Gerald Murnane, em Goroke, na Austrália, em frente a uma oficina comunitária onde faz trabalho voluntário. Apesar de pouco conhecido, seu nome apareceu em listas de candidatos ao Nobel. É um escritor camaleônico: faz um gênero entrar por dentro do outro, a ficção se parece com um ensaio, o ensaio é sempre narrativo, o livro de memórias ganha contornos de um romance familiar CRÉDITO: MORGANNA MAGEE_2018
Algo para minha dor
Como a literatura de um escritor australiano enigmático me fez reviver o luto por meu avô
Felipe Charbel | Edição 184, Janeiro 2022
Em setembro de 2020, num dos momentos mais críticos da pandemia de Covid-19, recebi pelo correio um livro que não lembrava de ter encomendado. Eram as “memórias do turfe” do escritor australiano Gerald Murnane. Eu nunca tinha lido nada de Murnane, mas ele estava há um bom tempo no meu radar – o que estranhei não foi meu interesse por algum dos seus livros, mas justo por esse. Ainda mais estranho era o lapso de memória: não me lembrar de ler sobre o livro ou de ouvir falar mal ou bem, de ir atrás, de passar o cartão de crédito e me arrepender no dia seguinte.
Durante alguns anos tive um único livro de Murnane aqui em casa, que não cheguei a ler. A History of Books (Uma história dos livros) foi presente de um amigo. O título é enganoso. Sugere uma crônica sobre a “revolução da cultura impressa” ou uma breve história da tipografia, mas passa longe disso. O livro traz um relato pessoal – a ficção beirando o ensaio – sobre as “imagens mentais” que se formam dentro da gente quando lemos um texto, e ficam adormecidas, às vezes por muitos anos, até virem à tona de um jeito inesperado. É o tipo de obra que costuma me ganhar logo de cara – livros sobre livros ou sobre leituras. Ainda assim eu evitava o livro. E o motivo do rechaço era dos mais fúteis: acho a capa horrível, com aquela foto imensa do autor numa pose meio sacerdotal (Murnane foi seminarista na juventude). Sem contar que o volume, alto e molenga, não parava de pé em nenhuma prateleira.
“E aí, leu?”, meu amigo às vezes me perguntava. “Achei massa”, eu mentia – e mudava de assunto. Até pensei que Something for the Pain (Algo para a dor), o livro sobre turfe, pudesse ser a sua tacada final para me converter ao “murnanismo”, o grupo de fiéis leitores desse ex-seminarista obscuro, que inclui admiradores ilustres como J. M. Coetzee, Ben Lerner e Teju Cole. Mas a nota fiscal mostrou que não. Pouco antes da pandemia, eu mesmo entrei no site de um sebo inglês e comprei o livro, que acabou retido por força da barreira sanitária. É claro que não me lembro de nada disso, só deduzo. A única explicação que encontro para esse meu apagão é o hábito – que não recomendo a ninguém – de tomar meus 10 mg de indutor de sono e, em vez de ir para a cama, já meio dormindo, abrir o computador e torrar o dinheirinho que consigo poupar quando estou acordado.
Estou sendo injusto quando chamo Murnane de “obscuro”: a primeira vez que vi o seu nome foi numa lista de cotados para o Nobel. Não dou muita bola para prêmios literários. A parte do cheque polpudo deve ser deliciosa para quem vence, mas, como leitor, não me lembro de ir atrás de um livro só porque tirou o primeiro lugar num concurso. Já o contrário acontece com mais frequência, não ler só de birra, só porque o livro ganhou um prêmio e todo mundo está comentando. Costumo escolher minhas leituras com base em outro critério, o dos “leitores confiáveis”, pessoas queridas cujo gosto compartilho: a literatura para mim é a extensão da amizade, é a amizade por outros meios.
Com o Nobel, no entanto, tudo isso – “critérios” e birras – cai por terra. É assim por duas razões. A primeira é o gosto antigo por apostas, que vem de família. Meu pai passava a semana fantasiando com os 13 pontos da loteria esportiva: até comprou um CP-500 quando ninguém sabia que uso dar aos computadores, e aprendeu a programar em Basic para ver se ampliava suas chances de ganhar. Não deu em nada: domingo à noite era aquele clima de velório depois da rodada do futebol. Conheço bem as compulsões envolvendo dinheiro, e então – um pouco como os filhos de alcoólatras que se tornam abstêmios – aprendi a pisar no freio. Jamais aposto dinheiro. Já apostei cerveja, livro, jantar, até paçoca (a moeda corrente na época do ensino médio). Não fujo de um bolão: Oscar, Copa do Mundo, grupo de acesso do Carnaval da Intendente Magalhães. Com o Nobel de Literatura não ia ser diferente.
O outro motivo, efeito do primeiro, tem a ver com as listas de cotados para o Nobel da Ladbrokes, a casa britânica de apostas. É claro que elas não levam em consideração o valor literário: por isso mesmo me interessam. Nessas listas, a autoria é convertida em ativos – a lógica que conta é a do mercado. Não tem exatamente a ver com as vendas, que para o Nobel nem contam tanto, mas com o prestígio que vem acoplado a um nome próprio e que a premiação só faz multiplicar (a exceção é Bob Dylan, caso raro de um premiado com mais prestígio que o prêmio conferido a ele).
Foi numa dessas listas que tomei conhecimento de Murnane. Seu nome pagava 50 libras para cada libra apostada, e isso fazia dele um baita azarão – se bem que o Nobel é a única corrida em que ninguém sabe ao certo quem está no páreo. Talvez o adjetivo “obscuro” se justifique, no fim das contas, por esse lugar de eterno azarão, que tem a ver com o fato de Murnane ainda ser pouco conhecido fora da Austrália. E mesmo na Austrália suas narrativas longas e coletâneas de contos ou ensaios costumam sair com tiragem reduzida. A exceção é The Plains, publicado em 1982 e recentemente traduzido em Portugal como As Planícies. É de longe o seu livro mais conhecido, talvez por ser um dos mais “convencionais”, aquele que mais se assemelha a um romance (por “convencional” entenda-se “não absurdamente estranho”, daí as aspas). As Planícies é uma dessas narrativas, como O Deserto dos Tártaros de Dino Buzzati e À Espera dos Bárbaros de J. M. Coetzee, em que a paisagem – rincões, fins de mundo, terras do sem fim – é a grande protagonista, uma dessas ficções em que a inação é a força propulsora do enredo, se é que existe um enredo ali.
A literatura de Murnane é muito plástica. O escritor e poeta norte-americano Ben Lerner lembra que o australiano “sofre de anosmia, a inabilidade de sentir cheiros, embora ‘sofrer’ talvez seja a palavra errada, já que ele diz que isso intensificou sua experiência das cores, dando a ele o dom da sinestesia”. Em Invisible Yet Enduring Lilacs (Lilases invisíveis mas duradouros), um de seus contos-ensaios mais arrebatadores, Murnane investiga a explosão de imagens que toma conta da sua mente quando ele pensa no livro Em Busca do Tempo Perdido, de Proust. Não se trata de algo tão banal como “reconstruir”, com auxílio da memória, aquilo que está “dentro do livro”. É muito mais rico. “Hoje não estou escrevendo sobre um livro ou mesmo sobre a minha leitura de um livro. Estou escrevendo sobre as imagens que surgem na minha mente sempre que tento me lembrar de ter lido aquele livro.” O que Murnane faz é pintar paisagens de leitura – a mescla de sensações físicas e lampejos visuais evocados no ato de ler. Essas paisagens são cenas interiores. Elas são paisagens com um leitor.
Na origem do gosto familiar por apostas, estava o meu avô. Ele era viciado em corrida de cavalos, apesar de não enxergar quase nada – pelo que me disseram, começou a ver tudo embaçado já na adolescência, e a situação foi piorando com o tempo. Na minha memória, meu avô está sempre com os olhinhos espremidos, o jornal colado no rosto. Acho que ia ao Jockey Club mais pelo clima, pelo burburinho – e para apostar nos cavalos, é claro. Sempre que ganhava uns trocados me levava na lojinha da esquina e dizia: vai lá, escolhe o carrinho que você quiser. Infartou com 54 anos, jovem e falido. Acho que morreu de desgosto, de tanto se ferrar no jóquei.
Fiquei uns dias encarando Something for the Pain. Eu não fazia ideia do que tinha me levado àquele livro, não sabia o que fazer com ele. Na capa também havia uma foto, mas no lugar do autor sisudo aparecia um simpático menininho de sorriso sacana. Dessa vez a capa me atraiu, era bom tirar o livro da estante e olhar para ele sem nenhum pensamento na cabeça, apenas porque era um objeto bonito, convidativo. O menino da capa aparentava ter uns 7 ou 8 anos – era mais ou menos a idade que eu tinha quando meu avô morreu. Assim que me dei conta disso, tomei a decisão, meio irrefletida, de ler o livro com uma caneta na mão e um caderninho no colo, num esforço de encontrar algumas imagens do meu avô que estavam adormecidas há muitos anos dentro de mim. Sem que eu soubesse, esse procedimento era “murnaniano” até a raiz (mas isso só descobri depois de ler outras coisas dele).
Eu sabia que a obra de Murnane era difícil, labiríntica, o que trazia riscos ao procedimento. Mergulhar na poética de alguém exige paciência: é preciso voltar as páginas, reler, pesquisar, ou às vezes deixar a coisa fluir sem entender ao certo o que está em jogo. Mas as diversas camadas na topografia do meu interesse por Murnane – o incentivo de um “leitor confiável”, o nome nas listas do Nobel, a admiração de escritores da minha adoração, o modo como as “memórias do turfe” chegaram até mim – pareciam assegurar um terreno fértil a esse tipo de aventura por escrito.
Já nas primeiras páginas encontro alguma coisa. Murnane é o pequeno Gerald, um menininho de 5 anos (ou um pouco mais) que está no quintal de casa, com os ouvidos atentos aos sons que chegam da cozinha, onde os pais acompanham a transmissão radiofônica de uma corrida de cavalos. O menininho preferia estar junto deles, mas os pais não querem dar corda às obsessões de uma criança que tem fixação por cavalos – não querem que o filho siga os passos do pai e se torne um apostador compulsivo no futuro. O que chega até Gerald é a voz do locutor se fundindo aos urros do público numa massa abafada de sons. Mas dentro da sua cabeça, a massa sonora recupera algumas imagens em preto e branco – as fotos que aparecem nos jornais – de jóqueis montados em seus cavalos. É assim, nessa fusão de sons e cores, que vão ganhando corpo as “corridas imaginárias” feitas de “imprecisas formas de cavalo” e de “pessoas sombreadas”. Copio no caderno a passagem sobre as “corridas imaginárias”, depois anoto:
avô roncando – algazarra no radinho de pilha – barriga peluda subindo e descendo – maçãs enroladas em papel azul e carrinhos de plástico sobre o carpete – me sinto protegido.
Meu avô vendia frutas para os feirantes. Volta e meia ele trazia as sobras para casa, algumas caixas de madeira com maçãs enroladas num papel azul fininho. Ou vai ver que o papel não era azul e eu estou me apossando, sem saber, dos lindos versos de Caetano em Trem das Cores –
a seda azul do papel que envolve a maçã.
– ou então foi o movimento reverso, e no momento que ouvi a canção pela primeira vez as maçãs embrulhadas em seda azul aderiram à minha memória e acabaram se cristalizando como paisagem de leitura. Murnane abria meu pensamento a esse conjunto difuso de fenômenos que ele chama de “sensação das coisas”: o modo como vivenciamos certas imagens que só existem dentro da gente.
“Isso de ‘Tempo’ não existe”, Murnane escreve em Last Letter to a Reader (Última carta a um leitor), seu livro mais recente: “Só o que experimentamos é lugar depois de lugar.” Aos 82 anos, Murnane dá toda a pinta de que está se despedindo da literatura, mas com ele não dá para saber (desde os anos 1990 ele flerta com a aposentadoria). No livro, Murnane relê a si mesmo. A releitura é na verdade um pretexto, o gancho para ensaiar reflexões sobre a memória (“um ato realizado pela primeira vez no lugar infinito que chamamos de presente”), a leitura (“uma infinidade de imagens vem à tona durante a leitura de um texto”), o valor de uma obra (“julgo o valor de um livro de acordo com o período de tempo que o livro permanece na minha mente”).
Murnane (seu nome tem quase o mesmo som de Montaigne) é um ensaísta de mão-cheia. Mas o que ele escreve raramente tem a aparência de um “ensaio puro”, se é que isso existe. É mais camaleônico: faz um gênero entrar por dentro do outro, a ficção se parece com um ensaio, o ensaio é sempre narrativa, o livro de memórias ganha contornos de um romance familiar. Em certo momento de Last Letter to a Reader, Murnane chama seus textos de borderline pieces: peças limítrofes, que borram as fronteiras entre os gêneros literários. Acho que sua literatura também é borderline em outro sentido. Me refiro à linha divisória – tão convencional como o trópico de Câncer ou a linha do Equador, mas nem por isso menos real – entre o espaço e o tempo.
De dia meu avô dormia, de madrugada trabalhava, e no horário das corridas – se não me engano elas aconteciam no fim da tarde – ele em geral estava cochilando, mas sempre com o rádio ligado. A cena dele roncando alto enquanto eu brincava no carpete com os carrinhos de plástico me fez imaginar que a voz do locutor devia invadir os sonhos dele, e que havia muito espaço lá dentro, na sua vida onírica, para algumas “corridas imaginárias”. De modo análogo ao que acontece com Murnane, a compensação pela escassez de um dos sentidos (no caso do meu avô, a visão) talvez fizesse dessas corridas uma sucessão de imagens sonoras, ou uma tempestade de cheiros e sabores.
Gerald Murnane e meu avô viveram em cantos opostos do planeta, o Brasil e a Austrália, e ainda assim dividiram o mesmo mundo. E não apenas porque nasceram na década de 1930, mas sobretudo pela paixão por esse esporte que, hoje, já não desperta a comoção de antes. Quando eu morava em Copacabana, gostava de observar os velhinhos que se reuniam numa casa lotérica para acompanhar a transmissão do Jockey Club – o portão aberto só até a metade para deixar claro que era um evento reservado. Na minha infância o turfe ocupava um espaço nobre nos jornais. O locutor oficial das corridas, o Ernani Pires Ferreira (“e cruuuuuzam a faixa final”), aparecia diariamente no Globo Esporte, e, sempre num domingo de agosto, transmitia na tevê aberta o Grande Prêmio Brasil de turfe. Era o mundo de Gerald Murnane e do meu avô – um mundo que eu só conheci de relance.
A longevidade faz toda diferença aqui. Meu avô morreu em meados dos anos 1980, enquanto Murnane segue vivo, escrevendo sua melhor literatura. Se tivesse morrido com 50 e poucos anos, Murnane não escreveria suas memórias do turfe. Se meu avô sobrevivesse ao infarto, ele teria sido uma presença na minha vida, não uma ausência. No primeiro caso, Something for the Pain não seria escrito. No segundo caso, eu não seria afetado pelo livro como fui – talvez, inclusive, chegasse a nutrir certa aversão por ele, já que a corrida de cavalo seria vista por essa versão alternativa de mim mesmo como o vício que arruinou minha família.
“Escrevi em algumas das minhas peças publicadas que toda arte, inclusive a música, aspira à condição da corrida de cavalos”, declara Murnane em Something for the Pain. Nos quatro últimos capítulos arrebatadores, o turfe vira a alegoria de alguma outra coisa: ele é um antídoto contra a dureza da vida, uma compensação. Quando meu avô morreu, o turfe era (devia ser) o que ele tinha à mão para suavizar seu sentimento de fracasso – era “algo para a dor”.
Só guardo três lembranças do meu avô. Duas foram reavivadas por Murnane. Quanto à terceira, preferia que a ferrugem do esquecimento a corroesse. A memória número 1 é o avô roncando alto com o radinho ligado. A memória número 2 é ele me levantando para ver o volante de um Opala (eu era fascinado por volantes de carros, vai entender a mente das crianças). A memória número 3 é ele gritando comigo num domingo de tarde: sei que é domingo porque o Silvio Santos está na tevê fazendo aquelas coisas que ele faz. Meu avô tinha adoração por mim. Isso é o que dizem, é o que lembro de sentir. Ainda assim, foi justo o seu único momento de explosão comigo (ele já desgostoso e com os credores no encalço) o que ficou grudado nas paredes escorregadias da minha memória em formação. Queria passar a borracha nessa lembrança injusta, mas isso não está ao meu alcance. Algo que me espanta em Murnane é que, assim como o seu adorado Proust, ele parece ter compreendido alguma coisa, por mais ínfima que seja, sobre o funcionamento dessa engrenagem tão complexa que é a mente humana – sobre o sutil mecanismo da memória involuntária.
Lendo o que Murnane escreve sobre os meses finais de sua esposa, perto do último capítulo, me vem à mente uma cena – na verdade uma sequência – associada a esse meu primeiro contato com a morte. Lembro do telefone tocando. Lembro da minha mãe gritando pelo meu pai. Lembro que era de noitinha (décadas depois chequei a certidão de óbito do meu avô e vi que era isso mesmo). Lembro de olhar pela janela do sétimo andar e ver o carro do meu pai subindo na contramão a rua em frente à nossa. Lembro de como isso me impactou: foi a desestabilização do mundo como eu o conhecia, já que, no meu fascínio por tudo que dizia respeito a carros, eu não compreendia o motivo de darmos aquela volta imensa no quarteirão para ir até o prédio da minha avó, quando a pé era tão mais rápido. Nessas horas, muito calmamente, meu pai me explicava o conceito de contramão.
É claro que essas cenas não são, não podem ser, retratos fiéis do que realmente aconteceu. O que me faz desconfiar disso tudo é a recordação que tenho do funeral do meu avô. É uma palavra meio pomposa, funeral, mas que condiz com a grandiosidade do evento que acompanhei pela tevê. Lembro das pessoas segurando bandeirinhas, chorosas. Lembro do imenso carro preto que levava o caixão. Lembro dos batedores e suas motocas enfileiradas. Lembro de comentar na escola no dia seguinte que o enterro do meu avô tinha sido televisionado – e das outras crianças rindo alto e me dando uns sopapos na cabeça.
Só em 2017 decifrei o enigma. Eu estava no Cemitério do Caju para o velório da minha avó, que sobreviveu trinta e poucos anos ao marido. Eles tinham comprado uma tumba que parcelaram em 120 prestações – a única escritura de compra e venda que ela assinou na vida. Enquanto teve saúde, minha avó ia uma vez por mês ao Cemitério do Caju e passava Perfex nas fotos dos mortos, lavava o jazigo com água sanitária. Cuidava da sua propriedade. No dia do enterro, um dos coveiros disse que ainda se lembrava dela: “Uma senhorinha, baixolinha, cabeça toda branca?” Quando o caixão ia descendo, reparei numa placa com os dizeres Jazigo perpétuo da família Nicolau, e logo abaixo os nomes e as datas de nascimento e morte de quem está enterrado ali. Meu avô era, sempre vai ser – o jazigo é perpétuo – o morador mais antigo. Está ali desde 29 de março de 1985.
Faço as contas, checo no Google. Meu avô infartou três semanas antes da morte do Tancredo Neves. O que acompanhei na tevê foi o enterro do presidente, e não do meu avô – o enterro que parou o país na mesma época que, lá em casa, vivíamos o luto pelo desaparecimento repentino do supridor da família. Aos 7 anos e 10 meses de idade, foi o modo que encontrei de assimilar aquelas imagens que se desenrolavam diante de mim, foi como dei algum sentido a essa coisa absurda que é a morte: transformando a minha dor de menino, difícil de traduzir em palavras, em um sentimento aglutinador, algo que não estava fechado dentro de mim ou que era restrito a meus familiares. Havia muito mais gente com saudade do “velho Nicolau”, um país inteiro, e essas pessoas sofriam de modo até mais intenso que eu. Isso deve ter me apaziguado um pouco – foi algo para minha dor.
Só na semana passada, pouco antes de começar este ensaio, é que fui ler A History of Books. As ideias de Murnane sobre a leitura e a escrita estão todas ali: ele não tem receio das repetições, faz delas um recurso, uma de suas marcas. Dos livros dele que li, acho que é o mais maníaco, o mais complexo. Talvez seja o meu preferido. Mas quando eu for pensar em A History of Books daqui a alguns anos, quando ele se cristalizar numa paisagem de leitura, acho que o que vai vir à tona será um pensamento que me veio enquanto eu folheava o livro, antes mesmo de ler a primeira frase. O livro é desproporcional nas suas medidas – alto e gordo, as letras muito grandes – porque foi concebido para pessoas com algum tipo de dificuldade de leitura, inclusive pessoas com baixa visão. Está nos créditos, não é uma dedução que faço. Meu amigo não fazia ideia disso quando me presenteou com o livro, também não me passou pela cabeça. O pensamento que me veio, e não sei bem o que fazer com ele, é que aquele era um livro que meu avô conseguiria ler.
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