No Iraque e no Afeganistão, os escritórios da Al Jazeera foram destruídos por mísseis americanos. O Pentágono se justificou dizendo que todos os ataques foram acidentais FOTO: DANIELA PINHEIRO
Ao vivo da Al Jazeera
Como a emissora árabe que a Casa Branca disse ser "a porta-voz do terror no mundo" cobriu a vitória de Barack Obama
Daniela Pinheiro | Edição 27, Dezembro 2008
Em meio à multidão que lotava o Grant Park, em Chicago, na noite de 4 de novembro, o repórter comentou ao vivo a notícia da eleição americana: “Foi uma vitória nacional, com um mandato legítimo para mudar a história.” Ao longo das horas seguintes, trechos do discurso do presidente eleito foram repetidos ad nauseam pela emissora, junto com cenas da campanha e uma música dramática que dava um tom emocional ao noticiário.
Na forma (cortes acelerados de multidões mesclando cenas do vitorioso em câmara lenta, contra um fundo em que se agitavam bandeiras americanas) e no conteúdo (de simpatia com o eleito) parecia uma rede de notícias 24 horas ocidental, esperançosa com a “mudança” prometida por Barack Obama.
Mas houve diferenças. O ministro de Relações Exteriores do Iraque, Hoshiyar Zebari, por exemplo, participou ao vivo de um debate com o escritor de esquerda Tariq Ali, nascido no Paquistão, sobre as mudanças que o novo governo dos Estados Unidos provocaria no Oriente Médio. Uma reportagem mostrou a repercussão da vitória na Libéria e numa comunidade de negros pobres da Bahia. Estudantes iranianos opinaram sobre as relações da Casa Branca com o clero xiita no seu país. Direto de Cabul, um ministro do governo, um líder talibã e o editor do principal jornal de oposição debateram a idéia de Obama de remanejar tropas americanas do Iraque para o Afeganistão.
“Isso não se vê em outras emissoras”, disse-me o diretor de notícias Al Anstey, um inglês alto, grisalho e com gestos lentos de aristocrata, em seu amplo escritório na sede da Al Jazeera em Doha, no Catar. “Em canais como a CNN ou a BBC, predomina uma visão ocidental da notícia. Como estamos em todo o mundo e sempre damos espaço para todos os lados envolvidos numa notícia política se manifestarem, somos um canal único.”
Al Jazeera Internacional foi lançada, há dois anos, para ser a versão em inglês. Em árabe, ela está no ar desde 1996, e é líder de audiência no Oriente Médio, onde 95% dos domicílios têm televisão a cabo. Foram contratadas estrelas do jornalismo da BBC, da CNN, da CBS e da ABC para dar credibilidade ao projeto. Em pouco tempo, os índices de audiência alcançaram níveis comparáveis aos dos concorrentes estabelecidos há décadas no mercado.
O alvo atingido pela nova rede são os filhos de imigrantes que perderam na Europa a língua materna dos pais (mas não a religião e nem a cultura), países muçulmanos que não falam árabe (como o Paquistão e a Indonésia), e também espectadores interessados em pontos de vista diferentes do americano e do europeu. Foi um choque: assim como ocorreu com o canal em árabe, pela primeira vez, judeus foram entrevistados por uma cadeia de televisão do Oriente Médio; e dinastias ditatoriais da região, criticadas por muçulmanos.
A Al Jazeera Internacional é vista hoje em 120 milhões de residências em 80 países. Uma das exceções são os Estados Unidos, onde a emissora não conseguiu a concessão de um canal a cabo. Mas, indiretamente, percebe-se que o interesse dos americanos por sua programação é crescente: têm origem nos Estados Unidos 60% dos 5 milhões de acessos semanais ao site da emissora e às reportagens da rede postadas no YouTube.
A sede da Al Jazeera, em Doha, está alojada em dois prédios baixos, sem nada de especial, na frente de um estacionamento de terra batida lotado de carros de luxo, quase todos brancos devido à temperatura média de 45 graus. Juntas, a televisão árabe e a internacional têm 1 200 funcionários de 45 nacionalidades e escritórios em 40 países. A impressão de austeridade se dissipa dentro do canal internacional, que tem chão de mármore, paredes de vidro e iluminação indireta em tons prateados. Há dezenas de tevês de plasma espalhadas pelos dois andares. A maioria dos funcionários é de jovens americanos e ingleses, em jeans e camiseta, que almoçam em suas mesas e deixam suas canecas de porcelana ao lado dos computadores.
O canal árabe fica do outro lado da rua. Embora com a fachada idêntica à do internacional, suas dependências são antigas, apertadas e simplórias. Em uma visita, o presidente do Egito, Hosni Mubarak, surpreendeu-se com as instalações. “Essa caixa de fósforos é que faz um barulho desses?”, indagou aos presentes. Nas paredes, há fotos de soldados com capacetes, paisagens do Oriente Médio e frases de Gandhi, Bob Dylan e filósofos muçulmanos.
Muitas funcionárias usam abbaya, a roupa preta que só deixa à mostra face, mãos e pés, e quase todos os homens estão de dishdasha, o camisolão branco acompanhado de um lenço vermelho e branco na cabeça. Num anexo, há uma pequena mesquita para os empregados rezarem durante o expediente.
Na medida em que reproduziu o padrão e a forma das emissoras ocidentais, o conteúdo da Al Jazeera também sofreu influência externa. A sua programação é feita de mesas-redondas, programas de entrevistas, reportagens especiais e telejornais, apresentados por profissionais em roupas ocidentais. O enfoque e a prioridade dos temas são distintos na estação internacional e na árabe. Na véspera da eleição americana, o drama dos refugiados no Congo era o segundo grande tema do canal em inglês. Já o outro investiu na cobertura de protestos na Caxemira e na eleição na Zâmbia.
Até o surgimento da Al Jazeera, os telejornais na televisão árabe eram feitos com uma câmera estática, apresentadoras de xador e poucas imagens externas. Até hoje, em países como a Arábia Saudita toda a programação é submetida à censura prévia. Filmes, novelas e videoclipes ainda dominam a grade das emissoras.
Com o sucesso da Al Jazeera, surgiram clones como a Abu Dhabi TV, mantida pelo governo dos Emirados Árabes Unidos, e a Al Arabiya, fundada em 2003, que é financiada (e também editada) pela realeza da Casa de Saudi. Um dos programas mais populares da Abu Dhabi TV foi a série cômica Irhabiyat (Terrorismo), que satirizava o primeiro-ministro israelense Ariel Sharon. A Al Arabiya investe mais em jornalismo. Outra rede popular na região é a libanesa Al Manar, que exibe o programa de jogos A Missão, no qual o objetivo dos jogadores é chegar a um ponto final chamado “Jerusalém”. As perguntas incluem acertar o nome dos mais recentes homens-bombas, mortos em ataques ao que se designa de “nações inimigas”. O vencedor tem que doar 25% do prêmio à causa palestina.
No livro Al Jazeera: Como a emissora árabe desafiou o mundo, o jornalista inglês Hugh Miles diz que, com a rede, pela primeira vez em séculos as notícias passaram a ser veiculadas do Oriente para o Ocidente, e não o contrário. Esse contrafluxo histórico, disse-me Satnam Matharu, o diretor de Relações Internacionais da rede, teve “um impacto tremendo na vida das pessoas e dos governos que, por aqui no Oriente, não estão acostumados a ser retratados como eles realmente são”.
É longa a lista de governos ofendidos com a Al Jazeera. Ela começa com a Casa Branca de George W. Bush, que a chamou de “porta-voz internacional do terrorismo” por divulgar vídeos com mensagens de Osama bin Laden. Por dar voz a israelenses, a rede foi criticada pela Autoridade Palestina. E por tratar palestinos como vítimas, e entrevistar dirigentes do Hamas (o maior partido islâmico nas áreas ocupadas), foi proibida de trabalhar em Israel. Ao levar ao ar reportagens desfavoráveis à ditadura saudita, foi banida na Arábia. Líbia, Tunísia, Marrocos, Jordânia e Argélia retiraram seus embaixadores do Catar em protesto contra notícias veiculadas pela emissora. Dos 22 países da Liga Árabe, só não teve atritos com o Líbano.
Em 2003, foi proibida de fazer a cobertura do pregão da Bolsa de Nova York por “razões de segurança”. No Iraque e no Afeganistão, os escritórios da emissora foram bombardeados e destruídos por mísseis americanos. Um jornalista morreu. O Pentágono se justificou dizendo que os ataques foram acidentais, apesar de a rede ter informado a localização geográfica de suas sucursais desde o início do conflito. Na invasão do Iraque, um hotel de Basora foi bombardeado pelos americanos – jornalistas da Al Jazeera eram os únicos hóspedes.
Em 2005, o jornal britânico Daily Mirror e o semanário The Nation, nos Estados Unidos, publicaram reportagens relatando que Bush tentara convencer o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, a bombardear a sede da emissora em Doha. Na mesma época, se noticiou que o cinegrafista da rede Sami Al-Hajj, encarcerado em Guantánamo sob a acusação de ter ligações com a Al Qaeda, estava sendo torturado. Só em maio último, depois de seis anos preso, ele foi libertado. Nenhuma das suspeitas de sua ligação com o terrorismo foi comprovada.
Ibrahim Helal é o diretor-geral de notícias e programas da Al Jazeera Internacional, depois de ter sido editor-chefe do serviço em árabe da emissora por seis anos. Ele estava na sala de edição quando houve os ataques do 11 de setembro. Também foi o primeiro a assistir o vídeo de Osama bin Laden, enviado à rede duas semanas depois, no qual ele admite indiretamente a preparação dos atentados. “O 11 de setembro foi um marco de mudança na cobertura jornalística internacional”, disse ele na sua sala, de onde avista todo o estúdio. “De repente, de um grupo anônimo do meio do Oriente Médio, a Al Qaeda passou a afetar o dia-a-dia de todo o mundo. E, por isso, ouvi-la se tornou importante.”
Helal diz que a Al Qaeda escolheu a Al Jazeera por ser a emissora de maior audiência no Oriente Médio e a única a ter uma sucursal em Cabul, o que facilita a entrega do material. O ex-secretário de Estado Colin Powell acusou o canal de, ao divulgar os vídeos, ajudar a transmissão de mensagens cifradas da organização. “Recebemos um vídeo de noventa minutos e eu o reduzo para quatro: se houvesse uma mensagem cifrada, provavelmente eu a teria destruído”, disse-me Helal, com ironia. “Além disso, não é meu dever ficar preocupado em ver se há ou não material cifrado. Olho para as fitas com interesse jornalístico, não me preocupo com a mensagem política que a pessoa quer passar.”
Em 24 ocasiões, a Al Jazeera divulgou em primeira mão mensagens de Bin Laden ou atribuídas a ele. A última foi em novembro do ano passado. Segundo Helal, eles já receberam outra dezena de tapes da Al Qaeda que não foram levados ao ar: “Quando é uma fita de um grupo rezando, falando coisas ao léu, isso não interessa a ninguém, mas quando Bin Laden aparece criticando a jihad no Iraque, o que mostra que há uma desavença no comando da organização, isso é notícia. Quando ele, depois de um ano sumido, aparece andando no deserto, bem de saúde e citando episódios recentes, isso mostra que ele está vivo e tem acesso à informação. Isso é notícia.”
“Há muita ignorância sobre o Oriente Médio”, disse Helal, caminhando para uma reunião. Ele citou o caso de um professor americano, contratado para treinar apresentadores da emissora, que visitava pela primeira vez a região e ficou chocado ao saber que uma das apresentadoras, uma libanesa, era católica. “É difícil para as pessoas que não sabem nada sobre o Oriente Médio entenderem como uma tevê que eles supõem ser feita por um bando de fanáticos e corruptos possa ter se tornado relevante”, afirmou.
Na América Latina, a Al Jazeera tem escritórios em Buenos Aires e Caracas e correspondentes em São Paulo e na Cidade do México. No início do próximo ano, outra sucursal deve ser aberta em Bogotá. Desde julho, a Band News transmite um boletim semanal de cinco minutos, apresentado por um dos mais respeitados jornalistas da rede, o iemenita Riz Khan. Logo na estréia, o entrevistado foi o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
A parceria surgiu quase por acaso. Em março do ano passado, quando George W. Bush esteve em São Paulo, a Al Jazeera foi autorizada pelo governo brasileiro e pelo serviço de segurança americano a cobrir a visita. Apesar disso, foi impedida de trabalhar no centro da cidade. João Carlos Saad, o dono da Band, ofereceu o terraço da sede da rede, no Morumbi, para que a equipe da Al Jazeera fizesse suas transmissões. “Fiquei incomodado com a arbitrariedade e a censura”, contou Saad, “ainda mais quando soube que o apresentador e a cinegrafista da equipe eram de origem judia.”
Em agradecimento, a rede ofereceu à Band a primazia na veiculação de seus programas no Brasil. Saad nunca negociou com a cúpula da Al Jazeera, não se interessou em saber detalhes da linha política dos sócios e tem certeza que a parceria não dará lucros num futuro próximo. “Topei trabalhar com ela porque acho importante a diversidade de pontos de vista”, ele disse. “Eu estava nos Estados Unidos quando se preparava a invasão do Iraque e vi o que foi a gigantesca manipulação da imprensa americana. Ninguém escapou, do New York Times à CBS, passando pela CNN, para não falar da Fox News. A Al Jazeera foi a única TV a fazer reportagens profundas dentro do Iraque e a demonstrar que não havia lá armas de destruição em massa. E ficou provado que ela tinha razão.”
Em julho, a Al Jazeera transmitiu a libertação do libanês Samir Kuntar, que passou 29 anos preso em Israel, acusado de ter participado do seqüestro de uma família que resultou na morte de três adultos e uma criança. Ele admitiu ter matado um policial, mas sempre negou ter assassinado a menina. Trocado por soldados israelenses em um acordo do governo com o Hezbollah, Kuntar foi recebido como herói pelos árabes. A Al Jazeera não só acompanhou a festa de boas-vindas, como o chefe da sucursal de Beirute organizou uma comemoração pelo aniversário de Kuntar, que também foi exibida na reportagem. No noticiário em árabe, ele foi chamado de “irmão Samir” e de “herói pan-árabe”. Sem essa classificação a festa foi mostrada também no canal em inglês.
“Imagine ouvir em um sotaque perfeito de Oxford um repórter narrando, com indubitável simpatia, a volta de um terrorista que esmagou a cabeça de uma criança de quatro anos”, escreveu Judea Pearl, pai do jornalista Daniel Pearl, o repórter do Wall Street Journal seqüestrado e assassinado no Paquistão, em um artigo publicado pelo New York Times. A Al Jazeera pediu desculpas num comunicado público, e atribuiu o “erro” ao diretor do escritório em Beirute, que sofreu uma sanção.
Outro fato polêmico envolveu as demissões recentes de dois jornalistas estrangeiros. O apresentador americano David Marash, ex-ABC, justificou sua saída dizendo se sentir desconfortável com o enfoque dado às notícias sobre os Estados Unidos. Segundo ele, havia sinais explícitos de antiamericanismo vindos da direção da emissora. Ibrahim Helal, diretor da rede, disse-me que, na verdade, Marash ficou insatisfeito por ter perdido o cargo de apresentador e porque a emissora se recusou a contratar sua mulher como produtora de seu programa.
A inglesa Jo Burgin, ex-chefe de Planejamento, entrou com uma ação em um tribunal londrino pedindo 1 milhão de libras de indenização por ter sido vítima de “sexismo, racismo e discriminação religiosa” por ser mulher, branca e católica. Em outubro, o processo foi arquivado.
Quando um palestino é morto pelas tropas israelenses na Faixa de Gaza ou na Cisjordânia, ele é chamado de “mártir” pela Al Jazeera árabe e de “militante” pela internacional. Quando são os palestinos que matam um israelense, os autores são “membros da resistência”. No noticiário, não se fala “Guerra no Iraque”, mas sim “Guerra contra o Iraque”. E um “ataque suicida” é apresentado como “ataque de um comando”.
“Nós somos árabes e falamos para o mundo árabe. Aqui, shaheed (mártir) não tem a conotação política do Ocidente”, disse-me o palestino Ahmed Sheik, editor-chefe da Al Jazeera árabe, um senhor na faixa dos 60 anos, vestido com calça cáqui de cintura alta e camisa branca de mangas curtas. De sua minúscula sala sem janelas, com uma televisão sintonizada em uma emissora concorrente, ele planejava, por telefone e enviando e-mails, a seqüência da cobertura das eleições. Só de sua equipe, havia quinze enviados especiais aos Estados Unidos.
Nosso assunto era o léxico político usado pela emissora. “Há anos os palestinos são vítimas de Israel, que mata gente, impõe sanções e nega os princípios básicos do povo, como o direito de ir e vir”, ele falou. “Mas, na imprensa mundial, as vítimas palestinas são tratadas como algozes. Há alguma coisa errada aí. O mundo inteiro reconhece que o território era da Palestina, foi invadido e tomado brutalmente. Então, nossa cobertura não tem nada de parcial ou religiosa. Os palestinos são vítimas dos israelenses e ponto. Não há como noticiar algo sobre Israel sem partir desse princípio.”
Insisti e ele se irritou. Em um tom impaciente, disse: “Acho muito curioso quando a imprensa ocidental fica chocada porque usamos a palavra ‘mártir’, mas não se choca em nada quando os israelenses matam dezenas de palestinos diariamente. Parem de matar os palestinos e a palavra mártir sumirá do noticiário.”
Um funcionário acima do peso usando dishdasha entrou na sala e discutiu com Ahmed Sheik. Em seguida, ele voltou a falar sobre o assunto. “Na Guerra das Malvinas, jamais uma autoridade argentina teve espaço no noticiário britânico para defender seu ponto de vista. Quem é mais neutra, então: a BBC ou a Al Jazeera?”, indagou. “Todas as emissoras, CNN, Fox, BBC, divulgaram os vídeos de Bin Laden. Mas apenas a Al Jazeera fica com a pecha de ser a porta-voz do terror”, conclui. Apressadamente, ele saiu da sala para uma reunião.
Um estudo publicado há pouco pela organização americana Knight Foundation mostrou que a emissora é bem avaliada. Durante um ano, pesquisadores acompanharam 600 espectadores em seis países. Eles consideraram que a rede é boa por fazer “noticiar as injustiças no mundo” e “dar espaço a grupos políticos sub-representados”. Recentemente, a Al Jazeera ganhou um prêmio no festival de televisão de Monte Carlo e foi indicada a um Emmy por um programa de reportagens especiais.
A Al Jazeera nasceu exclusivamente da vontade de emir do Catar, o xeque Hamad bin Khalifa al-Thani, educado na Inglaterra, polígamo e herdeiro do clã sunita que domina o país há mais de um século. Dono da emissora e de tudo no Catar, ele investiu estimados 1 bilhão de dólares nos dois canais, que quase não têm publicidade.
Em 1995, com 43 anos, o emir aproveitou as férias do pai, o xeque Khalifa bin Hamad al-Thani, para dar um golpe e tirá-lo do poder. Não houve derramamento de sangue porque o xeque golpista teve o apoio de membros da dinastia. Assim que assumiu o trono, o novo emir declarou que o Catar se tornaria uma democracia, mesmo que por decreto. Algumas de suas primeiras medidas foram abolir o cargo de ministro da Informação, o censor oficial, declarar que as mulheres poderiam votar e preparar uma Constituição. Al-Thani conseguiu repatriar 3 bilhões de dólares em dinheiro público que seu pai tinha depositado em contas no exterior. Sua idéia geral era transformar o Catar numa Suíça do Oriente Médio: rica, neutra e segura. Um canal de televisão era parte do plano.
Em meados do século XVIII, a dinastia Al-Thani imigrou do deserto da península Arábica para o Catar, no meio do Golfo Pérsico, uma terra ocupada por beduínos nômades com uma área equivalente a duas vezes a do Distrito Federal. Colada à Arábia Saudita e vizinha ao arquipélago do Bahrein, a paisagem se resumia a dunas, saleiras e 350 quilômetros de uma magnífica costa em frente a um mar de cor turquesa. Os Al-Thani foram atraídos pelo comércio de pérolas, já relevante na região, e passaram a negociar com a Inglaterra e com os sauditas. Em 1868, Muhammed bin Al-Thani, líder da dinastia, apresentou-se ao governo de Benjamin Disraeli, então primeiro-ministro inglês, como o representante das tribos do Catar. Diante da negação de independência, o país foi anexado à Arábia Saudita, situação mantida até 1916, quando um acordo com a coroa inglesa garantiu sua soberania.
Até os anos 30, o comércio de pérolas foi a principal atividade econômica do país. Na década seguinte, o petróleo foi descoberto e, da noite para o dia, o Catar se viu nadando em dinheiro. Em 1971, quando se tornou independente da Inglaterra, foram descobertas as reservas de gás natural – que hoje correspondem a 15% da produção mundial, a terceira maior do mundo, só atrás da Rússia e do Irã.
No Catar, educação, saúde, serviços básicos como água, luz e assinatura de telefone são gratuitos. Quando se casa, o cidadão catariano recebe um terreno e dinheiro para começar a vida. Ninguém paga imposto de renda. Em alguns casos, no serviço público, um funcionário pode se aposentar aos 30 anos de idade.
Como a lei proíbe estrangeiros de serem sócios majoritários de negócios no país, alguns nativos se tornam “laranjas”: eles podem embolsar dividendos clandestinos sem ter que se levantar do sofá. De 1,2 milhão de habitantes, 900 mil são estrangeiros. Os subempregos estão nas mãos de filipinos, indianos e paquistaneses, a maioria vivendo e trabalhando em condições miseráveis. Nos últimos anos, uma leva de jogadores de futebol e técnicos brasileiros se estabeleceram no Catar. Com suas famílias, eles representam 80% dos moradores registrados na embaixada do Brasil em Doha.
Em 2001, a BBC lançou um canal de notícias em árabe em parceria com a Arábia Saudita. Cerca de 250 jornalistas haviam sido contratados. Em pouco tempo, a sociedade ruiu, pela insistência dos sauditas em controlar o noticiário, e toda a equipe se viu desempregada. O xeque Al-Thani contratou todo o grupo, que se mudou para Doha para formar a Al Jazeera.
No início da Al Jazeera, a crítica às nações árabes eram mais constantes. Ao longo tempo, os negócios do novo emir, que tem ramificações em todo o Oriente Médio, provocaram um abrandamento do noticiário. No fim do ano passado, por exemplo, uma mulher foi acusada de adultério e condenada a 200 chibatadas na Arábia Saudita depois de ter sido estuprada por sete homens. A Al Jazeera deu pouca importância ao episódio, o que foi interpretado como uma reaproximação do emir do Catar com a Casa de Saudi. Quando perguntados sobre a ingerência do xeque nos rumos do noticiário, todos os executivos com quem conversei foram unânimes em negar qualquer influência. “Nunca houve um pedido para se mudar alguma coisa em função de algum interesse”, disse Al Anstey, diretor do canal em inglês. “Nem há autocensura dos jornalistas, já que são vários e de várias nacionalidades.”
Durante um almoço em um dos faraônicos hotéis da orla de Doha, um diplomata latino-americano, com extensa experiência no Oriente Médio, resumiu assim a estratégia do emir com a Al Jazeera: “Ele ganha projeção no mundo ocidental com o canal internacional, e maneja seus interesses internos com o árabe. E fica bem com todo mundo, faz seus negócios e ainda destaca o nome do Catar como uma pseudodemocracia.”
É por isso que a televisão do xeque é considerada inimiga por Washington, ao mesmo tempo em que a política externa do Catar está perfeitamente alinhada com a dos Estados Unidos. Além de permitir a construção e a operação de uma gigantesca base militar em seu território, o Catar enviou 100 milhões de dólares para as vítimas do furacão Katrina, gastou outros 3 bilhões na compra de armas americanas e recebe vultosos investimentos da Exxon Mobil, da Occidental e da Pennzoil. Em 2005, Washington e Doha acertaram um projeto conjunto para a construção da maior usina de gás natural do mundo, estimada em 14 bilhões de dólares.
A Al Jazeera projetou o nome do país além do Golfo Pérsico, mas a pecha de estar ligada ao terrorismo ainda trazia um alto custo político. Numa jogada de mar-keting ousada, o xeque conseguiu a vaga para sediar os encontros da Organização Mundial do Comércio, dois meses depois do 11 de setembro. Com isso, a Rodada de Doha se tornou um nome familiar aos espectadores de todo o mundo.
Hoje, o Catar cresce 8% ao ano, faz negócios com quase todo o planeta, afastou o véu da intransigência e se tornou o país com o maior PIB per capita do mundo, 81 mil dólares. O reflexo da prosperidade está estampado na paisagem de Doha, uma mistura de Barra da Tijuca, Manhattan e Cabul com prédios espelhados, arranha-céus de 400 metros de altura e casas demolidas em meio a bairros erguidos sobre a areia. Vê-se gruas, escavadeiras e caminhões por toda parte.
Até 2012, trinta novos hotéis de luxo, um segundo aeroporto e sessenta novos edifícios devem ser inaugurados. No final de novembro, foi aberto o Museu de Arte Islâmica, projetado pelo arquiteto chinês I. M. Pei, que desenhou a pirâmide do Louvre, em Paris. É uma tentativa de atrair mais turistas para o Catar, onde os esportes prediletos ainda são falcoaria e corrida de camelos.
No último relatório sobre liberdade de imprensa no mundo feito pela organização Repórteres sem Fronteiras, o Catar ocupa a 76ª posição, praticamente o fim da fila. Notícias sobre a família real ou sobre o governo local só podem ser publicadas com a aprovação prévia de um comitê ligado ao xeque Al-Thani. Perguntei a Satnam Matharu, o diretor de Relações Internacionais, se alguma vez a emissora havia feito alguma crítica ao governo do emir. “Sim, já publicamos matérias sobre as más condições nos campos de trabalho no Catar”, ele respondeu. “Mas o fato é que o país é muito pequeno e nossas pautas são mais globais. Então, o Catar não é assunto para nós.”
Ainda assim, o xeque Al-Thani desembolsou 3 milhões de dólares para montar o Centro de Liberdade de Imprensa de Doha, inaugurado em setembro. “Vamos dar pensão para a família de jornalistas iraquianos mortos, ajuda financeira aos profissionais da região que não podem pagar um advogado, e por aí vai”, explicou o jornalista francês Robert Ménard, fundador do Repórteres sem Fronteiras e diretor-geral da nova instituição. “É um paradoxo esse país querer fazer isso, já que a mídia local é controlada pelo cabresto. Mas a iniciativa do emir de aceitar a idéia já indica que a situação da imprensa no Catar pode melhorar nos próximos anos.”
Ex-apresentador da CNN em Atlanta, o inglês Sami Zeidan, filho de pai árabe e mãe européia, apresenta um programa de entrevistas semanal e o jornal das seis da tarde na Al Jazeera Internacional. Aos 36 anos, ele usa ternos sob medida, costeletas e um topete discreto. Na rua, é reconhecido por espectadores e, recentemente, distribuiu autógrafos em Sarajevo e Dubai. Em um fim de tarde, na cafeteria da emissora, ele deu sua impressão sobre a rede enquanto tomava chá de hortelã: “Não me considero o tipo de jornalista médio ocidental. Fui criado em vários países, vivi várias culturas e isso me deu uma visão diferente da elite que domina a grande mídia internacional. Nos outros lugares que trabalhei, tive problemas com a maneira que as notícias eram tratadas. A começar, por exemplo, com o uso do termo ‘terrorista’.”
Zeidan citou como exemplo uma entrevista que fez com um diretor do FBI responsável pelas investigações dos atentados de 11 de setembro. “O sujeito me disse que, quando prenderam um suspeito de espalhar o anthrax, que acabou por se suicidar depois, eles logo perceberam que não se tratava de um ‘terrorista’, mas sim de um ‘americano'”, disse. “Esse é o jeito ocidental de ver as coisas e apresentá-las ao público: se o cara é um branco americano que espalha o anthrax, não é terrorista, ele apenas cometeu um atentado.”
Seu celular tocou e ele travou uma conversa em árabe por cinco minutos. Em seguida, retomou o raciocínio: “Mas se ele fosse um árabe ou um muçulmano, seria um terrorista. Por isso na Al Jazeera não usamos esses termos, não caímos nesse jogo, porque é um jogo para criar medo, preconceitos e alimentar estereótipos.” Seu chá havia esfriado e ele afastou o copo da frente. “Não acredito que minha função como jornalista seja rotular quem tenha uma visão diferente do senso comum”, concluiu.
Assim como a maioria de seus colegas, Zeidan acredita que a emissora é vítima de preconceito instigado pelos Estados Unidos. “A América está acostumada a ser reverenciada”, ressaltou. “Os americanos simplesmente acham uma ofensa darmos espaço a quem eles não gostam, discordam ou estão em guerra. Então, tentam nos diminuir na tentativa de diminuir nosso trabalho. Se eles conseguem controlar os próprios canais, bravo. Mas aqui, como não conseguem manipular nosso conteúdo, perdem o controle”.
Quando nos despedíamos, Zeidan fez um pedido: “Tem uma coisa que eu queria que você escrevesse”, disse, grave. “É muito importante o que fazemos aqui. Nosso olhar é o da maioria, de quem é o grosso do mundo, e não apenas os 15% ou 20% de uma elite que desfruta de um padrão de vida altíssimo, em países desenvolvidos. Isso vale para a América Latina. Nossa perspectiva é a de quem sempre foi excluído dos círculos de poder, de quem nunca foi procurado pela grande mídia, de quem falava e não era ouvido. Queremos, e acho que conseguimos, ser a voz dos sem voz.” Apressado, apertou o passo rumo à sala de maquiagem. Entraria ao vivo dali a quinze minutos.