ILUSTRAÇÃO: ARTUR LOPES_2013
¡Adiós, machistas!
Machismo: actitud de prepotencia de los varones respecto de las mujeres
Carol Pires | Edição 88, Janeiro 2014
Em espanhol, a palavra miembro –“indivíduo que faz parte de um conjunto” – é considerada, pelo menos até agora, um substantivo comum de dois gêneros. Usa-se el miembro para homens e la miembro para mulheres. Em 2008, a então ministra da recém-criada pasta da Igualdade da Espanha, Bibiana Aído, decidiu honrar o cargo nem que para tanto precisasse subverter os dicionários. Num discurso na Câmara dos Deputados, empregou miembras, substantivo feminino plural que, àquela altura, existia apenas em sua cabeça. Houvesse se envolvido num escândalo de corrupção, não teria sido tão achincalhada.
O escritor Javier Marías, membro da Real Academia Espanhola conhecido pela excelência de seu verbo e por seu pavio curto, liderou as brigadas da reação: “Vão acabar exigindo que não se diga mais mujer, e sim mujera”, escreveu no jornal El País. Marías aproveitou a polêmica para abrir uma cruzada contra grupos feministas que, havia mais de uma década, pediam um espanhol menos machista nas páginas do Diccionario de la Lengua Española (DRAE), o venerável e conservador baluarte daquela que alguns ainda reputam como a segunda língua mais falada no mundo, embora pesquisas mais recentes lhe concedam uma modesta quarta posição, depois do mandarim, do inglês e do hindi.
Por ora, miembra não faz parte do dicionário, mas, cinco anos depois da controvérsia, as feministas estão ganhando terreno. As acepções atuais de gozar (“conhecer carnalmente uma mulher”), femenino (“fraco, débil”), masculino (“varonil, energético”) e huérfano (“pessoa menor de idade que perdeu o pai ou a mãe, ou os dois, mas especialmente o pai”) merecerão o mesmo destino dos membros (e membras) da nomenklatura caídos (e caídas) em desgraça naquelas velhas fotografias do Politburo soviético: serão apagadas da próxima edição do DRAE, a ser lançada em outubro.
Na primeira edição do dicionário da Real Academia Espanhola, cuja versão num único volume apareceu em 1780, o substantivo madre foi glosado como “a fêmea de qualquer espécie, racional ou irracional, que tenha parido”. Na última edição, de 2001, a definição foi mantida, embora mais sucinta: “Fêmea que tenha parido.” Em dois séculos, não mudou substancialmente o conceito que a sociedade faz de suas madres.
Mas, tal como o mundo gira e a Lusitana roda, a própria noção de família já não é a mesma. E o verbete madre de familia recende a naftalina: a entrada correspondente – “mulher casada ou viúva, líder do lar” – exclui todas as senhoras solteiras e separadas que constituem família. Já a definição corrente de padre de familia contaria com o entusiasmo irrestrito de Jece Valadão: “Chefe de família, ainda que não tenha filhos.” É contra esse tipo de insolência que as feministas se insurgiram.
A Real Academia se viu assoberbada por uma avalanche de demandas de correção política e atualização comportamental. Por enquanto, a vetusta instituição resolveu acatar pedidos da Confederação Espanhola de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais, conhecida pelo simpático (quase) acrônimo COLEGAS. O conceito de matrimonio – “união entre um homem e uma mulher” – será ampliado para o palavroso: “Em determinadas legislações, união entre duas pessoas do mesmo sexo, concedida mediante certos ritos ou formalidades legais, para estabelecer e manter uma comunhão de vida e interesses.”
A entrada adulterio, hoje definido como “conhecimento carnal voluntário entre uma pessoa casada e outra do sexo oposto que não seja seu cônjuge”, também será modificada: “Relação sexual voluntária entre uma pessoa casada e outra que não seja seu cônjuge.” Sem dúvida uma vitória para todo gay adúltero que se sentia justamente discriminado.
A lista de ofendidos, tristes e magoados com o léxico não inclui apenas a turma atenta a questões de sexo e gênero. A Federação de Comunidades Judaicas da Espanha pede a exclusão do verbete judiada: “Má ação, que tendenciosamente se considerava própria dos judeus.” A Associação para a Recuperação da Memória Histórica exige a reavaliação do termo franquismo, cuja definição – “movimento político e social de tendência totalitária” – é, para eles, “uma falta de respeito aos 113 mil desaparecidos e suas famílias”. O problema, claro, está na palavra “tendência”, considerada branda com a ditadura de 36 anos.
Desde os tempos coloniais, os espanhóis bem sabem que o idioma é uma arma de dominação e poder. A primeira gramática espanhola foi lançada em 1492, momento que coincidiu com a descoberta da América. Quando perguntou a frei Fernando de Talavera, bispo de Ávila, qual a serventia de tal obra, a rainha Isabel ouviu que os povos das “terras bárbaras” conquistadas por ela “precisarão receber as leis que o vencedor impõe ao vencido, e com elas a nossa língua”. Em outras palavras, serve para governar. E assim foi: em pouco tempo, boa parte do Novo Mundo se expressaria no idioma do colonizador ibérico. Hoje, cerca de 420 milhões de pessoas falam espanhol no mundo, a maioria delas na América Latina. Era inevitável que o bumerangue voltasse. A Real Academia sofre pressões de todos os lados – de minorias nacionais a antigos povos conquistados.
A Aliança pela União no Campo não quer mais que rural corresponda a “inculto” ou “tosco”. O Bloco Nacionalista Galego apresentou ao Congresso um pedido formal para que os naturais da região do noroeste da Espanha não sejam mais chamados nem de “tontos”, no espanhol da Costa Rica, nem de “gagos”, variação salvadorenha. No Uruguai, a Casa da Cultura Afro-Uruguaia lançou uma campanha contra a expressão dicionarizada “trabalhar como um negro”.
O secretário da Real Academia, Darío Villanueva, tenta conter o movimento antes que ele se transforme em rebelião babélica. Villanueva alega que excluir todas as palavras ofensivas seria acabar com o dicionário: “A Academia não inventa palavras ofensivas nem as promove. Com o passar do tempo, a sociedade evolui e certos termos vão deixando de vigorar.” A filósofa Esther Forgas propõe uma solução conciliatória, sugerindo que o dicionário notifique o leitor do contexto em que “termos degradantes” se tornaram de uso corrente, evitando a “mera anotação” do verbete – um adendo parecido com o que foi proposto no Brasil para as expressões racistas nos livros infantis de Monteiro Lobato.
O processo de revisão da 23a edição do Diccionario de la Lengua Española segue em curso. O número de verbetes será ampliado de 88 431 mil para 93 mil. Palavras como nanotecnología e nanosegundo serão dicionarizadas, assim como chatear (conversar em chat de internet), bloguero e libro electrónico. Uma lista de profissões – alfarero (ceramista), enterrador (coveiro), e herrero (ferreiro) – ganhará seu correspondente feminino.
Para os que já estão se perguntando, nos apressamos em responder: sim, presidenta já é aceito.
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