Um caso exemplar de ruído e de correção: o general Mark Milley (de uniforme) acompanhou Trump num ato político, em Washington, e depois admitiu publicamente que cometera “um erro” CREDITO: DOUG MILLS_THE NEW YORK TIMES
Adeus ao retrocesso
Os militares podem fazer bem ao governo e ao país, mas é preciso eliminar as mensagens dúbias
Francisco Mamede de Brito Filho | Edição 167, Agosto 2020
Depois de 35 anos de regime democrático, as apreensões a respeito de uma intervenção militar foram ressuscitadas. O assunto é tema de manifestações populares em apoio ao atual governo e aparece nas entrelinhas de declarações de alguns dos seus representantes. Há algumas razões para que tais temores tenham voltado à tona, mas as mais evidentes parecem ser a presença de militares da ativa na estrutura de governo, algo sem precedentes na Nova República, e as mensagens dúbias que vêm transmitindo.
O fenômeno teve início ainda no período pré-eleitoral, em 2018. Em abril daquele ano, uma mensagem do então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, assim que circulou nas mídias sociais, foi prontamente repudiada como antidemocrática por diferentes grupos de lideranças políticas, formadores de opinião, juristas e magistrados. Em setembro do mesmo ano, depois de ser transferido para a reserva, o general Fernando Azevedo e Silva, chefe do Estado-Maior do Exército e segundo na hierarquia da força, passou a ocupar, a convite, um assento como assessor junto ao gabinete do presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli. O fato causou e continua causando estranheza, tanto pelo ineditismo do gesto quanto pelo momento em que aconteceu, em meio a suspeições de interveniência indevida do segmento militar em assuntos que não lhe são afetos.
Em janeiro de 2019, durante a cerimônia de posse no Ministério da Defesa, o presidente Jair Bolsonaro dirigiu-se ao general Villas Bôas, autor da mensagem objeto de repúdio, como um dos responsáveis por sua eleição. Diante de tudo isso, é difícil deixar de perceber a forte vinculação selada, desde o primeiro momento, entre a imagem do segmento militar e a imagem pessoal do presidente recém-empossado. Uma situação que se agravou à medida que se somaram novas mensagens de conteúdo ambíguo, partindo, agora, de militares que já integravam o mais alto escalão do governo, ocupando cargos de natureza essencialmente política.
É relevante salientar que nenhum governo democrático no mundo abriu mão de contar com militares da sua reserva mobilizável como colaboradores. Há inúmeros exemplos de sucesso, inclusive entre as democracias mais consolidadas. No caso das nossas Forças Armadas, é pública e notória a capacitação dos seus quadros no campo da gestão administrativa e em áreas correlatas à atividade-fim, como segurança e defesa, ou mesmo em áreas relacionadas à atividade-meio, como educação e infraestrutura. Em princípio, portanto, não é condenável a nomeação de militares da reserva para cargos no governo.
É preciso compreender, inclusive, que a decisão de participar do governo compete apenas ao militar convidado. As Forças Armadas em si não são chamadas a participar do processo. Os representantes do governo exercem o direito de convidar, e o militar da reserva exerce o direito de aceitar ou recusar, julgando ele próprio, e não as Forças Armadas, se está habilitado para desempenhar a função. É assim que grande quantidade de militares da reserva, discretos e comprometidos com o futuro do país, entrou e continua entrando no governo.
A situação ganha outra dimensão quando se trata de militares da ativa ocupando cargos de natureza política no governo – e que, não raro, aceitam o convite alegando que estão cumprindo uma missão dada pelo comandante supremo. Vale frisar que todo militar aprende, ainda nos bancos escolares, que militares da ativa cumprem suas missões apenas enquanto ocupam cargo de natureza militar, previsto na estrutura das respectivas forças, desempenhando as funções previstas para aquele cargo, tudo de acordo com a lei. Fora disso, não há missão alguma, e ponto final.
Ademais, a decisão sobre pedir passagem para a reserva, se relegada ao bel-pra-zer do militar da ativa que for convidado para integrar o governo, pode acarretar problemas internos muito graves no âmbito das instituições militares. Principalmente no que se refere à preservação do caráter apolítico que deve imperar no interior da caserna. O assunto precisa ser urgentemente normatizado. Não é prudente aceitar, de braços cruzados, a eventualidade de um retorno ao tempo em que chefes militares se dobravam a interesses políticos ou mesmo faziam campanhas, dentro dos quartéis, com vistas a ocupar esse ou aquele cargo no governo.
Um militar da ativa que integra o governo dizendo-se cumpridor de uma missão encerra uma mensagem institucional flagrantemente distorcida. Espera-se que o problema esteja sendo tratado pelo Ministério da Defesa e que, em breve, tenhamos um posicionamento a respeito. Nesse campo, predominantemente político e comum a todas as forças, compete ao Ministério da Defesa exercer o direito à palavra e à iniciativa da ação. Aos comandantes das forças singulares – Marinha, Exército, Aeronáutica – cabe apenas se pronunciar sobre assuntos internos, regra que têm obedecido com rígida disciplina. Causa estranheza, portanto, a aparente inação e o silêncio do Ministério da Defesa sobre o assunto. Fosse mais ágil para enfrentar a questão, poderia ter evitado colher reações abrasivas como a do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, que, referindo-se à criticada gestão da pandemia pelo Ministério da Saúde, comandado por um oficial-general da ativa, disse que “o Exército está se associando a esse genocídio”. Uma possibilidade seria a de exigir, ex officio, a passagem imediata para a reserva, assim como se verificou no âmbito do Judiciário com o juiz Sergio Moro, obrigado a abandonar a toga para ser empossado no cargo de ministro.
Atento a essa questão, o Tribunal de Contas da União já iniciou estudos para verificar se estaria havendo um “desvirtuamento das Forças Armadas”, além de uma eventual “militarização excessiva do serviço público civil”.
A preocupação com os riscos de uma intervenção militar pode ser amenizada quando se conhece a nova geração de militares, forjada sob o compromisso da profissionalização idealizada pelo marechal e ex-presidente Humberto de Alencar Castello Branco (1897-1967), cuja ideia central repousava na completa despolitização do segmento militar. Duas medidas foram vistas como essenciais para se chegar a isso: reduzir o tempo de militares da ativa nos postos de general e valorizar o mérito. Naquele tempo, por exemplo, o general Cordeiro de Farias (1901-81) ficou 23 anos como general, dos quais treze anos no topo de carreira, como general de quatro estrelas. Hoje, o tempo total como oficial general da ativa não pode ultrapassar doze anos, com limite de quatro anos para o último posto.
Os critérios de promoção, calçados no mérito, também inibiram a famigerada prática de interferência política nas promoções, anomalia narrada com espantosa naturalidade em livros de autores militares do período que antecedeu as mudanças. As novas práticas foram adotadas com plenitude nas promoções até o posto de coronel. Talvez ainda seja possível dar mais transparência ao processo, reforçando o cerceamento de interferências políticas e a prevenção do surgimento de subgrupos identitários. Mas, até agora, o resultado tem sido auspicioso.
Passado mais de meio século, apesar dessas mudanças nas promoções e na duração da carreira terem surtido excelentes efeitos, elas podem não ter alcançado pleno êxito, como demonstra o atual cenário político. A síndrome salvacionista, tão presente ao longo da história da instituição militar, parece estar apresentando sintomas de recidiva. A persistência ou o renascimento da ideia de que as Forças Armadas têm um papel político estabilizador – o que de fato aconteceu em épocas remotas durante a formação e consolidação do Estado brasileiro – só contribui para reforçar o retorno de uma visão estereotipada do segmento militar.
Essa percepção costuma reaparecer sempre que o Estado recorre às instituições militares para tratar rotineiramente de assuntos civis, como segurança de processos eleitorais, combate ao crime organizado, distribuição de alimentos, controle de epidemias. São atividades caras aos militares, porque atendem os anseios da população, mas, quando banalizadas, reforçam a ideia salvacionista – e isso acaba distorcendo o entendimento do que vem a ser o papel institucional das Forças Armadas.
Quero crer, no entanto, que os sintomas de recidiva apresentados até agora são frágeis, pontuais e não oferecem riscos de contágio das principais lideranças que hoje exercem o comando efetivo das estruturas militares. A recente intervenção na segurança pública do Rio de Janeiro, por exemplo, teve um peso importante nesse domínio. E, por esse motivo, merece permanecer como um caso isolado. A atual geração de chefes militares constitui um grupo que conheço de perto e ao qual me vinculo por laços de pertencimento, na condição de militar graduado no ano de 1983. Não será, portanto, no perfil dos atuais chefes militares da ativa que poderemos encontrar sustentação para a crise de desconfiança que estamos vivendo.
Apesar de todos os esforços, a instituição militar continua sendo desconhecida por parte significativa da sociedade. E talvez nisso resida um combustível para a atual crise. É possível que, sem conhecer a evolução recente das nossas instituições militares, a sociedade esteja dividida entre opiniões conflitantes, igualmente equivocadas.
Uma pequena parcela continua visualizando as Forças Armadas sob uma ótica carregada de ceticismo. Como se elas fossem, de forma peremptória, um agrupamento de pessoas desconectadas da realidade do mundo, em constante regime de conspiração contra as liberdades democráticas tão duramente conquistadas. Outra parcela da sociedade continua enxergando as Forças Armadas por meio de uma visão saudosista, como um elixir de cura para todas as nossas mazelas internas, inclusive as de natureza política.
O fato é que as Forças Armadas se afastaram do cenário político e se transformaram.
Desde a criação do Ministério da Defesa, em 1999, as instituições militares têm feito grande esforço no sentido de se fazerem conhecidas. Sou testemunha de muitas iniciativas nessa área. Os centros de comunicação social, no âmbito de cada força, modernizaram-se e ampliaram a visibilidade institucional por meio de uma vigorosa participação nas mídias sociais e de maior interatividade com os diferentes órgãos de mídia, independentemente de viés ideológico ou político. Escolas militares de todos os níveis, da graduação ao doutorado, abriram suas portas para o intercâmbio com instituições acadêmicas no intuito de compartilhar o debate sobre segurança e defesa, tema que permaneceu, por longo período de tempo, restrito ao meio militar.
Mas a realidade é que, não bastasse a demonstração de maturidade durante as diversas alternâncias de poder ocorridas depois dos governos militares, o cenário atual parece nos dizer, mais uma vez, que algo não anda bem com a comunicação institucional. E a resposta talvez esteja justamente nas mensagens ambíguas, que vêm sendo transmitidas por militares que ocupam ou ocuparam posição de destaque na formação deste governo e escapam do controle dos atuais chefes das Forças Armadas.
Um caso exemplar de ruído de comunicação ocorreu nos Estados Unidos, no início de junho passado. O general Mark Milley, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas norte-americanas, apareceu uniformizado ao lado do presidente Donald Trump, em um ato de cunho político. O caso é tão exemplar no ruído quanto na sua correção. De forma direta e inequívoca, sem dar margem a qualquer dúvida, o general disse que cometera “um erro” e declarou: “A minha presença naquele momento e naquele ambiente criou uma percepção de envolvimento militar na política interna.” E pediu desculpas aos norte-americanos.
É uma grande lição sobre comunicação institucional.
A presença de militares da ativa na estrutura de governo é um exemplo do contrário – exemplo de mensagem a ser evitada. Declarações pouco republicanas que acenam com ameaças veladas ao funcionamento das instituições democráticas também pouco contribuem.
É possível proteger o pessoal militar da ativa de exposições indevidas. É possível controlar atitudes e discursos que envolvam indevidamente a imagem das instituições militares. E, nas circunstâncias em que não for possível exercer esse controle, é fundamental esclarecer a sociedade com veemência e agilidade. É possível, e necessário, continuarmos atentos ao risco de politização das Forças Armadas.
Em artigo sob o título Os Militares de Volta ao Time Principal, publicado em outubro de 2018 no site da piauí, o cientista político Sergio Fausto abordou o protagonismo das Forças Armadas no governo recém-eleito. Foi cristalino e até premonitório ao enunciar que, “em princípio, a volta de militares a posições destacadas de poder não representa ameaça à democracia, a menos que eles se deixem arrastar pelos impulsos autoritários do presidente eleito”. Disse, também, que os “impactos serão tão mais positivos quanto maior capacidade de atualização demonstrarem os militares que assumirem posições de direção em órgãos governamentais”.
Como se pode perceber, perspectivas muito positivas na visão de um autor acostumado ao debate democrático. Visão que admite a presença de militares no governo, dada a formação castrense do presidente eleito, mas que aposta numa participação essencialmente técnica e, antes de tudo, pontual e responsável. Visão que certamente transcende a pessoa do autor para identificar importantes segmentos da sociedade que comungam da mesma crença. Uma janela para o segmento militar avançar no diálogo franco e aberto com as lideranças civis verdadeiramente comprometidas com o futuro do país. Não para acenar com retrocessos.