não modelado, o não sexy, o “inadequado”.
Nossas práticas estão nos virando do avesso. A carne oculta se torna a face pública. A verdade médica privada da saúde corporal transforma-se em autorrespeito psíquico. A ação em público diante de estranhos e conhecidos desapareceu da experiência vivida do cidadão, substituída que foi pelo exercitar-se em público, à medida que o discurso cede terreno ao espetáculo biológico.
Malhar confere superioridade em duas disputas: a da longevidade e a do sexo. Ante a finitude, o frequentador de academia se crê um agente da saúde – ao passo que faz de si próprio um paciente perfeito. Ante a batalha sexual, trabalha arduamente para obter uma vantagem positiva, o que estimula um horizonte cada vez mais inatingível de competição mais e mais acirrada.
Na verdade, as aptidões técnicas do exercício na academia acarretam ideais sociais e demandas. Aquele que se exercita se conforma, adere à mais virulenta prática do conformismo em nossa era. O exercício em si, porém, impele a medicina e o apelo sexual a extremos ainda mais altos. O feedback não estabiliza o sistema, mas o radicaliza ano a ano. Somente numa cultura do exercício físico o excesso de peso pode se tornar “a segunda maior causa de mortalidade” (como anunciou recentemente o noticiário), em vez de uma correlação, uma medida relativa a variar junto com ataques cardíacos, cânceres, falhas nos órgãos e doenças terminais que, antes, costumavam nos matar. Somente numa cultura do exercício características físicas consideradas repulsivas no passado se tornam marcos de superioridade sexual. (Agora, desejamos que a outrora voluptuosa carne feminina seja aniquilada pelo exercício e pela dieta, vemos essa carne morrer de inanição em sua forma natural e ser seletivamente substituída por implantes nos seios, injeções de colágeno e traseiros empinados por cirurgia. Aprendemos a nos excitar com músculos sem gordura e com veias saltadas que transformam homens que só levantam papéis no Incrível Hulk.) Como a saúde e o sexo são hoje os lugares da nossa verdade, ideais recém-cunhados precisam ser promulgados como descobertas da medicina ou revelações de desejos humanos permanentes e em consonância com a “evolução”.
A consequência disso é a invasão da consciência por um corpo numerado e regulado – ou o distanciar-se da vida resultante da manutenção infindável dessa própria vida –, bem como a extinção das últimas esferas intactas da privacidade, de tal forma que a própria vida biológica se transforma em espetáculo.
“Você foi condenado. Você foi condenado. Você foi condenado.” Esse é o canto das máquinas em seu ritmo esfalfante, no estrepitoso salão da academia. Há muitos e muitos anos, o primado da saúde e a exposição do corpo e seus processos biológicos pareciam benignos e até libertadores. Íamos superar as doenças, íamos exorcizar os vitorianos pudicos. Mas nossas flechas foram desviadas de seus alvos, e algumas delas atingiram nossa privacidade.
A magreza que almejamos se torna espiritual. Não era esse o futuro que queríamos. A comichão sob a pele daquele que desce da esteira ergométrica é apenas seu novo self, sua existência reduzida; de dentro para fora, ele escava a verdade do que se tornou.
Mark Greif, escritor, fundou a revista de ensaios n+1, na qual permanece como colaborador
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