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Abelhas, aranhas e frutas
Alice Sant’Anna | Edição 78, Março 2013
o postal de clara me alcançou
quando os helicópteros e rondavam o prédio
duas da manhã e todos dormiam
apenas o zumbir das hélices
festejava a chegada
do céu iluminado de hong kong
que numa foto noturna se coloriu
de arranha-céus ansiosos pela vinda do ferry boat
que abarcaria depois de uma passagem
lenta, tranquila
diferentemente da sirene que embala
o sono dos moradores do meu bairro
clara não conseguiria entender
o rumor das hélices, seriam abelhas
de um país tropical?
ou outro inseto, talvez mais robusto?
como explicar o voo para clara?
a água transbordava da pia
para lavar bem lavadas as cerejas
fora de época (caras demais)
com os fones ouvia a respiração alta
na cozinha de uma estranha
nota que os anéis mais parecem
engrenagens que anéis
as engrenagens nos dedos uma máquina
fecha os olhos por alguns minutos
sente a água molhando o aço a fruta
enferrujar as cerejas (tão caras)
a boca um risco que quase sorri
a distração do metal gelado na casca
não sabe se o que ouve é eco
ou sua própria voz distante
a dona da casa pergunta se está cantando
por que está cantando tão cedo?
achava que estivesse muda
a respiração alta
a aranha se escondia
atrás da parede como que
para dar o bote
a projeção da sombra as pernas
contorcidas quase troncos
de uma árvore nascendo do chão e do teto
lúgubre lúgubre mais que lúgubre
o susto me recomendava
a correr tomar um táxi
mas ao mesmo tempo me forçava
a caminhar lentamente em torno da aranha
e olhar bem de perto
do que é feita (aço maciço): material do medo
me aproximar das pontas
das pernas que não são pés
lanças apontadas para o chão
que a qualquer momento se desgarram
e enlaçam a presa, têm vida própria
os tentáculos de aranha
eu sozinha com ela
não espantaria ninguém
se ela sumisse comigo
se ficar bem quieta
conto o que nos trouxe aqui
eu e ela
todas as palavras
roubadas da estante de cerâmica
da mais cara são objetos
que se lançam
com o risco de espatifar no chão
passei muito tempo tentando dizer
mas quando abria a boca o que pintava
era uma bailarina de caixa de música
que girava no ar contra a minha vontade
ela não sabe mas eu queria mesmo
era ser franca dizer que o sol batendo
na mesa é meu
os caquis na fruteira
os papéis que o menino do correio
lança por debaixo da porta
todas as coisas que posso
segurar isso é meu