A tintura negra de jenipapo simboliza a noite que as garotas atravessarão até despertarem para a vida adulta CRÉDITO: RAIMUNDO PACCÓ
Adeus à infância
Depois de se blindar contra a Covid-19, a aldeia Tekohaw retoma o ritual que transforma seus adolescentes em guerreiros e guerreiras
Alan Bordallo e Raimundo Paccó | Edição 183, Dezembro 2021
Era sábado na aldeia Tekohaw, uma das comunidades que formam a Terra Indígena Alto Rio Guamá, no Sudeste Paraense, em plena Amazônia. Com 280 mil hectares, a área abriga 1,7 mil integrantes de três povos originários: os Tembé, Awa Guajá e Ka’apor. Naquela noite, a Tekohaw promovia a tradicional Festa da Menina-Moça, que costuma se estender por uma semana. Seus moradores, todos tembés, haviam acabado de deixar a ramada – espaço coletivo com teto de palha, mas sem paredes – e dançavam ruidosamente sob o luar. Foi quando o líder comunitário Sérgio Tembé olhou para o alto e percebeu um fenômeno incomum: uma porção de listras contínuas atravessava o céu, à semelhança de nuvens alongadas. Ele as interpretou como uma grande fileira de urnas funerárias. “Maíra está avisando que algo grave vai acontecer”, disse para os demais habitantes do vilarejo, referindo-se à divindade suprema dos indígenas.
Poucos dias depois, em 26 de fevereiro de 2020, o Brasil confirmou o primeiro caso de Covid-19, registrado na capital paulista. Pela televisão, Sérgio – também chamado de Muxi – viu a enfermidade se espalhar e chegar perto do Pará. A profecia inscrita no céu parecia se cumprir. O líder de 54 anos decidiu, então, convocar a aldeia e iniciar um trabalho de conscientização e prevenção que se revelou um sucesso. Até agora, a Tekohaw não detectou nem sequer um caso da doença, embora as outras duas aldeias tembés do Alto Rio Guamá – as de Cajueiro e Canindé – tenham sido bastante afetadas pela crise sanitária. Oficialmente, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), um órgão do governo federal, contabilizou três ocorrências de Covid-19 na comunidade que Muxi representa. Ele, porém, atribui a informação a um erro de levantamento. Técnicos do posto médico local corroboram as palavras do líder, ainda que prefiram não se identificar para evitar problemas com seus superiores.
Hoje todos os adultos da Tekohaw já tomaram as duas doses da CoronaVac e esperam ansiosos pela terceira. Por isso, sentem-se à vontade para flexibilizar o rigoroso isolamento que enfrentaram durante meses. Em agosto deste ano, o lugarejo com aproximadamente seiscentos moradores voltou a receber convidados de Cajueiro e Canindé ou mesmo de outras etnias. Os visitantes participaram de celebrações que, na fase mais difícil da pandemia, ficaram restritas aos habitantes da aldeia. Entre elas, a Festa da Menina-Moça ou Festa do Moqueado.
A cerimônia marca o fim da infância para jovenzinhos da comunidade, que passam a ser considerados adultos (e não propriamente adolescentes). Apesar do nome, o festejo – que evoca um baile de debutantes – não se limita às garotas, mas abrange também os rapazes. O ritual de agosto reuniu nove pares de meninas e meninos, boa parte com apenas 11 anos. Elas foram escolhidas logo depois da primeira menstruação; eles, no momento em que começaram a mudar de voz.
Assim que a celebração termina, os recém-adultos assumem maiores responsabilidades no cotidiano da aldeia. Incumbem-se, por exemplo, de ir mais à mata em busca de comida. Não são obrigados a estabelecer laços conjugais após a festa, embora as núpcias não tardem para as garotas: a maioria se casa com até 15 anos e, frequentemente, já grávida.
O ritual demanda dos jovens certo grau de estoicismo e abnegação. Ao longo de sete dias, eles acordarão cedo, por volta das seis da manhã, e caminharão para a ramada depois de comerem o básico: mortadela, pão e tapioca. Ali, dançarão quase o tempo inteiro, durante dois turnos de quatro horas – um matutino e outro vespertino. Circulares, os bailados exigem que as moças e os rapazes marchem ou pulem de maneira ora enérgica, ora serena, conforme a intensidade dos cânticos. Os dançarinos permanecem descalços sobre a terra batida, o que lhes gera calos imensos nos pés. Na hora do almoço e do jantar, devem se alimentar moderadamente.
De segunda a sexta-feira, período em que a festa se restringe aos moradores da aldeia, os jovens trajam roupas comuns. As meninas usam vestidos ou camisetas com shorts e saias. Os meninos se apresentam somente de shorts, que em geral imitam os de marcas esportivas famosas. Os homens da comunidade sentam nos bancos espalhados pelas laterais da ramada e puxam os cantos. Eles marcam o ritmo com os maracás, espécie de chocalho em que o som brota de uma cabaça repleta de pariris, sementes que também são usadas na produção de colares. As mulheres sempre se posicionam atrás da fileira masculina e fazem a segunda voz, um coral agudo que incrementa a cantoria e lhe confere tom ancestral. No sábado e no domingo, o rito acontece fora da ramada, na presença de convidados.
Os cânticos duram de cinco a dez minutos. À medida que os entoam, os indígenas fumam a pitima. O cigarro de tabaco é enrolado com folhas de tauari, árvore de grande porte cujo tronco, quando seco, ganha uma textura que lembra a do papel. Para suavizar o trago forte da pitima, os fumantes colocam um pouco de algodão na ponta que toca os lábios. A cantoria se prolonga por oito horas diárias graças ao gengibre líquido que os participantes bebem com o intuito de regenerar a garganta e as cordas vocais. Eles o ingerem em cuias que passam de boca em boca, como se não houvesse pandemia. E lá, de fato, não houve.
O cacique da Tekohaw é Carlos Sérgio Tembé, o Kaparaí. A palavra significa “menino-homem” em tupi-guarani. Irmão caçula de Muxi, o cacique tem 48 anos, ocupa o cargo há seis, se expressa mansamente e sobressai pela discrição. Sua principal tarefa é garantir a harmonia entre as 78 famílias que compõem a aldeia. Já Muxi – sinônimo de “camarão”, em referência à pele avermelhada do líder comunitário – exerce funções diplomáticas e representa a Tekohaw nas missões externas.
Kaparaí se orgulha do papel que lhe cabe no povoado. “Nós, indígenas, devemos amar as responsabilidades que assumimos. Precisamos sentir orgulho de dar conselhos para famílias com problemas”, ensina, num português fluente. Chama a atenção a naturalidade com que os tembés partilham bens, incluindo alimentos, e transitam uns pelas casas dos outros. Tais atitudes fortalecem os elos de confiança dentro do grupo e impedem que haja miséria na aldeia. Mas, obviamente, existem diferenças materiais entre os membros da Tekohaw. Muxi vive num sobrado de alvenaria, bem distinto das residências simples e de madeira que formam o núcleo da comunidade. Kaparaí mora com alguns de seus onze filhos numa casa térrea, igualmente ampla e de alvenaria. É a única da região que dispõe de internet. Em contrapartida, todas as habitações locais desfrutam de eletricidade.
Além do recado no céu, o acesso a informações científicas divulgadas principalmente pela tevê e pelos profissionais do posto médico contribuiu para que a aldeia se blindasse da Covid-19. Kaparaí e Muxi contam que promoveram uma série de reuniões sobre o assunto com os “parentes” (o termo, que não pressupõe laços sanguíneos, engloba a totalidade dos tembés e até de outros povos da floresta).
Ninguém ousou tripudiar da nova ameaça. Enquanto a vacina não chegava, os indígenas evitavam receber forasteiros e sair da Tekohaw. Quando necessitavam se deslocar para uma região mais populosa, seguiam à risca os conselhos da Organização Mundial da Saúde (OMS): máscara no rosto, álcool em gel nas mãos e distanciamento social. Não satisfeito, Muxi impôs outros protocolos bem menos ortodoxos à comunidade. Um deles causa espanto: se um parente morresse por pegar o coronavírus de alguém que deixou a aldeia, o responsável pela contaminação amargaria uma penalidade radical. Seria morto a flechadas – o que, no fim das contas, acabou não ocorrendo.
Em conjunto, as medidas preveniram o que os tembés mais receavam: a morte de anciãos. Para etnias que transmitem sua cultura pela oralidade, o desaparecimento de idosos equivale ao incêndio de um arquivo público, tragédia que infelizmente recaiu sobre diversos povos originários durante a pandemia. “Faleceram alguns anciãos no Cajueiro, além de primos Kayapó, Xavante e Asurini. Muitas lideranças partiram…”, lamenta Muxi.
Ele mantém contato com inúmeros parentes da Amazônia e mexe sem embaraço em smartphones, computadores e demais ferramentas que lhe permitem estar bem informado. Não por acaso, tão logo as primeiras doses de vacina desembarcaram no país, Muxi tratou de explicar para os moradores da aldeia que o imunizante os beneficiaria. “Tentei combater as fake news que já circulavam entre nós. ‘Não vou tomar coisa nenhuma porque posso virar serpente’, temiam os mais céticos. Esclareci que tudo isso não passava de mentira. ‘Várias nações estão pesquisando a vacina’, argumentei. ‘E os médicos serão os primeiros a tomá-las. Vocês acham que eles tomariam se houvesse o risco de se darem mal? Quem cuidaria dos outros? Vamos acreditar, gente!’”
Os imunizantes foram aplicados na ramada. A Prefeitura de Paragominas – município onde se localiza a Tekohaw – organizou a distribuição em parceria com a Sesai, que montou uma pequena estrutura na aldeia para atender também aos habitantes de Canindé e Cajueiro. Atualmente, a secretaria é o único ponto de ligação dos tembés com o governo de Jair Bolsonaro, já que a Funai está cada vez mais esvaziada. O Ibama se tornou igualmente inacessível. Caso os indígenas precisem de alguma instituição federal, a única saída é procurar o Ministério Público. “Contamos com a ajuda deles, mas não todos os dias. Do Executivo, só recebemos patadas. A má vontade impera por lá”, reclama Muxi. “A Funai morreu, o Ibama abriu mão de fiscalizar nossas terras para coibir invasões e a Polícia Federal dá as caras apenas se a gente entra com um pedido no Ministério Público.”
Os jovens tembés começam a se caracterizar somente no sábado, quando a Festa da Menina-Moça aproxima-se do fim. Pela manhã, antes de dançarem, os nove pares de garotos e garotas são adornados, primeiro com maquiagens. Mulheres da aldeia desenham pintas de onças e outros tipos de padronagens nos corpos dos rapazes. As moças têm a franja cortada e se besuntam com tintura de jenipapo. Também ficam sem blusa e conservam os seios incipientes à mostra até a manhã seguinte. No domingo, os dezoito dançarinos põem roupas tradicionais e diversos adereços.
De um dia para o outro, a tinta de jenipapo perde o aspecto opaco e assume um negrume profundo. O pigmento natural permanece na pele entre uma e duas semanas, dependendo do quanto está diluído em água. “O negrume camufla as meninas. Quando a tinta some, as moças renascem”, explica Valsanta Tembé, que dirige a Associação das Mulheres Indígenas do Gurupi (Amig).
Com 36 anos e quatro filhos, a líder se entusiasma toda vez que discorre sobre a festa. “A gente fica alegre, pois ganhamos novas guerreiras. É uma preparação para as jovens se tornarem fortes e capazes de realizar atividades complicadas, como andar na floresta por muito tempo sem beber água.” Quando tinha a idade das meninas, Valsanta não participou do ritual de iniciação porque um integrante de sua família acabara de morrer. Ela compreende bem a necessidade de forjar guerreiras e guerreiros resistentes. A Amig engloba o grupo Guardiões da Floresta, composto de nativos que atuam na proteção da terra indígena, constantemente ameaçada por madeireiros. A World Wildlife Fund (WWF), organização não governamental com sede na Suíça, financiou a compra de drones e outros equipamentos de vigilância para a associação. Também ensinou os guardiões a operá-los. “Antes, os invasores nos pegavam de surpresa. Agora, com esses instrumentos, a gente consegue se preparar para combatê-los”, diz Valsanta.
A Amig pretende viabilizar uma casa de cultura em que as moradoras da comunidade possam fazer artesanatos de um jeito mais sustentável e gerar renda. “Outra meta é trabalhar a identidade das mulheres tembés. Queremos que elas se valorizem tanto na sociedade indígena quanto na dos brancos”, prossegue a líder.
Valsanta leciona português na aldeia e demonstra preocupação com o desenvolvimento das crianças e dos jovens, muitíssimo prejudicados pela quarentena. Já são praticamente dois anos sem aulas regulares. “Os alunos passaram a maior parte desse período cumprindo tarefas impressas, a distância. Melhor do que nada, mas não é como ter aulas presenciais, em que os professores podem tirar as dúvidas dos estudantes na hora.”
O prefeito de Paragominas, Lucídio Paes (PSD), compareceu à festa de agosto e anunciou uma série de ações para aumentar a integração da cidade com a Tekohaw. Prometeu, ainda, que a Secretaria Municipal de Educação iria diagnosticar a situação escolar da comunidade na tentativa de compensar o tempo perdido.
Cerca de 150 km separam a terra indígena do Centro de Paragominas. Embora seja quase todo de terra, o caminho se encontra em boas condições. Apenas nos 40 km finais há excesso de poças e valas. Em parte do trajeto, predominam os latifúndios com pastos ou plantações de soja e milho. Depois, a mata se fecha e árvores frondosas dominam a paisagem.
Em agosto, o primeiro bicho que vimos cruzar a estrada foi um jabuti. Estávamos perto do Rio Gurupi, o Gurupizão, como os tembés o apelidaram carinhosamente. O rio demarca a divisa entre o Pará e o Maranhão. Chegamos à Tekohaw no dia 26, uma quinta-feira, data em que o Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou o julgamento do marco temporal, ainda não concluído. Em Brasília, uns 6 mil indígenas de 170 povos se reuniam no Acampamento Luta pela Vida para acompanhar as discussões jurídicas. Artistas nacionais e estrangeiros, a exemplo da cantora Maria Gadú, do DJ Alok e do roqueiro francês Joe Duplantier, os visitavam. A tese do marco temporal sustenta que as populações originárias só poderão reivindicar terras que ocupavam em 5 de outubro de 1988, quando a atual Constituição foi promulgada. O STF avalia se o argumento, defendido por ruralistas, fere ou não a Carta Magna. Caso a tese seja ratificada, o processo de degradação que os indígenas enfrentam deverá acelerar.
Muxi comentou que gostaria de estar junto dos parentes acampados no Distrito Federal. Ele relembrou que, em 2000, viajou para o Sul da Bahia e presenciou os eventos alusivos “aos quinhentos anos da invasão do Brasil”. “Os indígenas daquela região já não vivem na floresta. Por isso, têm de comprar plumas de outros povos para fazer seus artesanatos. É triste… Pouco a pouco, vão se afastando de suas características mais preciosas.” O líder dos tembés acredita que, sem a demarcação de terras, os nativos sempre perderão as disputas contra “os donos do poder econômico e de fogo”. “Dizem que a gente invade as fazendas dos brancos. Não invadimos nada! Somos mais educados do que muito fazendeiro, político ou doutor. Nunca invadiremos a terra de ninguém. Apenas ocupamos o que é nosso.” Enquanto o julgamento se desenrolava no STF, Muxi pedia a Maíra que iluminasse “a cabeça dos juízes”.
No domingo, último dia de festa, os tembés pareciam em êxtase. Ao ar livre, cantavam e dançavam músicas que reverenciavam a natureza. Muxi e Kaparaí envergavam suntuosos cocares, que exibiam lindas penas de araras e tucanos. Iakira, uma das herdeiras do cacique, pintara seu filho Gabriel, de 7 anos, com motivos que remetiam ao casco do jabuti. Escolheu o bicho por simbolizar força e resistência.
É jornalista e desde 2016 trabalha com comunidades tradicionais na Amazônia
É fotojornalista. Trabalhou no Correio Braziliense e na Folha de S.Paulo e dirigiu o longa-metragem Consagração
Leia Mais