Um amigo bem treinado em psicanálise já insinuou que inventei a minha própria kashrut, o conjunto de restrições alimentares imposto aos judeus. Pode ser: eis a religião de um homem só IMAGEM: SALAD_TILL NOWAK
Alimentar, meu caro Watson
Minhas manias à mesa
Leandro Sarmatz | Edição 131, Agosto 2017
Estava com pinta de ser hepatite. Com certeza era alguma coisa do fígado. Minha cor denunciava. Podia mesmo ser algo pior: o filho de uma conhecida tinha definhado em questão de meses, a pele murcha e azeitonada, até descobrirem que ele tinha A doença – bate três vezes na madeira –, sim, um adolescente com C-Â-N-C-E-R. A família estava devastada. Um horror sob quaisquer circunstâncias.
No banco de trás do Chevette bege do meu pai, eu ouvia minha mãe contar ininterruptamente essa e outras histórias assustadoras de pessoas doentes com suas cores bizarras enquanto percorríamos a rota Capão da Canoa-Porto Alegre pela freeway, a então moderna rodovia que ligava a capital gaúcha ao litoral do estado. Meus pais haviam ido a Garopaba, em Santa Catarina, e no caminho de volta me pegaram em Capão, onde absolutamente todos os meus amigos e colegas de escola passavam os quase três longos meses de férias escolares. E toda a parentada também. A velha turma, gente que ainda falava com sotaque carregado do Leste Europeu, estava toda lá torrando na areia. Capão era nossa Badenheim, nosso Guarujá: um shtetl à beira-mar, um lugar ensolarado e apinhado de gente para onde, no verão, grande parte da comunidade judaica ia se refugiar do calor úmido e pegajoso da capital.
Todo mundo estava lá. Inclusive uma das três irmãs da minha mãe, que tinha um apartamento de quarto e sala no térreo de um condomínio a três quarteirões da praia: Edifício Parque Residencial. Tia Guite (née Guilhermina) não era paciente como meus pais, que toleravam que eu só comesse bife e batata frita, ou coxa de frango com polenta, ou bife à milanesa com purê de batatas. Ou qualquer uma dessas carnes com bolinho de arroz – mas sem salsinha ou outro tempero de cor verde. Nisso consistia 99% da minha dieta naquela época. Todo santo dia. Feijão: somente o caldinho. Arroz, massa, salada? Jamais. Frutas? Apenas maçã. Bem, ela era minha tia, não era minha mãe, então não era de esperar que tivesse paciência com as minhas manias, é claro. Eu é que me virasse para saciar a fome durante a semana em que seria seu hóspede na praia. E assim desembarquei no primeiro dia com quatro pacotes de supermercado cheios de saquinhos de Cheetos, Fandangos, Stiksy (aqueles palitinhos crivados com pequenas verrugas de sal grosso) e Zambinos. Cebolitos, não: eu tinha nojo, porque naquela época ainda não tolerava cebola.
Foi uma semana animada. Andei de bicicleta, peguei jacaré, brinquei à beça com as outras crianças do condomínio. O problema foi quando meus pais vieram me buscar e notaram que eu estava com uma cor diferente. E não era bronzeado. Aquela não podia ser uma cor saudável. Meu pai me ajudou a carregar o carro com a minha tralha, sem tirar os olhos de mim, em silêncio. Minha mãe ficou conversando com minha tia, tentando descobrir se eu tinha reclamado de febre, ou se passei mal do estômago, ou até mesmo se um desses tipos suspeitos – o litoral estava repleto de pessoas assim, ela achava – teria me oferecido alguma coisa estranha no copo de suco.
Eu tinha 10 anos e estava completamente amarelo. Não tostadinho como na propaganda da Coppertone. Nem vermelho como quase todo mundo naquela era antes do buraco da camada de ozônio e da onda do protetor solar cremoso sobre a pele. Amarelo. E era um amarelo já bastante puxado para o laranja, uma cor absolutamente artificial, não humana, apocalíptica, terminal: eu estava tingido de Pantone 1585.
Corta para o consultório do pediatra, já de volta à cidade. Mexe daqui, vira dali e, após longa e penosa inquirição, a pergunta que decifraria tudo: “O que você andou comendo nos últimos dias?” Sim, senhor, era isso mesmo: eu estava tingido de corante. Por dentro. A dieta à base de Cheetos e derivados (glutamato, sódio, corantes variados) havia deixado a sua marca. Não por muito tempo, ainda bem. Depois de alguns poucos dias de intensa restrição desses demônios amarelo-laranja e crocantes, minha velha cor começou a voltar. Pouco a pouco retomava a paleta de uma criança saudável. Não era problema no fígado. Não eram os primeiros indícios de uma doença incurável. Era o reflexo – colorido e doentio – de uma mania que iria me acompanhar ao longo da vida. Eu nunca aprendi a comer como você.
É preciso fazer a anatomia da minha nutrição. Somos o que comemos, disse Feuerbach, embora originalmente a frase não tivesse a mínima relação com hábitos alimentares e hoje seja usada por aí para vender iogurtes, dietas, papagaiada variada sobre bem-estar. Era um ataque aos discursos vazios dos políticos diante da realidade do povo, que não tinha o que comer. Cerca de dois anos depois desse incidente, meu avô teve que amputar as pernas por causa de diabetes tipo 2. A minha era uma família cercada de parentes diabéticos por todos os lados. Tios e tias cortando um dobrado porque comiam demais coisas saudáveis de menos, estavam com sobrepeso e quase não moviam um músculo durante as horas conscientes do dia. Eu tinha 12 anos, estudava para o meu Bar Mitzvá dali a um ano, comia caixas de Bis escondido no quarto, estava meio gordinho. Comecei a ter pesadelos com a doença. Passei a achar que não completaria 18 anos, ou que então desembarcaria na faculdade com dois cotocos onde antes eu tinha pernas jovens e saudáveis. Eu estava empanturrado de medo.
E olha que em breve eu iria me converter em um homem – pelo menos aos olhos ancestrais da minha religião. Assim, tomei a decisão: nos próximos meses experimentaria tudo aquilo que eu não comia. Mudaria completamente minha dieta, iria me portar à mesa como uma pessoa normal, não mais um adolescente enredado num emaranhado de nojinhos, restrições e nariz tapado. Reeducação alimentar, em suma. Conversei com minha mãe e lhe pedi que a cada almoço introduzisse um alimento novo no meu prato. Ela ficou radiante, coitada. Enfim eu iria enfrentar esse novo mundo de sabores, aromas, cores e texturas. Como um homem. Seria minha passagem para a maturidade, inclusive gustativa. Eu estava pronto para isso. Arroz. Feijão. Macarrão. Queijo. Tomate. Folhas. Ovo. Molho de tomate. Azeitonas. Salame. Panqueca de carne. Creme de legumes. Pizza. (Sim: nem pizza eu comia.) Tudo isso passaria a frequentar meu prato. Um sentimento novo, de radicalidade inédita, ainda que não muito consciente, me tomou de assalto. A vida podia ser mais do que o temor da próxima garfada. Crescer era enfrentar os próprios medos.
Esse período de experimentação consumiu exatos seis meses e 8 quilos. Quando terminou, eu já comia arroz (branco), macarrão (com molho vermelho bem peneiradinho), queijo (desde que derretido), fiambres variados, ovo frito, grão de feijão, lentilha, creme de legumes batidos, além de outras três frutas: banana, abacaxi e mexerica. Nenhuma salada, porém. Folha alguma. Eu nem cheguei a experimentar. Ficava tudo intocado no prato, pois o próprio ato de garfar – digamos – uma folha de alface me provocava náuseas, estômago embrulhado, medo de algo terrível na iminência de acontecer.
Estou assim até hoje, três décadas depois.
Freud, que a julgar pelos relatos foi uma espécie de precursor da moderna tendência “direto da fazenda para a sua mesa” – gostava de sabores genuínos, naturais, e tinha especial pendor para os frutos da terra –, publicou um texto curto em 1907 intitulado Atos Obsessivos e Práticas Religiosas. É quase com alívio que vejo meu próprio comportamento destrinchado ali. O ensaio trata da semelhança entre, de um lado, manias, atos cerimoniais e restrições, e, do outro, os atos desempenhados na vida religiosa: “a doença é constituída de proibições e impedimentos (abulias), que, na verdade, apenas prosseguem a obra dos atos obsessivos, pois algumas coisas não são permitidas ao doente, e outras, somente observando um cerimonial prescrito”.
Parece descrever a kashrut judaica, o corpus de prescrições e interdições alimentares imposto aos judeus à mesa (por exemplo, não comer carne de porco, não misturar leite com carne etc.). Um amigo atilado e bem treinado em psicanálise já insinuou que inventei a minha própria kashrut. Pode ser: eis a religião de um homem só. Tenho uma série de restrições e hábitos que foram sendo construídos ao longo da vida. Seria capaz de escapar disso agora, nos anos de maturidade? Não tenho muita certeza. Já passei poucas e boas por causa das minhas manias. Vexames em outros países, olhares espantados em almoços profissionais, descrédito em jantares de primeiro encontro com garotas. Meu primeiro almoço com novos colegas de trabalho costuma ser como a chegada do circo à cidade: um show de excentricidades tragicômicas. Seguido de explicações que já tenho perfeitamente formatadas.
Por exemplo, raspo toda a salsinha do peito de frango: não suporto a folhinha tocando meus dentes. Só como amarelo mole com amarelo duro, ou seja: pode queijo derretido (mole) na pizza (massa dura), no sanduíche (pão crocante), no pastel (esturricado). Jamais panqueca ou lasanha (massa tenra) de queijo. Chego às raias do vômito se tudo for igualmente cremoso e amarelo no prato. Tomate, nunca: somente o molho. Nenhuma carne crua. Nenhuma folha (já disse). Nada que seja vegetal e crocante ao mesmo tempo, como rabanete (não vale para frituras, como aquelas ervilhas apimentadas com wasabi que vêm do Japão). Frios em geral, o.k. Peixes também. Não me convide para “queijos e vinhos”: vou me empanturrar de pão e provavelmente ficar bêbado. O cheiro, o aspecto e a textura de coisas como cenoura, vinagre, couve, repolho e molho branco me provocam engulhos homéricos. A lista é longa. Melhor parar por aqui. Ou até o próximo almoço.
Nunca fui capaz de matar uma barata. O nojo misturado ao pavor me paralisa. Outro dia, enquanto desfiava todas as minhas interdições a uma criança – que me olhava sem acreditar que um adulto comesse pior do que ela –, foi que deslindei esse comportamento congênere. Minha relação com uma folha de alface respingada de vinagre balsâmico é a mesma que tenho com aquela barata que irrompe na cozinha no meio da noite. Pavor e incompreensão absolutos. Nojo, pânico, que tem a ver com a textura, a anatomia, o grau de imprevisibilidade tanto do artrópode quanto daquelas folhas verdes. Afasto o bowl da salada, crio “muros” na mesa com garrafas e porta-guardanapos disponíveis. Um muro trumpiano (porque irracional) entre o meu prato e o do vizinho. É patético. Não é maduro. É quase fóbico.
Lachanofobia é como se chama efetivamente a fobia de saladas e legumes. Há sempre um aspecto meio cômico nesses medos irracionais de elementos cotidianos, como tremer feito vara verde diante de uma berinjela no prato. Não estou muito convicto se o que ocorre comigo é mesmo uma fobia. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o famoso DSM, cresce a cada edição com bizarrices similares. Parece haver um traço egoico nisso. Uma sociedade que se compraz em ser hipercatalogada, medicada em excesso em nome de uma norma mais ou menos geral. O que escapar disso vai direto para o DSM. E assim podemos ostentar por aí o quanto somos diferentes.
Quando minha filha foi deixando o leite materno e sendo introduzida à alimentação “sólida”, minha principal preocupação era que ela pudesse macaquear meus hábitos à mesa. Por sorte isso jamais aconteceu. Se maturidade fosse medida pela variedade de alimentos no prato, provavelmente eu estaria algumas gerações atrás dela. Seus amigos na escola, tirando uma ou outra idiossincrasia (o menino que não toma leite, por exemplo), têm uma postura exemplar no bufê: variedade, equilíbrio razoável entre proteína e folhas, ausência de ojerizas muito evidentes.
O que é um tanto paradoxal numa época em que os distúrbios alimentares (como bulimia e anorexia) e as intolerâncias (à lactose, ao glúten) ocupam nossa cultura e as discussões sobre saúde – física e mental – de maneira bastante barulhenta. De certo modo, a gramática do distúrbio alimentar (comer demais, de menos, passar mal por isso ou aquilo, não tolerar algo) penetrou nosso discurso cotidiano. Ninguém mais parece dizer que “comeu até ficar cheio” ou que “comeu feito um porco”, frases que, na origem, devem evocar tempos antigos de momentâneas benesses rurais. Hoje se diz que “tem que parar com tanto carboidrato”, “fazer jejuns intermitentes”, “deixar de comer durante um mês o alimento X”, discursos de caráter restritivo cujo gatilho costuma ser sempre a culpa pela ingestão exagerada de algum tipo de alimento.
Giorgio Agamben, o grande filósofo italiano dos dias que correm, tem um ensaio intitulado “Uma fome de boi” (no livro Nudez). O mote é a origem da relação entre fartura e interdição. O jejum ritual e os banquetes depois de grandes celebrações religiosas (como o Ramadã islâmico ou o Yom Kippur judaico) partilham o mesmo cardápio: o controle exagerado e o descontrole insaciável que são a um só tempo raiz e consequência de um mesmo comportamento ritualizado que o homem criou com a própria fome e a saciedade.
Agamben fala da bulimia e da anorexia, que nos últimos cinquenta anos explodiram na maioria das sociedades com fartura calórica. Retomando o fio com as festas religiosas ancestrais, ele diz que a propensão contemporânea a esses distúrbios revela nossa impossibilidade para o comportamento festivo (e, portanto, ritual) hoje em dia, e essas doenças então podem ser vistas como um resíduo inútil de uma cerimônia de purificação que perdeu o sentido na sociedade atual.
O fato de que eu nunca tenha tido uma “alimentação equilibrada” tem me conduzido a realidades um pouco temerárias, chegando às vezes a arrabaldes muito próximos da bulimia e da anorexia. Já tive episódios de fome insaciável, em que comia quantidades pouco saudáveis de um mesmo alimento (pão, por exemplo), assim como períodos em que deixava de ingerir várias das coisas que me apetecem. O resultado é um desequilíbrio permanente entre o que como e o que deixo de comer. Se preciso fazer uma “dieta” para emagrecer, só me resta cortar radicalmente grande parte do que consumo. Não dá para substituir. Como trocar a carne e a farinha branca por um prato de salada se jamais consegui dar uma garfada nas verduras?
Por causa das minhas manias, e na tentativa de amenizar um pouco o grau estrambótico delas, me transformei numa espécie de escavação arqueológica do consumo calórico, uma espécie de Pompeia de garfo e faca. A criança, o adulto e o velho convivem no mesmo terreno e, quase simultaneamente, levam o alimento à boca. Para contrabalançar o baixíssimo consumo de frutas in natura, sou um ávido useiro e vezeiro de ameixas, damascos e outras frutas secas. Praticamente um ancião turco. Meu café da manhã, como o de uma rosada criança de sitcom, consiste em cereais com leite e alguma fruta inofensiva, como banana em rodelas (e às vezes temperada com uma colherzinha de Nesquik de morango). Não é só você que está morrendo de tédio com a descrição dessa dieta: às vezes eu também não aguento.
Há uma virtude em ser assim, gosto de imaginar. Eu nunca serei um ávido foodie em busca da nova experiência gustativa definitiva. Au contraire: quando descubro um restaurante com um prato que me apraz, fico com ele até o restaurante fechar definitivamente as portas ou – pesadelo dos pesadelos – o chef reformular o cardápio. Me sinto em casa quando a refeição é idêntica à anterior. Não me importo de comer sempre a mesma coisa em determinado lugar. Surpresas à mesa não me atraem. Costumo ter horror a elas. Assim como o Lévi-Strauss de Tristes Trópicos odiava “as viagens e os exploradores”, sou tomado por sentimentos semelhantes quando alguém me diz que o menu da refeição será uma surpresa, uma novidade, algo inesperado. Porque eu aposto que não vou gostar.
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