Zero Três, a banana e as deputadas, que subiram e desceram da tribuna sem dizer palavra. Para uma, “feminismo é uma máquina de moer lindas jovens e transformá-las em barangas”. Para outra, “a mulher aceita a violência porque não quer trabalhar, estudar. Não quer partir para a luta” FOTO: LUIS MACEDO_CÂMARA DOS DEPUTADOS
Anatomia de uma foto
Como a presença de deputadas bolsonaristas rompeu o consenso histórico da bancada feminina na Câmara
Carol Pires | Edição 163, Abril 2020
A jornalista Patrícia Campos Mello tinha acabado de acordar quando recebeu em seu celular uma mensagem de WhatsApp de um de seus chefes. “Bolsonaro falou da Patrícia”, piscou a mensagem às 7h44. “Levei um susto”, ela relembra. Mas só pouco mais de uma hora depois, às 8h51, recebeu a transcrição completa do que o presidente tinha dito: “Ela queria dar o furo”, dissera Bolsonaro para a claque que se reúne na portaria do Palácio da Alvorada, “a qualquer preço contra mim”, continuou, após uma pausa dramática para que apoiadores pudessem rir. Campos Mello respondeu ao seu interlocutor: “Tô com vontade de sumir.”
Desde que publicara, no final de 2018, que empresas de marketing fizeram envios maciços de mensagens pelo WhatsApp contra o PT, Patrícia Campos Mello estava sob ataque nas redes sociais – “Folha da Puta”, “Prostituta da Folha de S.Paulo”, diziam algumas mensagens, nem sequer as mais ofensivas. Em fevereiro deste ano, Campos Mello voltou a ser vilipendiada depois que Hans River do Rio Nascimento, ex-funcionário da agência de marketing Yacows, disse à CPI das Fake News, que investiga o uso de notícias falsas na campanha de 2018, que ela queria “um determinado tipo de matéria a troco de sexo” – informação que a jornalista desmentiu em seguida ao publicar o histórico de conversas entre os dois. Nascimento foi uma das fontes de uma reportagem em que a Folha revelou que empresas fraudavam o registro de chips de celular no nome de idosos para fazer o disparo irregular das mensagens.
Às 9 horas em ponto, a notícia estava publicada no site da Folha de S.Paulo assinada pelo setorista que cobre a Presidência, Gustavo Uribe: “Bolsonaro insulta repórter da Folha com insinuação sexual.” A fala do presidente logo se alastrou por Brasília. Carla Zambelli, deputada federal pelo PSL de São Paulo e bolsonarista atuante nas redes, se adiantou no Twitter: “E aí, qual é a última piada do Bolsonaro que vão tentar transformar em crime?” A paulista Sâmia Bomfim, do PSOL, por sua vez, disparou nas suas redes: “Jair Bolsonaro é o típico machão. Covarde, inseguro e consciente de sua incompetência, tem na misoginia e na violência as válvulas de escape para seus ódios profundos. É um sub-homem que fracassou como militar, como político e como pai. É um infeliz.” Deputada federal mais votada pelo PSOL, Bomfim empenha seu mandato em causas feministas. Quando era vereadora em São Paulo, aprovou uma lei obrigando os estabelecimentos públicos e privados da cidade a afixarem placas sobre o Disque Denúncia da Violência Contra a Mulher, o Disque 180, projeto que agora tenta nacionalizar. Depois de fustigar Bolsonaro virtualmente, Bomfim enviou uma mensagem para a líder do partido na Câmara, Fernanda Melchionna, do Rio Grande do Sul, sugerindo que elas divulgassem uma nota de repúdio em nome das deputadas federais: “Vamos tentar fechar um texto mínimo e apresentar às mulheres lideranças das bancadas…”
Filiada ao PDT de São Paulo, mas rompida com os líderes do partido, Tabata Amaral teve a mesma ideia e escreveu para Sâmia Bomfim, sua colega na coordenadoria da bancada feminina da Câmara. “Esse é um governo muito violento com quem pensa diferente e que encara os jornalistas como se eles fizessem parte da disputa partidária”, disse Tabata, no seu gabinete na Câmara. Alçada ao panteão do debate público depois de cobrar propostas do então ministro da Educação, Ricardo Vélez, em audiência na Câmara, Tabata é frequentemente chamada de “marionete” de outros homens – de Ciro Gomes, de Jorge Paulo Lemann, de George Soros. Aos 26 anos, ela cumpre seu primeiro mandato. Recentemente, passou o dia sendo aviltada por ter apresentado um projeto de lei para instituir a distribuição gratuita de absorventes higiênicos. Nas redes, sua proposta foi chamada de “bolsa perereca”: “Daqui a pouco vão querer distribuir chocolates contra TPM.” Na Gazeta do Povo, o colunista Rodrigo Constantino, com a elegância habitual, publicou: “A sangria que precisa ser estancada, porém, é outra, é aquela dos gastos públicos! […] É preciso declarar guerra contra o fluxo vermelho.”
Para dar força à nota de repúdio contra Bolsonaro e em defesa da jornalista Patrícia Campos Mello, as deputadas levaram a ideia para o grupo de WhatsApp onde estão as 77 deputadas eleitas em 2018 – a maior bancada feminina da história da Câmara, um total de 15% dos deputados. A líder eleita pela bancada é a Professora Dorinha Rezende, deputada em terceiro mandato pelo DEM do Tocantins. Ela foi eleita com o apoio de todas as deputadas de esquerda, que se uniram para isolar Aline Sleutjes, então no PSL, nome preferido das outras nove deputadas do partido governista. “A Dorinha é uma pragmática. Talvez por ser professora, ela se porta de maneira firme, mas sempre muito elegante”, disse a deputada Benedita da Silva (PT-RJ), que foi deputada constituinte e, em 1995, foi eleita a primeira senadora negra do Brasil.
Uma nota contra as declarações de Bolsonaro sobre a jornalista da Folha foi publicada, enfim, no fim da tarde pela Secretaria da Mulher, uma estrutura institucional da bancada feminina. Mas o nome do presidente nem foi citado. “Desde a revelação da jornalista, a mesma tem sofrido seguidos ataques de cunho sexual, inclusive por autoridades da República. É inaceitável que, em pleno século XXI, mulheres ainda sofram violência física e verbal nas diferentes profissões que ocupam”, diz o texto. Parte das deputadas não gostou da nota. “A Dorinha é muito conservadora, então muitas vezes é frustrante”, disse uma delas, que preferiu o anonimato para não se indispor com a líder.
Insatisfeitas com a nota oficial da bancada, resgataram um texto que a equipe da deputada Natália Bonavides (PT-RN) tinha escrito, e saíram caçando deputadas pelo plenário para coletar subscrições. Conseguiram vinte, todas do centro à esquerda do espectro político. Para terem prioridade no microfone, incumbiram Fernanda Melchionna, do PSOL, única entre elas que é líder do seu partido, para pedir a palavra em meio à votação.
Às 20h16, Melchionna subiu ao púlpito esquerdo do plenário acompanhada das outras dezenove deputadas. “Essa fala desrespeitosa do presidente não condiz com o seu cargo e não condiz com a altura e o tamanho do Brasil”, disse. Como não cabiam todas as vinte deputadas no mesmo espaço, algumas se posicionaram atrás do púlpito, aonde só conseguiram chegar por uma escada do lado direito, onde sentam os parlamentares governistas. “Infelizmente, o Brasil deu uma fraquejada e colocou um presidente machista no Palácio do Planalto”, conclui Melchionna. A ideia era que cada uma lesse um parágrafo da carta, mas a deputada Geovania de Sá (PSDB-SC), presidia a sessão e interrompeu o microfone quando a petista Natália Bonavides tentou falar. “Cá para nós, se fosse o Rodrigo Maia presidindo a sessão, ele teria deixado”, disse uma delas.
Eduardo Bolsonaro, o Zero Três, eleito por São Paulo e então líder do PSL – cargo do qual foi deposto pouco depois – subiu à tribuna para responder ao pronunciamento das deputadas. Levou consigo cinco deputadas bolsonaristas, todas do PSL: Bia Kicis (DF), Caroline de Toni (SC), Major Fabiana (RJ), Chris Tonietto (RJ) e Soraya Manato (ES). “Além da roubalheira que esse pessoal da esquerda cometeu e que revoltou tanto as pessoas, esse tipo de discurso também revolta. A deputada [Fernanda Melchionna] diz que fala em nome de todas as mulheres. Calma aí! Será que não tem mulher aqui comigo, não?”, perguntou. Atrás dele, as deputadas sorriram. Eduardo Bolsonaro pontuou a frase mandando “uma banana” e fazendo o gesto correspondente com os braços, em “nome de todas as mulheres”. O plenário se agitou.
“Eu queria saber onde elas estavam quando o Lula falou das mulheres de grelo duro. Quando o Lula falou das mulheres de grelo duro, onde é que vocês estavam? Estavam perdendo dinheiro! Estavam roubando dinheiro enquanto isso. Roubando, ladra!”, disse Eduardo Bolsonaro para a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, quando ela tentava descer da tribuna. Eduardo Bolsonaro se referia a uma conversa do ex-presidente interceptada em 2016 pela Operação Lava Jato em que Lula perguntava: “Onde estão as mulheres de grelo duro do nosso partido?” Na época, a expressão dividiu as mulheres. Umas viram na expressão um sinônimo de mulher arretada. Outras acharam pejorativo falar da força da mulher fazendo um paralelo com uma representação sexual masculina. Outras, ainda, acharam simplesmente ofensivo e chulo. “Eu falei: me dá o microfone de novo que eu falo: ‘eu tenho o grelo duro’”, Gleisi relatou depois. Fardada, a deputada Major Fabiana se colocou entre Gleisi e as demais, e as duas trocaram alguns empurrões.
No microfone, Eduardo Bolsonaro apontava para Gleisi: “A amante está falando no meu ouvido. Fala para a amante segurar um pouco. Fala para a amante segurar um pouco. Amante, coxa…” Amante é como a deputada era supostamente chamada na lista de propinas da Odebrecht, o que ainda não foi confirmado pela Justiça e ela nega. “Quando José de Abreu cuspiu numa mulher em um restaurante, onde é que os senhores estavam? Quando José de Abreu, falando da Regina Duarte, disse que o fascista merece ser tratado à base do cuspe e ser mulher não a transforma em um ser humano, onde é que essas mulheres estavam?”, continuou Eduardo, sob o olhar admirado das deputadas que o acompanhavam. “Isso aqui é a imposição do politicamente correto para tentar calar a boca do presidente Jair Bolsonaro. O politicamente correto não é sobre o que se fala, mas sobre quem fala.”
No plenário, deputados e deputadas começaram a entoar: “Fascista! Fascista! Fascista!” “Podem gritar à vontade. Só raspem o sovaco, senão dá um mau cheiro do caramba!”, respondeu Zero Três, que recebeu reforços. Além de Carla Zambelli, que demorou a cruzar o plenário para subir à tribuna com as demais, também se juntou a elas o deputado Helio Lopes (PSL-RJ), fiel escudeiro de Jair Bolsonaro, que o chama de Helio Negão. “Não adianta fazerem corinho e dizerem que representam as mulheres, não, porque nós quebramos a hegemonia de vocês. E aqui ninguém se dobra ao politicamente correto, não. Nós vamos continuar falando, beleza?”
O grupo desceu da tribuna sem que as deputadas pronunciassem uma só palavra.
“O que mais me surpreendeu foi a gente fazer uma fala dura contra o machismo e subir um homem pra nos responder com um grupo de mulheres se sujeitando ao papel de papagaio de pirata para reforçar o machismo”, comentou, dias depois, Fernanda Melchionna. “Aumentou o feminicídio e diminuíram o orçamento para o combate à violência contra a mulher. As mulheres estão morrendo, é uma pauta urgente. E o presidente empoderando os machistas em casa”, continuou. Para a deputada, o bolsonarismo “mistura o povo pré-conquistas da Constituição de 1988, pré-iluministas, ideais da República Velha e saudosos da ditadura militar”.
As cinco deputadas que saíram na foto com o Zero Três na tribuna formam uma cartilha do bolsonarismo. Caroline de Toni é aluna do polemista Olavo de Carvalho desde 2006. Como advogada, protocolou um pedido de impeachment contra Dilma Rousseff ainda em 2014 acusando-a de estar subordinada a “governos estrangeiros” e uma “entidade”, o Foro de São Paulo. Ela já tinha sido candidata a vereadora pelo PP de Chapecó, Santa Catarina, mas só foi eleita depois de se filiar ao PSL seguindo o então candidato Jair Bolsonaro. Vitoriosa nas urnas em 2018, recebeu duas missões importantes para a sua estreia na Câmara: ser da tropa de choque do governo na CPI das Fake News (função da qual já foi excluída) e atuar na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, onde relatou a proposta que institui a prisão após condenação em segunda instância, pauta do ministro da Justiça, Sergio Moro. Entre os seus projetos, ela pede a revogação da lei que tornou o educador Paulo Freire Patrono da Educação Brasileira.
Chris Tonietto, do Rio de Janeiro, se apresenta como “a parlamentar que mais se destacou na defesa das pautas conservadoras em 2019”. Advogada e catequista, ela faz parte da Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura, uma espécie de think tank católico do Rio, que ficou conhecido em 2017 por ter processado o grupo humorista Porta dos Fundos por um esquete em que Hitler (interpretado por Gregorio Duvivier) é perdoado por Deus (Fabio Porchat) porque era católico e pediu perdão antes de morrer. A ação pedia uma indenização de 1 real por visualização. Hoje, o esquete já tem 11 milhões de visualizações no YouTube. A ação judicial não deu em nada.
Desde então, o Centro Dom Bosco já moveu outras três ações contra o Porta dos Fundos, todas fracassadas. Na última delas, chegou a conseguir uma liminar (depois derrubada) censurando um especial de Natal da Netflix em que Duvivier interpretava um Jesus gay. Rosto público do Centro Dom Bosco, Chris Tonietto foi eleita deputada pelo PSL em 2018 com 38 525 votos. Na Câmara, quer proibir o aborto – que ela chama de “assassinato intrauterino” – em qualquer situação, mesmo em caso de estupro, hoje permitido por lei. Suas outras bandeiras são “o combate ao comunismo do Foro de São Paulo, à ideologia de gênero, à legalização das drogas e à usurpação da competência legislativa pelo STF”.
Enquanto Tonietto trata de assuntos do conservadorismo religioso na Câmara, a Major Fabiana Silva, também do Rio, representa o pensamento dos Bolsonaro quando o tema é segurança. A major viralizou nas redes sociais ainda em 2014, quando dirigia até o Batalhão da Maré, onde trabalhava, e deparou com um ônibus sendo incendiado perto da favela do Jacarezinho. Não pensou duas vezes: desceu do carro e controlou o tumulto à mão armada. Estava à paisana, usava calça jeans branca, salto alto vermelho e os cabelos loiros soltos. O vídeo feito pelos moradores foi parar nos jornais e ofuscou uma notícia de alguns anos antes, segundo a qual Fabiana Silva fora punida administrativamente por prestar serviço de segurança à Liga das Escolas de Samba do Rio (Liesa), criada pelos bicheiros cariocas para cuidar do Carnaval.
Eleita com o slogan “a mulher na segurança”, Major Fabiana assumiu a Secretaria de Estado de Vitimização e Amparo à Pessoa com Deficiência, criada pelo governador do Rio, Wilson Witzel, mas saiu dois meses depois quando o PSL e Witzel romperam. Voltou à Câmara, onde, de vez em quando, vai vestida de farda. No dia em que subiu à tribuna ao lado de Eduardo Bolsonaro, ela publicou: “Elas não falam em meu nome e com certeza não falam em nome das mulheres do Brasil. O jogo virou, e a direita agora tem voz.”
A deputada Soraya Manato, do Espírito Santo, é mulher do ex-secretário da Casa Civil de Bolsonaro, Carlos Manato, que foi deputado por quatro mandatos e já passou pelo PSDB, PDT e Solidariedade antes de ingressar no PSL. “A divergência ocorre não só entre homens e mulheres, mas entre mulheres. No próprio plenário mesmo, onde somos agredidas, principalmente as do PSL. Nos chamam de laranjas, laranjal”, disse Soraya Manato, a única das bolsonaristas que retornou o pedido de entrevista da piauí. Sua primeira polêmica na casa foi um gol contra. Em plenário, admitiu que houve candidaturas laranjas no PSL. “Não tem ninguém santo aqui dentro não, tá? Tem laranja em tudo que é partido. Aqui no PSL tiveram os candidatos laranjas, mas a grande maioria foi eleita honestamente”, disse na época.
Obstetra, Manato dedica o mandato a pautas de saúde pública, mas também apoia a cota para a candidatura de mulheres, embora não considere a melhor solução, e defende o endurecimento das leis de proteção à mulher. A deputada também é a favor da Lei Maria da Penha, mas critica a falta de coordenação entre a polícia e o Judiciário. “Hoje, se um homem diz que vai matar uma mulher, ele mata. Só se defende quem tem dinheiro para pagar um segurança particular. A gente tem que endurecer as leis. Não adianta cada uma ficar de biquinho para outra, não.”
Nas redes, ela tem menos alcance que suas colegas: conta com cerca de 17 mil seguidores no Twitter. Depois de acompanhar Zero Três na tribuna, Manato não repercutiu o episódio entre seus seguidores. “Ele subiu e nós demos o nosso apoio. Pior quem sobe ali de cinco em cinco minutos para defender o ex-presidente Lula e a ex-presidente Dilma”, ela disse, semanas depois, pelo telefone, quando estava em sua casa, em Vitória. “Não vi maldade na fala do presidente, não. O presidente fala o que pensa, ele não precisaria recorrer a uma fala de duplo sentido”, disse. “Se o presidente Bolsonaro odiasse mulher, não tinha casado três vezes. É ele quem fala isso.”
A postura menos ruidosa de Manato destoa das demais deputadas. Bia Kicis, por exemplo, fez questão de frisar que a reação das mulheres de esquerda à fala de Bolsonaro sobre a jornalista Patrícia Campos Mello não passou de “narrativa de quem não se importou com um vagabundo que falava em mulher do grelo duro”. No Twitter, disse que Eduardo “revidou”: “E nós, mulheres nada mimizentas, estávamos lá para apoiá-lo.” Kicis é uma das deputadas bolsonaristas mais influentes. Ela se orgulha de ter apresentado Bolsonaro ao ministro da Economia, Paulo Guedes. Ex-procuradora do Distrito Federal, conheceu Jair Bolsonaro durante os protestos contra Dilma Rousseff, ainda em 2015. Como procuradora, infernizava a vida da então presidente apresentando questionamentos jurídicos sobre ações do governo. Com um de seus petardos conseguiu que a Justiça Federal anulasse uma portaria de 2013 que autorizava o uso de 60 milhões de reais para recauchutar a termelétrica do Rio Madeira, em Rondônia, para que o governo a doasse à Bolívia.
Por sua atuação nas redes sociais, Kicis foi convidada, em 2015, a fazer parte da coordenação do Revoltados Online, grupo pioneiro nos protestos pelo impeachment de Dilma, mas também acabou sendo alvo da CPI dos Crimes Cibernéticos, convocada pelo então deputado Jean Wyllys, do PSOL, que viu nas contas do grupo “incitação ao ódio e ao preconceito”. Em seu depoimento, a procuradora contou como se interessou pela militância política: “No ano de 2014, eu fiquei conhecendo algumas coisas que me deixaram surpresa, inquieta e assustada como brasileira. Eu fiquei sabendo de algo chamado Foro de São Paulo, que nunca foi mencionado pela grande mídia, embora o professor Olavo de Carvalho venha falando disso há mais de quinze anos”, disse Kicis, que já esteve nos Estados Unidos com o guru pelo menos três vezes.
Criado por Lula e Fidel Castro em 1990, o Foro de São Paulo – organização que nunca foi secreta – reúne partidos de esquerda da América Latina. Teve seu auge em 2009, quando o continente tinha sido tomado por uma onda rosa (referência à cor vermelha atenuada) e vários dos presidentes do continente participavam da conferência anual. Mas hoje, com Lula ameaçado de voltar à prisão e Fidel morto, só tem relevância para a direita, que o usa como a pinhata da festa. Para Kicis, porém, o intuito do Foro é “instaurar a Pátria Grande, que quer acabar com a soberania dos países, do nosso país, do nosso Brasil. Quer acabar com a soberania e instaurar aqui um regime totalitário. Ao saber disso, do Foro de São Paulo, ao perceber nos projetos do governo a mão, o braço forte do Foro de São Paulo atuando, através de muitos de nossos governantes, eu pensei, como cidadã e operadora do direito, eu não posso me calar”.
No ano seguinte, após o impeachment de Dilma, Kicis voltou à Câmara para debater sobre “violência contra mulheres e meninas do Brasil e a cultura do estupro” em uma comissão geral convocada pela deputada Maria do Rosário (PT-RS). Apresentada como procuradora do Distrito Federal, ela falou no microfone do plenário: “Como mulher, eu tenho a absoluta convicção de que não existe no Brasil uma cultura de estupro.” Para Kicis, o problema no Brasil, “não é a cultura do estupro, é a cultura da impunidade”. E culpou as críticas às forças de segurança e “a luta pela desmilitarização da Polícia Militar”, uma pauta associada à esquerda, como uma das culpadas pela impunidade no país.
Em 2018, Kicis se candidatou a deputada federal apoiando a campanha de Bolsonaro. Ela foi uma das poucas pessoas que acompanhou a apuração dos votos do segundo turno na casa de Bolsonaro, no Rio de Janeiro, e participou da festa da vitória. Eleita, insistiu que sua atuação é “feminina, não feminista”. Em várias de suas publicações, o feminismo é criticado pela lente das diferenças biológicas entre homens e mulheres. Em uma delas, uma animação com estética do desenho animado South Park, uma atleta dá uma entrevista em que concorda com a participação de uma transexual em uma competição feminina de atletismo. Mas, quando a transexual aparece, ela é, na verdade, um homem brucutu, musculoso e barbudo, dizendo que há duas semanas se identifica como mulher. No seu Facebook, a deputada também debocha de um vídeo em que uma mulher não tem força para disparar um canhão. “Aqui termina o limite da igualdade!”, escreveu.
Em outro vídeo editado por sua equipe, Milo Yiannopoulos, ex-editor do Breitbart News, site norte-americano de extrema direita, aponta uma série de fotos de meninas que, segundo ele, ficaram feias depois da conversão à “justiça social”. Na legenda, Kicis endossa: “Feminismo: máquina de moer lindas jovens e transformá-las em barangas.” No fim, aparece uma montagem em que a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, aparece ainda jovem, fotografada com a boca aberta, sem maquiagem e com os cabelos encaracolados, ao lado de outra foto mais atual em que está maquiada e com os cabelos lisos tingidos de loiro platinado. “Padrões feministas só para as outras. Eu quero é ser linda”, concluiu Kicis. Os comentários são de apoio. Gladys Castanho, que se apresenta como procuradora no Twitter, comentou: “Ja manifestei aqui no Twitter minha opinião sobre as feministas: elas são desprezíveis.”
A chegada das deputadas bolsonaristas à Câmara quebrou um acordo histórico da bancada feminina: o de superar diferenças partidárias em apoio a uma pauta comum. Até a legislatura passada, a bancada tinha consensos, como projetos para coibir a violência contra a mulher e garantir a elas, maioria da população, maior participação política. O pacto das deputadas começou na Assembleia Constituinte, em 1986, quando 26 mulheres de todo o espectro ideológico, do PCdoB ao PFL, foram eleitas. Eram na maioria jornalistas, advogadas, professoras e profissionais da área da saúde, que perceberam que só conseguiriam garantir mais direitos às mulheres na Constituição se agissem em conjunto. Logo passaram a ser chamadas de Bancada do Batom.
Em uma Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes, elas listaram demandas como a igualdade entre os cônjuges (abolindo o pátrio poder e a figura de chefe do casal), a união estável, o divórcio e o dever do Estado de coibir a violência nas relações familiares. Na área da saúde, cobravam a livre opção pela maternidade – tanto a garantia de pré-natal, parto e pós-parto, como “o direito de interromper a gravidez”. A pauta da bancada foi uma lufada progressista para o país, o primeiro das Américas a realizar eleições populares (1532), mas que só instituiu o voto feminino quatro séculos depois (1932). Na Constituição de 1890, emendas que garantiriam o voto de algumas mulheres foram rejeitadas sob a alegação de que resultariam “na dissolução da família brasileira”. Em 1928, o jornal Pacotilha, do Maranhão, publicou uma coluna que dizia o seguinte: “Ainda é muito cedo para o voto feminino. Os nossos legisladores devem deixar isso para os seus futuros colegas do século XXII.”
Só em 1979 o Brasil teve sua primeira senadora eleita, Eunice Michiles, uma professora divorciada, que apresentou um projeto para revogar um artigo do Código Civil de 1916 que permitia ao homem anular o casamento se descobrisse que a mulher não era virgem. Nos oito anos em que foi senadora, era retratada na imprensa como dona de casa ou aparecia de collant fazendo exercícios nas páginas de comportamento dos jornais, não de política.
Ao final da Constituinte, em 1988, a Bancada do Batom conseguiu aprovar 80% de suas reivindicações, como licença-maternidade de 120 dias, o direito a creche, a proibição de discriminação em razão do sexo e aposentadoria especial para as mulheres. Nas legislaturas seguintes, conseguiram pressionar pela proibição da exigência de atestado de gravidez e esterilização para admissão laboral (1995), pela cota de 30% das candidaturas para mulheres (1997), pela oferta de cirurgia de reparação da mama pelo sistema público de saúde em caso de câncer (1999), pela criação de uma CPI para investigar a mortalidade materna (2000), pela tipificação da “violência doméstica” no Código Penal (2004), e pela Lei Maria da Penha (2006). Em 2014, sob a presidência de Dilma Rousseff, a primeira presidente mulher, a bancada conseguiu aprovar a inclusão no Código Civil do feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e, em 2018, tipificou o crime de importunação sexual.
Também em 2018, o STF garantiu que um mínimo de 30% do fundo partidário fosse destinado às mulheres do partido. Foi quando a eleição de mulheres disparou. O PSL foi a legenda que, ao lado do PT, mais elegeu mulheres, mas, paradoxalmente, a pauta da maioria das eleitas pelo partido é contrária à agenda feminista. Alê Silva, de Minas Gerais, já disse que “a mulher aceita a violência porque não quer trabalhar, estudar. Não quer partir para luta. Ela quer ficar acomodada dentro de casa mesmo, apanhando”.
“Creditamos esse aumento de 40% no número de deputadas eleitas ao trabalho da bancada feminina. Mas um dos efeitos desse fenômeno foi a chegada de deputadas que são mais do que antifeministas, elas são antimulheres. E esse clima de ódio interrompeu o diálogo da bancada”, disse a deputada Maria do Rosário, enquanto caminhava pelos corredores da Câmara. A certa altura, foi cumprimentada pelo deputado Kim Kataguiri (DEM-SP) com um simpático “Oi, Maria”. A deputada respondeu com o sorriso e depois comentou baixinho: “Sabe que uma vez ele invadiu meu aniversário fazendo vídeo para o MBL?”
Maria do Rosário talvez seja a deputada mais esculachada pelo movimento bolsonarista. Ainda em 2003, Jair Bolsonaro, então deputado, virou seu antagonista quando disse que não a estupraria porque ela era “muito feia”. Bolsonaro repetiu os ataques a ela em plenário em 2014. Condenado pela Justiça no ano passado, teve que pagar uma indenização à deputada e pedir desculpas publicamente, o que fez através do Twitter. A deputada Joice Hasselmann chegou a gravar um vídeo em que dois atores fingem ser Bolsonaro e Maria do Rosário em um ringue. Bolsonaro é empurrado pela petista sem reagir, até que Hasselmann aparece com luvas de boxe e acerta um cruzado na cara do ator, que usa um terno vermelho, peruca loira e óculos de acetato. “É igualdade, minha filha. Por muito tempo ele lutou sozinho contra essa escória, mas agora somos uma legião.” Golpeando a representação de Maria do Rosário, Hasselmann a obriga a dizer que defende estuprador e a chama de “mocreia”, “chata e feia pra caramba”.
A relação das duas só ficou menos tensa depois que Hasselmann passou a divergir de Eduardo Bolsonaro e foi tirada da liderança do partido. No rompimento, as demais deputadas bolsonaristas tomaram partido do filho do presidente. “Vai lá, me põe no Conselho de Ética por te chamar de traíra. Talvez eu esteja errada porque estão te chamando é de víbora”, atacou Bia Kicis. Nas redes, Eduardo Bolsonaro apelidou Hasselmann de Peppa Pig, em referência ao desenho animado infantil de uma rechonchuda porquinha cor-de-rosa. Hasselmann chorou em plenário falando da onda de ataques. “O meu filho de 11 anos recebendo montagens minhas, com meu rosto e o corpo de uma prostituta? Com meu rosto e um corpo deformado nu? Isso eu não vou admitir”, disse. “Não é uma questão de corporativismo feminino. É uma questão de decência.”
A deputada foi cobrada por declarações passadas, em que chamou a ex-presidente Dilma de “vaca” e “gorda” e Gleisi Hoffmann de “louca”. No grupo de WhatsApp da bancada feminina, Maria do Rosário escreveu: “Certamente sou solidária, apesar de a deputada dizer que queria me dar uns tapas. Nada como um dia depois do outro.” Hasselmann retrucou: “Foi uma piada. Piada ou as pessoas riem ou não acham graça.” Mas agradeceu quando Maria do Rosário insistiu que o apoio era sincero.
Depois do apoio das deputadas da esquerda a Hasselmann, muitas cobraram um tratamento igual quando, após o fim de semana do Carnaval deste ano, Bia Kicis divulgou um vídeo em que Gleisi Hoffmann discutia com um grupo que a agrediu na frente de um hotel no Rio de Janeiro. Na legenda, escreveu: “Perdoem-me por invadir o domingo de vcs com uma visão dos infernos mas tinha que compartilhar c/ vcs a amante mais querida do Brasil recebendo o amor que ela merece. E no final, ela não resiste e solta o nome que ela não consegue esquecer”, escreveu Kicis, em referência ao trecho do vídeo em que Gleisi manda o grupo “ir para o inferno com o Bolsonaro”. Carla Zambelli seguiu Kicis: “Não tenho o hábito de aplaudir atitudes de intimidação frente à (sic) pessoas, principalmente quando estão em menor quantidade. Mas, nesse caso, bato palmas para os cidadãos, pois não vejo como intolerância. É a tal da lei do retorno.”
A petista acionou Bia Kicis e Carla Zambelli no Supremo Tribunal Federal por “apologia ao crime”, nos termos previstos no Código Penal. As duas decidiram entrar com uma representação na Procuradoria-Geral da República contra Gleisi por crime de calúnia. Depois, tentaram em vão obter um habeas corpus alegando que a ação era “coação ou restrição da liberdade”. Gleisi também processa o jornalista Augusto Nunes, que mantém um padrão nos seus vídeos sobre a petista: “Amante impiedosa”, “Amante ardilosa”, “Amante ingrata”, “Amante contraditória”.
“O feminismo é libertador. Ao fazer o contraste ao patriarcado, ele traz todos os excluídos. Questiona uma estrutura de poder em que metade da população não tem voz”, disse Gleisi, num começo de tarde em seu gabinete, em Brasília. “Mas quando você faz um movimento contra o establishment, o establishment bate de volta. Quando você diz que mulher tem o sovaco cabeludo é porque você não tem argumento. E, na falta de argumentos, tentam te descaracterizar. Te chamam de feia, mal-amada. Me chamam de amante, bruxa, puta. Já inventaram que eu tinha caso com o Lula, com o José Eduardo Cardozo, com a Dilma. Sempre tem um homem por trás das minhas decisões porque, claro, eu não consigo pensar sozinha”, ironizou.
No grupo da bancada feminina, o silêncio tinha imperado depois do apoio de algumas delas à “banana” de Eduardo Bolsonaro. Mas os ataques a Gleisi fizeram a deputada Professora Rosa Neide, do PT do Mato Grosso, apontar o bode na sala: “Enquanto fizermos coro às agressões que as mulheres recebem, somos instrumentos fortes na continuação dessa barbárie. Pensei que não viveria para ver uma de nós aplaudindo essas agressões.” Bia Kicis questionou no grupo: “Dizer vá pro inferno com o Bolsonaro pode só porque é mulher? E por que achar ruim o grito de vai para Cuba? Cuba não é o paraíso na Terra?” Em seguida, escreveu: “Calúnia na honra dos outros é refresco, né? Lógica esquerdista.”
As mensagens de solidariedade a Gleisi Hoffmann também suscitaram questionamento das deputadas governistas sobre a falta de apoio à primeira-dama, Michelle Bolsonaro, quando surgiu o comentário de que tivera um romance extraconjugal com o ex-ministro da Cidadania, Osmar Terra. A deputada Aline Sleutjes, do PSL, saiu em defesa de Michelle Bolsonaro: “Nossa primeira-dama é inteligente, linda, cristã, honesta, participativa, atua fortemente na defesa dos deficientes, mãe, esposa, responsável, porque não se enquadra nas minorias não merece respeito??? E acima de tudo ela ama e respeita seu esposo, meu reconhecimento a essa mulher extraordinária.”
Marília Arraes, do PT de Pernambuco, concordou que era “lamentável”, mas disse que só soube do boato quando leu sobre ele no grupo. “O máximo que eu pensei foi que ela tem um péssimo gosto”, disse. Marília Arraes sugeriu que as acusações de traição conjugal sequer deveriam ser comentadas, “deixando claro para a sociedade que esse tipo de acusação não define caráter ou competência”, e que além de não ser crime, adultério “não é da conta de ninguém”. “Gaia é igual a dente”, diz ela, usando a gíria popular no Nordeste para “chifre”. “Na hora dói, mas depois ajuda a viver.” Major Fabiana se enfureceu. “Eu já tinha saído desse grupo uma vez, vou sair de novo. Não frequento reuniões da bancada justamente por esse motivo. Aqui é tudo hipocrisia”, disse, antes de deixar o grupo.
Professora Dorinha, líder da bancada, ainda tentou contemporizar: “Eu gostaria de propor que avaliássemos um pacto de respeito e de decoro, de reciprocidade. Será tão difícil se colocar no lugar da outra pessoa? Imaginar que é gente? Tem sentimentos? Família? O jogo da política precisa chegar nesse espaço privado e pessoal? Eu penso que podemos desarmar e construir um novo momento. Com limites, que nos permita construir uma nova política. O que acham?” Uma deputada do MDB ainda tentou encerrar o assunto: “Podemos não concordar com A, B ou C, mas devemos lembrar que fazemos parte do mesmo ‘alfabeto’ que compõe cada uma dessas opiniões.” Mas Maria do Rosário respondeu que “não seria possível que o grupo se recompusesse totalmente de imediato”, pois “o que as deputadas fizeram contra uma colega em redes sociais públicas, incentivando que seja agredida, é abaixo da crítica.”
Bia Kicis respondeu: “Nunca incentivei violência, ao contrário de outras que sempre incentivaram inclusive quebra-quebra. Isso é cinismo. Fiz uma ironia com relação ao carinho que ela recebeu e que ela mesmo devolveu: vai pro inferno. E, na verdade, na continuação do vídeo que não postei, o público é que é agredido. Isso não passa de narrativa de mi-mi-mi.” Kicis não saiu do grupo, como Major Fabiana, mas deixou claro que suas diferenças com a bancada feminina não serão resolvidas pelo WhatsApp: “Para mim já deu. Vamos aos foros.”
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