Zuckerberg cria site de relacionamento para superar a própria incapacidade de convívio social ILUSTRAÇÃO: CAIO BORGES_ESTÚDIO ONZE
Apropriações
Assim como o criador do Facebook, o filme A Rede Social não pede licença para se apoderar da história alheia
Eduardo Escorel | Edição 51, Dezembro 2010
A proposta era irresistível. Feita há dois anos, editoras e estúdios americanos endossaram sem demora o projeto sobre o Facebook – rede social com 500 milhões de usuários – que resultou no livro Bilionários por Acaso: A Criação do Facebook – Uma História de Sexo, Dinheiro, Genialidade e Traição, de Ben Mezrich, e no filme A Rede Social, dirigido por David Fincher a partir do roteiro de Aaron Sorkin.
Tudo começou com um e-mail mandado para o escritor Ben Mezrich por um estudante de Harvard, dizendo que seu melhor amigo era um dos fundadores do Facebook e ninguém sabia da existência dele. A partir daí, a linha de produção industrial começou a se mover, resultando em versões autônomas, com detalhes comuns, mas perspectivas diferentes da mesma história. O livro recupera o papel de Eduardo Saverin, sócio-fundador relegado ao anonimato, enquanto o filme é centrado na trajetória do criador da rede social – Mark Zuckerberg.
Embora oficialmente A Rede Social seja baseado em Bilionários por Acaso, o roteirista Aaron Sorkin prefere dizer que “foi inspirado pela proposta” de Ben Mezrich, afirmando ter feito pesquisa independente e tido acesso ao livro somente quando o roteiro estava quase pronto. Bilionários por Acaso é definido por seu autor como “narrativa dramática” recriada “com base em informações que descobri em documentos e entrevistas, e em minha avaliação sobre qual versão mais se aproximava dos registros documentados”. Em outras palavras: mesmo partindo de fatos e personagens reais, e de ter recebido colaboração de Eduardo Saverin, trata-se de um gênero de literatura híbrida, classificada como não ficcional, na qual o autor se permite imaginar situações e inventar diálogos à vontade.
Para produzir o filme – que custou 50 milhões de dólares –, além da marca Facebook, era preciso reunir outros elementos para compor a fórmula capaz de tornar atraente a história da origem da empresa e as disputas legais envolvendo seus idealizadores e sócios.
Diálogos ágeis e planos curtos, determinando andamento prestissimo à narrativa, ficaram por conta de Aaron Sorkin – criador e roteirista das quatro primeiras temporadas da série de televisão The West Wing – e de David Fincher – diretor de estilo amadurecido na realização de filmes publicitários e videoclipes de sucesso, além dos longas-metragens Seven e Clube da Luta, entre outros.
Para completar o enquadramento do projeto no paradigma dominante do cinema americano, era preciso ainda definir o objetivo do personagem principal e os obstáculos que teria pela frente para alcançar sua meta.
Na versão escrita para o cinema, o criador do Facebook é um jovem de 20 anos que inventa poderosa ferramenta de relacionamento a distância para superar a própria incapacidade de estabelecer relações humanas e conviver socialmente. Prodígio da informática, é movido por vingança, ressentimento e ambição, tornando-se bilionário sem conseguir superar a carência afetiva. Na cena final, completa um ciclo tentando entrar em contato com a estudante que no início do filme lhe dera um merecido fora.
O roteiro avança e recua no tempo ao intercalar na trajetória vitoriosa da empresa a disputa pela propriedade da ideia que levou à criação da rede de relacionamento, e à defesa dos direitos do sócio que financiou os primeiros passos do Facebook. Restringindo-se a esse mínimo denominador comum dramático, com o qual o espectador médio tem facilidade de estabelecer empatia, a narrativa comprova a declaração do próprio Aaron Sorkin, publicada na edição de 17 de setembro da New York Magazine, segundo a qual “a mesma história poderia ser contada sobre a invenção de uma excelente torradeira”.
Utensílio doméstico e Facebook seriam intercambiáveis na razão cínica do roteirista. Coerente com tal lógica, mesmo tendo usado fatos reais como fonte de inspiração, além de ter se apoderado do nome da empresa, de seu criador e de outros participantes, Aaron Sorkin declara não ter compromisso com a verdade, mas apenas com a narrativa. Não vê nenhuma vantagem em ser preciso e afirma que “a verdade pode ser inimiga da melhor maneira de contar a história”.
Apesar de ter o cuidado de expor pontos de vista conflitantes sobre a criação do Facebook, A Rede Social não deixa de endossar o anti-heroísmo do personagem principal. Considerações éticas não fazem parte das suas preocupações – primeiro, ele se apropria da ideia original que três estudantes tiveram de formar uma rede de relacionamento exclusiva para os alunos de Harvard; depois, é conivente com a redução drástica da participação acionária e o afastamento da empresa de seu amigo – o financiador inicial do projeto que viria a ser o Facebook.
O comportamento amoral do personagem é tratado com condescendência manifestada usualmente com relação a transgressões juvenis. Reproduzida em letras garrafais, de alto a baixo do cartaz americano, a frase de venda de A Rede Social é simbólica da premissa do filme: “Você não consegue 500 milhões de amigos sem fazer alguns inimigos.”
Endossando a apropriação de ideia alheia, A Rede Social de certa maneira reafirma seu próprio direito – assegurado pela legislação americana – de contar a história de vida de personalidades públicas, desde que sem incorrer em difamação e falsidade deliberadas. Ao questionar a hipótese do fabricante de uma boa cadeira dever dinheiro para qualquer um que tenha feito uma cadeira, o personagem legitima de forma indireta a utilização sem consentimento no filme dos nomes reais do Facebook, de Mark Zuckerberg e das demais pessoas envolvidas.
Por não ser versão autorizada, porém, A Rede Social contraria o princípio fundamental do Facebook, ao tornar público detalhes pessoais que Mark Zuckerberg não escolheu divulgar. “Muitos dos detalhes do filme estão errados”, ele declarou na New Yorker de 20 de setembro. Sua pequena vingança foi excluir The West Wing – criada e escrita pelo roteirista Aaron Sorkin – da lista de séries de televisão favoritas que aparece em seu perfil. Cauteloso e reservado, o paradoxo de Mark Zuckerberg é ter criado uma empresa cujo sucesso depende da disposição dos usuários em divulgar cada vez mais informação pessoal na rede.
A maior contribuição do diretor David Fincher para A Rede Social foi filmar e montar certas sequências mimetizando não só a rapidez e a simultaneidade de apreensão características dos nerds da informática, mas também a velocidade própria dos diálogos de Aaron Sorkin.
É exemplar nesse sentido a primeira sequência do filme, em que o personagem principal dialoga com a estudante que acaba rompendo com ele. Tendo sido filmada 99 vezes de ângulos e com enquadramentos variados, é montada em planos curtos, sem pausas. Parecendo autômatos, os personagens falam em alta velocidade, fazendo acrobacias verbais dignas de medalha olímpica. O espectador que não entender inglês e dependa das legendas terá dificuldade para acompanhar a cena.
A Rede Social conta um mito de origem, deixando de lado a questão mais atual relativa ao Facebook – qual o verdadeiro alcance cultural dessa nova forma de relacionamento? O debate sobre suas virtudes e fraquezas está em curso. E causa inquietação saber que milhões de usuários têm a seu dispor, entre outros recursos, uma ferramenta que lhes permite cutucarem-se uns aos outros.
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