Imagem de 1918, em defesa da República Popular da Ucrânia, em mais uma guerra por independência: os ucranianos nunca tiveram um czar, nunca quiseram obedecer a um czar, mas os russos, ao contrário, matam um czar e adoram o czar seguinte CRÉDITO: B. SHIPPIKH_KIEV_1919
Ainda estamos aqui
Um relato vindo do sopé dos Cárpatos ucranianos
Andrey Kurkov | Edição 187, Abril 2022
De Mukachevo
Tradução de Isa Mara Lando
Ainda está escuro lá fora. Estou esperando a aurora iluminar as montanhas. Tomo um café com leite, mesmo sabendo que depois da terceira xícara vou me sentir mal.
Estou na parte Oeste da Ucrânia, em uma cidadezinha perto das montanhas, hospedado no apartamento de terceiros. Minha mulher e nosso filho mais novo ainda estão dormindo. Nosso filho mais velho passou a noite de plantão no centro que abriga os refugiados. Dali, ele vai dar uma aula de inglês para as crianças refugiadas, num espaço cedido pela biblioteca do bairro onde estamos.
Tal como na manhã de ontem, estou pensando no passado, relembrando o que aconteceu comigo e com a minha família nos últimos trinta anos – ou, precisamente, nos últimos 34 anos. Na minha família, sou o único cidadão da Ucrânia. Minha mulher nasceu em Surrey, a pouco mais de uma hora de Londres. Ela e nossos filhos são súditos britânicos. Mas a Ucrânia se tornou um lar para as crianças desde que nasceram. E, para minha mulher, é sua casa desde 1988, época do degelo promovido por Mikhail Gorbachev. Naquele período, depois de nove meses andando de um órgão oficial para outro, finalmente fui autorizado a deixar a União Soviética e viajar para comparecer ao meu próprio casamento, em Londres. É uma longa história, digna de figurar num livro. Mas o livro virá mais tarde.
Depois do nosso casamento no bairro de Brixton, voltamos de trem para a União Soviética. Todos olhavam para nós como se fôssemos loucos. Até mesmo o funcionário da embaixada soviética em Londres, a quem pedi o visto para minha mulher, apesar da expressão hostil tão típica de um agente da KGB, mostrou toda sua perplexidade com o olhar, e me aconselhou a comprar um videocassete, para vendê-lo na União Soviética e, com isso, ter algum dinheiro para viver.
Para voltar a Kiev – então uma cidade da União Soviética – tivemos problemas. Na cidade de Brest, que fica na fronteira da Belarus com a Polônia, já pertinho da Ucrânia, minha mulher e eu fomos retirados do trem com todos os nossos pertences para uma vistoria completa na alfândega. Já passava de meia-noite. Ficamos lá até de manhã, olhando os funcionários sacudirem nossa bagagem e inspecionarem os livros de editores emigrados que eu estava levando para minha casa em Kiev – eram mais de duzentos livros! Muitos diários e memórias de políticos antissoviéticos do século XX.
No final do seu trabalho, uma funcionária da alfândega disse: “Bem, esses livros não são mais proibidos. Se você tivesse as memórias de Kruschev, eu teria que confiscar. Kruschev ainda não é permitido.” Ela não percebeu que eu tinha as memórias de Kruschev, mas havia arrancado a capa antes de sair de Londres. Eu precisava desse livro para escrever meu romance The Bickford Fuse (O fusível de Bickford), no qual Nikita Kruschev é um dos principais protagonistas.
Mudar de um lugar para outro é uma tradição há várias gerações da minha família. Depois da crise dos mísseis de Cuba no início dos anos 1960, Nikita Kruschev quis mostrar que a União Soviética era um país pacífico. Assim, anunciou o desarmamento unilateral e transferiu 100 mil oficiais do Exército soviético para a reserva. Meu pai, que era piloto militar, também deixou o Exército – e então nos mudamos para Kiev, para a casa da minha avó. Eu tinha 2 anos e meu irmão mais velho, Misha, tinha 9. O pinguim do meu livro Death and the Penguin (Morte e o pinguim) ganhou o nome de Misha por causa de meu irmão.
Mas essa última mudança que acabamos de fazer, deixando Kiev em direção ao Oeste da Ucrânia, onde estamos no momento em que escrevo estas linhas, não foi uma mudança tradicional. Agora somos refugiados. Não sentimos todas as dificuldades que sofrem muitos outros refugiados ucranianos. Tivemos ajuda para nos instalar, pudemos recuperar a serenidade e, agora, fazemos o que podemos para contribuir com nosso país.
Há duas semanas, porém, quando fugimos de carro de Kiev, éramos refugiados em todos os sentidos da palavra.
No início, não compreendíamos muito bem o que é a guerra. Não se pode compreender até ver e ouvir a guerra.
O dia 24 de fevereiro, quando fomos acordados às cinco da manhã pelo barulho das explosões, ficará para sempre na nossa memória. Naquele dia, nós caminhamos pelo Centro de Kiev ao longo da área histórica da cidade, onde moramos. Pesquisamos onde ficavam os abrigos antiaéreos mais próximos da nossa casa. Os abrigos são construções antigas, quase históricas, erguidas no estilo soviético para o caso de uma guerra contra a Otan. No início, não pensamos em deixar Kiev. Não nos parecia possível, imaginável, que a Rússia fosse bombardear a capital da Ucrânia. Mas, àquela altura, o inimaginável até já tinha acontecido. Não, não fomos ingênuos. Foi apenas o despreparo do homem moderno para os horrores que pertencem ao passado, pelo menos ao século passado.
Quando finalmente decidimos partir, saímos de carro para nossa casa na região rural de Zhytomyr, a 100 km de nosso apartamento em Kiev. Já estávamos quase saindo de Kiev quando vi um engarrafamento sem fim à minha frente, tentando sair da cidade. Ali, percebi que a viagem seria longa, mas eu tinha gasolina suficiente. No caminho, pegamos uma amiga, que é professora de música, e seu filho adulto. Eles também queriam ficar na nossa casa em Zhytomyr até a guerra terminar.
Não levamos praticamente nada conosco, exceto a comida que estava na geladeira e uns ossos para os cachorros dos nossos vizinhos na zona rural. Afinal, na nossa casa havia todo o necessário para a vida diária. Eu até mantinha a casa aquecida, para o caso de uma mudança forçada de última hora. Instalei aquecimento ali em 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia e começou a guerra em Donbass. Mas, naquela ocasião, não chegamos a mudar para lá. A guerra se limitou à região de Donbass, Kiev se manteve em segurança. Mas, no início de 2020, fomos para lá, para fugir da pandemia. Ficamos quase um ano em quarentena. Foi um ano feliz e tranquilo. Escrevi dois romances e muitos outros textos.
Agora, já no terceiro dia desta guerra, estávamos voltando para a casa de Zhytomyr. Mais precisamente, estávamos parados em engarrafamentos sem fim tentando voltar para lá. Quando havíamos avançado uns 8 ou 10 km a partir de Kiev, tivemos que parar novamente. Um míssil, ou um projétil, passou voando acima de nós. Depois, dois caças ucranianos. Abaixei as janelas do carro para escutar o que estava acontecendo. Ouvimos intermináveis explosões e rajadas de artilharia – eram batalhas acontecendo muito perto de nós, do lado direito da estrada nos subúrbios de Gostomel, Bucha e Vorzel.
No acostamento, havia carros abandonados, além de famílias com mochilas caminhando rumo ao Oeste. Havia grupos de estudantes indianos e árabes. Alguns levantavam a mão, pedindo carona. Parecia muito estranho aquilo – ficar com o braço erguido para chamar a atenção de carros parados num engarrafamento. Vimos motoristas dando carona para pessoas na estrada. Pelo menos a temperatura estava mais quente dentro do que fora dos carros.
Logo que chegamos à aldeia, mostramos aos nossos amigos o quarto onde iriam ficar. Em seguida, um amigo ligou dizendo que devíamos seguir em frente e procurar outro lugar. Disse que os tanques russos estavam avançando exatamente na direção de Zhytomyr e não demorariam a bloquear a estrada principal rumo a Oeste.
Entrei em pânico. Trouxemos todas as nossas coisas de volta para o carro. Cumprimentamos nossos vizinhos rurais, Nina e Tolik, um casal de aposentados, e logo nos despedimos dos dois. Nina chorava. Tolik, em silêncio, apoiava a bengala no chão.
E então dirigimos 22 horas até Lviv, um percurso que, normalmente, se faz em cinco horas. Quando um engarrafamento de 60 km terminava, outro engarrafamento começava, cinco minutos depois. À noite, durante a viagem, comecei a adormecer ao volante e resolvemos parar. Duas horas de sono sentado no carro me devolveram as forças e seguimos viagem. Pela manhã, chegamos a Lviv. Ali, reencontramos nossos outros filhos, que, na véspera da guerra, tinham ido passar um fim de semana prolongado para passear pelos cafés e pelas ruas antigas dessa linda cidade.
Lviv estava lotada de refugiados. Ali, vimos milhares de carros com placas de todos os lugares do Sul e do Leste da Ucrânia, e muitos carros de Kiev. Perto do apartamento que nossos filhos e seus amigos tinham alugado pelo Airbnb, havia uma loja de armas para caça e esporte. Ainda estava fechada, mas na porta já se formava uma fila de umas vinte pessoas. Entre elas, várias moças.
Decidimos continuar avançando mais para o Oeste – em direção à Polônia. E agora, aqui estamos, no sopé dos Cárpatos ucranianos. Nessas montanhas, a própria natureza nos prepara para a reflexão, ainda que continuemos a testemunhar filas infindáveis de carros com refugiados seguindo rumo à Europa. Indo-se um pouco mais para o Oeste, encontram-se vários postos de passagem na fronteira.
Jornalistas de diversos países me ligam e todos fazem uma mesma pergunta: “Qual é o motivo desta guerra?” A resposta é muito simples e muito complexa.
Há vinte anos, Vladimir Putin repete o mesmo mantra: “Os ucranianos e os russos são um só povo.” Traduzindo, Putin quer dizer que “os ucranianos pertencem à Rússia”, mas os ucranianos não concordam com isso. Há muitos anos, Putin também diz que sua maior tragédia pessoal foi o colapso da União Soviética. Os ucranianos também não concordam com isso. Para a maioria deles, esse colapso não é uma tragédia. É uma chance histórica de se tornar um país europeu e recuperar sua independência do Império Russo.
Antes, Putin queria que a Rússia voltasse a ser temida. E conseguiu. Desejava ter o controle político total sobre a Federação Russa. Também conseguiu. Hoje, é um país imenso, com um sistema de partido único e com uma oposição fisicamente destruída. Tal como a União Soviética.
Agora, depois de envelhecer dramaticamente em seu isolamento voluntário durante a pandemia, Putin decidiu que quer aparecer nos livros escolares da Rússia como o líder que conseguiu recriar a União Soviética, ou recriar o Império Russo. Putin não tem outras ambições. Nem precisa mais de dinheiro – não há casas de câmbio no outro mundo, nem restaurantes de luxo. O que Putin precisa agora é da Ucrânia, da Belarus e, creio eu, de outros territórios que faziam parte da União Soviética ou do Império Russo.
Ele nega que os ucranianos sejam um povo separado. Diz que a Ucrânia foi inventada por Lênin. Não adianta analisar suas declarações.
A Ucrânia tem a sua própria história, assim como a Rússia tem a sua. Houve momentos em que a história da Ucrânia dependia da história da Rússia. Mas nos séculos XVII e XVIII, quando a Rússia ainda era uma monarquia, a Ucrânia realizou eleições para o cargo de comandante em chefe, ou atamã, do Exército cossaco. Na Ucrânia, os cossacos elegiam seus oficiais de alta patente. A Ucrânia tinha seu próprio serviço diplomático, seu próprio sistema judiciário. E estava constantemente em guerra – primeiro com a Polônia, depois com a Rússia, mais tarde com a Crimeia turca. Assim, nos mapas antigos, o território ucraniano aparece com fronteiras diferentes em anos diferentes.
Em 1654, no entanto, o atamã ucraniano Bogdan Khmelnitski pediu ao czar russo ajuda militar contra a Polônia. Deu-se aí o fim da independência ucraniana. A Rússia atendeu ao pedido de ajuda, mas então tomou a Ucrânia, na prática, e dissolveu o Exército cossaco. Os cossacos tiveram a opção de servir no Exército czarista russo, ou mudar para o Norte do Cáucaso e se assentar ali. Ou, então, se tornarem camponeses, mas já sob o controle do Império Russo.
Os ucranianos nunca tiveram um czar e nunca estiveram dispostos a obedecer a czar nenhum. Os russos, pelo contrário, viveram durante séculos numa monarquia, e amavam seus czares. Às vezes, matavam um czar, mas logo depois adoravam o czar seguinte. A lealdade à monarquia continuou visível na era soviética. Dos seis secretários-gerais do Partido Comunista da União Soviética, só um foi demitido – Nikita Kruschev, que, embora russo, mudou-se para a Ucrânia quando era jovem. Os outros, à exceção de Mikhail Gorbachev, permaneceram como líderes do Estado soviético até o dia da sua morte. Enquanto Putin governa a Rússia, a Ucrânia já teve cinco presidentes.
Os ucranianos são individualistas, são egoístas, são anarquistas, não gostam de governo nem de autoridade. Eles acham que sabem como organizar sua vida, seja qual for o partido ou a força política que estiver no poder. Se não gostam das ações das autoridades, eles saem à rua para protestar e organizam manifestações de rua, as “Maidans”.[1] Qualquer governo na Ucrânia tem medo da rua, medo de seu povo.
Na Rússia, boa parte dos cidadãos leais à sua autoridade tem medo de protestar e está disposta a obedecer a qualquer regra criada pelo Kremlin. Agora, estão todos isolados do universo das informações, cortados do Facebook e do Twitter. Mas mesmo antes, acreditavam mais nos canais oficiais da tevê do que nas notícias de outras procedências.
Na Ucrânia, há cerca de quatrocentos partidos políticos, o que talvez seja mais uma prova do individualismo de seu povo. Os ucranianos, em sua maioria, não gostam de votar na extrema esquerda nem na extrema direita.[2] Basicamente, são liberais de coração.
Com tudo isso, as memórias históricas que os ucranianos conseguiram recuperar depois da abolição da censura soviética não poderiam deixar de afetar sua visão política. Agora que sabem mais sobre as deportações de camponeses ucranianos para a Sibéria e o Extremo Oriente, durante os anos 1920 e 1930, eles podem dizer com segurança: “Nós e os russos somos dois povos diferentes!” As deportações ocorreram como punição aos ucranianos que não queriam participar das fazendas coletivas. Os ucranianos não são coletivos – cada um quer ser dono da sua própria terra, sua própria vaca, sua própria safra.
Depois das deportações, a próxima punição para os ucranianos pelo seu individualismo e falta de disposição de se tornar um “povo soviético” foi a fome artificial de 1932 a 1933, promovida por Josef Stálin. Oficialmente, toda a safra de grãos e todos os alimentos foram tomados dos ucranianos para ajudar os russos famintos no Volga. Mas eles levaram todos os grãos, todos os produtos, deixando os ucranianos morrerem de fome. Grupos famintos tentavam entrar nas cidades para se salvar da fome, mas o Exército soviético se postou ao redor das cidades e não os deixava entrar. Não há números exatos de mortos, mas estamos falando em milhões. Depois do chamado “Holodomor” – isto é, a morte pela fome –, a polícia soviética passou a perseguir os sobreviventes e os acusar de canibalismo, o que muitas vezes era verdade.
O principal herói do nacionalismo ucraniano, Stepan Bandera, foi criado pela propaganda soviética depois da Segunda Guerra Mundial. Sua imagem de anti-herói foi feita com tanta diligência pelos soviéticos que para muitos ucranianos Bandera se tornou um verdadeiro herói. Elogiar o que a União Soviética odiava era um hábito dos ucranianos, embora não haja nada heroico na biografia de Bandera. O sujeito era um cidadão da Polônia que organizava ataques terroristas no território polonês. Enviava estudantes ucranianos idealistas para matar políticos e estadistas poloneses, e liderou uma das várias organizações nacionalistas ucranianas. Durante a Segunda Guerra, Bandera esperava que a Alemanha nazista permitisse a criação de uma Ucrânia independente. Em resposta às suas demandas de independência, os alemães o mandaram para o campo de concentração de Sachsenhausen, onde ficou até o fim da guerra. Ele não chegou a lutar. Encerrada a guerra, escondeu-se em Munique, onde foi morto em 15 de outubro de 1959 por um agente do NKVD, o órgão que cuidava da segurança interna da União Soviética. A Ucrânia já teve heróis mais brilhantes – mas a imagem de Bandera acabou ficando maior do que as dos combatentes que, com armas na mão, lutaram contra o Exército soviético durante muitos anos depois da Segunda Guerra.
Hoje, é ridículo falar que a Ucrânia odeia os falantes de russo ou pratica o antissemitismo. Afinal, o presidente é Volodymyr Zelensky. Foi eleito por 73% dos eleitores, é um judeu, nasceu no Sul da Ucrânia e sua língua materna é o russo. Ainda assim, a Rússia mantém a narrativa do antissemitismo e do ódio aos falantes de russo. E, enquanto isso, bombardeia cidades onde vivem principalmente russos étnicos e pessoas de língua russa: Kharkiv, Mariupol, Chernihiv, Okhtyrka, Kherson e assim por diante. Creio que é entre eles que se encontra agora o maior número de vítimas.
Até o momento em que escrevo, o Exército ucraniano está conseguindo defender o país. Os ucranianos estão acostumados com a liberdade e dão mais valor à liberdade do que à estabilidade. Para os russos, é o contrário. Eles valorizam mais a estabilidade do que a liberdade. Os ucranianos nunca aceitaram a censura. Sempre quiseram dizer e escrever o que pensam. É por isso que quase todos os escritores e poetas ucranianos dos anos 1920-30 foram fuzilados pelas autoridades soviéticas. Toda uma geração de escritores daquela época hoje é chamada de “revival executado”. Sob a Rússia, pode surgir uma outra “geração executada” de escritores e políticos ucranianos, filósofos e filólogos – todos aqueles para quem a vida sem uma Ucrânia livre não faz sentido.
Conheço pessoalmente muitas dessas pessoas, das quais sou amigo. Eu me considero uma delas.
É assustador escrever essas palavras, mas vou escrever mesmo assim: a Ucrânia será livre, independente e europeia – ou não existirá. E se não existir, os livros de história europeia tratarão do assunto, mas esconderão, vergonhosamente, que a destruição do país só foi possível com o consentimento tácito da Europa e de todo o mundo civilizado.
Nesses dias todos, tenho tentado escrever um diário. Mas não quero escrever quais cidades e vilarejos foram bombardeados pelos russos hoje, quantas vítimas civis e militares caíram ontem. Claro, posso registrar as histórias de meus amigos que escaparam de cidades ocupadas ou semidestruídas, ou que estão tentando escapar. E, de fato, estou escrevendo essas histórias, ao mesmo tempo em que acompanho, com tensão, o avanço dos tanques russos rumo à aldeia onde mora meu irmão mais velho, com sua mulher e família dela.
Estou acompanhando a reação do mundo inteiro ao que está acontecendo no meu país. Além disso, encontrei uma forma de sair do país para falar sobre o que está se passando aqui. E também encontrei uma maneira de retornar à Ucrânia logo depois dessas saídas para o estrangeiro. Ainda estamos aqui, somos refugiados há quase um mês, mas estamos no nosso próprio país e não queremos sair.
[1] “Maidan” é sinônimo de praça. Em Kiev, a Maidan Nezalejnosti (Praça da Independência), conhecido palco de protestos populares, concentrou as manifestações da “Revolução da Dignidade”, de 2013-14, que pressionou o governo a integrar a Ucrânia à União Europeia. Com isso, a palavra “Maidan” passou a significar a própria manifestação de protesto.
[2] Na eleição de 2012, pela primeira vez desde a independência da Ucrânia, em 1991, um partido de extrema direita, Svoboda, conseguiu eleger uma bancada própria, com 37 deputados, depois de receber mais de 2 milhões de votos (10,4% do eleitorado). Na última eleição, em 2019, Svoboda voltou a ser uma legenda pouco expressiva. Recebeu 315 mil votos e tem apenas uma única representante no Parlamento, Oksana Savchuk.