FOTO: LEAH PELLEGRINI
Aquele que nunca vira o mar
Ele não olhava para o sol, nem para o céu. Já não via sequer a faixa de terra longínqua, nem o vulto das árvores. Não havia ninguém ali, ninguém além do mar, e Daniel estava livre
Jean-Marie Gustave Le Clézio | Edição 30, Março 2009
Chamava-se Daniel, mas teria gostado de se chamar Simbad, porque lera suas aventuras num livro grande de capa vermelha que sempre levava consigo, na sala de aula e no dormitório. Na verdade, acho que nunca lera nenhum livro além daquele. Não falava a respeito, a não ser, às vezes, quando alguém pedia. Então seus olhos pretos brilhavam com mais força e seu rosto afiado parecia se animar de repente. Mas não era menino de falar muito. Não se juntava à conversa dos outros, a não ser quando o assunto era o mar, ou as viagens. Os homens são, na maioria, terrestres, assim é que é. Nasceram na terra, e a terra e as coisas da terra é que interessam a eles. Mesmo os marinheiros com frequência são homens da terra; gostam de casas e mulheres, falam de política e carros. Já ele, Daniel, era como se fosse de outra raça. As coisas da terra o entediavam – as lojas, os carros, a música, os filmes e, naturalmente, as aulas do colégio. Não dizia nada, nem sequer bocejava para expressar o seu tédio. Só ficava parado, sentado num banco ou nos degraus da escada, em frente ao pátio coberto, olhando para o nada. Era um aluno medíocre, que a cada trimestre lograva as notas mínimas necessárias à sobrevivência. Quando um professor pronunciava seu nome, ele se levantava e recitava a lição, depois tornava a sentar-se, e pronto. Era como se dormisse de olhos abertos.
Nem mesmo quando a conversa era sobre o mar ele chegava a se interessar muito tempo. Escutava alguns instantes, fazia uma ou outra pergunta, então percebia que o assunto não era de fato o mar, e sim os banhos, a pesca submarina, as praias e as insolações. Então se retirava, voltava a sentar-se em seu banco ou nos degraus, olhando para o nada. Não era desse mar que queria ouvir falar. Era de outro mar, não se sabia qual, mas outro mar.
Isso foi antes de ele desaparecer, antes de ir embora. Ninguém podia imaginar que um dia ele fosse partir, quer dizer, partir de verdade, para não voltar mais. Era muito pobre, seu pai tinha uma pequena fazenda a poucos quilômetros da cidade, e Daniel usava o avental cinza dos internos porque sua família morava longe demais para ele poder voltar para casa todo dia. Tinha três ou quatro irmãos mais velhos que não eram conhecidos.
Não tinha amigos, não conhecia ninguém e ninguém o conhecia. Ele talvez achasse melhor assim, para não criar laços. Tinha um rosto esquisito, afiado como uma lâmina, e belos olhos pretos e indiferentes.
Não disse nada a ninguém. Mas com certeza já tinha tudo planejado. Tinha planejado tudo de cabeça, memorizando as estradas e mapas, e os nomes das cidades por onde iria passar. Talvez tivesse sonhado com muita coisa, dia após dia, toda noite, no dormitório, deitado em sua cama enquanto os demais gracejavam e fumavam escondido. Pensara nos rios que descem lentamente para a foz, no grito das gaivotas, no vento, nas tempestades assobiando no mastro dos navios e nas sirenes das balizas.
Foi no início do inverno que ele partiu, pelos meados de setembro. Quando os internos acordaram no imenso dormitório cinza, havia sumido. Percebemos na hora, assim que abrimos os olhos, porque sua cama não tinha sido desfeita. Os cobertores estavam cuidadosamente estendidos e tudo estava em ordem. Então dissemos apenas: “Olha, o Daniel foi embora”, sem nos surpreendermos de fato, pois afinal sabíamos vagamente que isso iria acontecer. Mas ninguém disse mais nada porque não queríamos que o pegassem.
Nem os mais tagarelas entre os alunos do primário disseram coisa alguma. E afinal, o que podíamos dizer? Não sabíamos de nada. Durante um bom tempo, houve cochichos no pátio, ou nas aulas de francês, mas não passavam de fragmentos de frases cujo sentido só nós entendíamos.
“Será que a uma hora dessas ele já chegou?”
“Será? Ainda não, é tão longe, sabe…”
“Amanhã?”
“É, quem sabe…”
Os mais audaciosos diziam:
“Quem sabe ele já chegou na América…”
E os pessimistas:
“Ah, quem sabe ele volte ainda hoje.”
Mas se nós nos calávamos, em compensação, em altas esferas o caso gerou um alvoroço. Professores e bedéis eram regularmente convocados à sala do diretor, e até na polícia. De tempos em tempos apareciam os inspetores e interrogavam os alunos um por um, tentando arrancar informações.
Nós, evidentemente, falávamos de tudo, menos do que sabíamos: dele, do mar. Falávamos em montanhas, cidades, garotas, tesouros, até em ciganos raptores de criancinhas e legião estrangeira. Era para embaralhar as pistas; e os professores e bedéis iam ficando cada vez mais nervosos e, com isso, mais malvados.
O alvoroço durou várias semanas, vários meses. Houve dois ou três avisos de busca nos jornais, com a descrição de Daniel e uma foto que não se parecia com ele. Então tudo se acalmou de repente, pois estávamos todos meio cansados daquela história. Vai ver tínhamos todos entendido que ele não voltaria, jamais.
Os pais de Daniel se conformaram, porque eram pobres e não havia mais nada a fazer. Os policiais arquivaram o caso, foi o que eles próprios disseram, e ainda disseram mais uma coisa que os professores e bedéis repetiram, como se fosse natural e que, para nós, pareceu?um bocado extraordinário. Disseram que todo ano dezenas de milhares de pessoas desapareciam assim sem deixar rastro, e nunca seriam encontradas. Os professores e bedéis ficavam repetindo esta frasezinha, dando de ombros como se fosse a coisa mais banal do mundo, mas que a nós, quando a ouvimos, nos levou a sonhar, nos despertou lá no fundo um sonho secreto e envolvente que ainda não terminou.
Com certeza já era noite quando Daniel chegou, a bordo de um comprido trem de carga que já rodara muito tempo, dia e noite. Os trens de carga circulam sobretudo à noite, porque são muito longos e andam muito devagar, de um nó ferroviário a outro. Daniel vinha deitado no chão duro, enrolado num pedaço de lona velha. Espiou pela porta com clarabóias enquanto o trem reduzia a marcha e parava, rangendo, junto às docas. Daniel abriu a porta, pulou sobre os trilhos e correu ao lado do barranco até encontrar uma passagem. Não tinha bagagem, só uma sacola azul-marinho de praia que sempre levava consigo, na qual pusera seu velho livro vermelho.
Ele agora estava livre, e com frio. Suas pernas doíam, depois de tantas horas passadas naquele vagão. Era noite, chovia. Daniel andava o mais depressa possível para se distanciar da cidade. Não sabia para onde estava indo. Andava reto em frente, entre muros e hangares, na estrada que brilhava à luz amarela dos postes de iluminação. Não havia ninguém, nem nenhum nome escrito nos muros. Mas o mar não estava longe. Daniel o pressentia em algum ponto à direita, oculto pelas grandes construções de concreto, para além dos muros. Estava dentro da noite.
Passado algum tempo, Daniel sentiu-se cansado de andar. Já chegara no campo e a cidade brilhava ao longe, lá atrás. A noite estava escura, e a terra, o mar, invisíveis. Daniel procurou um lugar para se proteger da chuva e do vento, e acabou entrando numa cabana de madeira à beira da estrada. Foi onde se acomodou para dormir até de manhã. Fazia vários dias que não dormia e, por assim dizer, não comia, pois ficara o tempo todo espiando pela porta do vagão. Sabia que não podia topar com algum policial. De modo que se escondeu bem no fundo da cabana de madeira, mordiscou um pouco de pão e adormeceu.
Quando acordou, o sol já estava no céu. Daniel saiu da cabana, deu alguns passos piscando os olhos. Havia um caminho que levava até as dunas, e foi por ele que Daniel se pôs a andar. Seu coração batia mais forte, pois sabia que era ali, do lado de lá das dunas, a duzentos metros apenas. Correu pelo caminho, escalou a encosta de areia, e o vento soprava cada vez mais forte, trazendo o som e o cheiro desconhecidos. Então, chegou ao topo da duna e, de repente, ele o viu.
Estava ali, por toda parte, à sua frente, imenso, inchado como a encosta de uma montanha, brilhando em sua cor azul, profundo, tão perto, com suas ondas altas avançando na sua direção.
“O mar! O mar!”, pensou Daniel, mas não se atreveu a dizer nada em voz alta. Ficou ali sem conseguir se mexer, os dedos meio afastados, e não conseguia acreditar que dormira ao lado dele. Ouvia o som lento das ondas se movendo na praia. Não havia mais vento e o sol brilhava sobre o mar, ateando um fogo na crista de cada onda. A areia da praia tinha cor de cinza, lisa, sulcada de riachos e coberta de vastas poças que refletiam o céu.
Em seu íntimo, Daniel repetiu várias vezes o lindo nome, assim, “O mar, o mar, o mar…”, a cabeça cheia de barulhos e vertigem. Queria falar, e até gritar, mas sua garganta não deixava a voz passar. Então ele teve que sair gritando, jogando longe a sacola azul que rolou pela areia, teve que sair agitando braços e pernas como quem atravessa uma auto-estrada. Saltou sobre as medas de sargaço, cambaleou na areia seca da parte alta da praia. Tirou meias e sapatos e, descalço, correu ainda mais ligeiro, sem sentir os espinhos dos cardos.
O mar estava longe, no final da planície de areia. Cintilava na luz, mudava de cor e de aspecto, extensão azul, depois cinzenta, verde, quase negra, bancos de areia ocres, orla branca das ondas. Daniel não sabia que ele estava tão longe. Continuou correndo, braços apertados junto ao corpo, o coração socando com tudo dentro do peito. Sentia agora a areia dura feito asfalto, úmida e fria sob os seus pés. À medida que se aproximava, o som das ondas crescia, preenchia tudo feito um assobio de vapor. Era um som muito doce e lento, depois violento e inquietante feito os trens nas pontes de ferro, ou então que fugia para trás feito a água dos rios. Mas Daniel não tinha medo. Continuava correndo o mais rápido que podia, aprumado no ar gelado, sem olhar para mais nada. Chegando a poucos metros apenas da franja de espuma, sentiu o cheiro das profundezas e parou. Uma pontada lhe queimava a virilha, e o poderoso cheiro da água salgada não o deixava recobrar o fôlego.
Sentou-se na areia molhada, e observou o mar subindo à sua frente, quase até o meio do céu. Pensara tantas vezes naquele momento, imaginara tantas vezes o dia em que afinal o veria, realmente, não como nas fotos ou no cinema, mas de verdade. O mar inteiro, exposto à sua volta, inchado, com o dorso largo das ondas se precipitando e rebentando, as nuvens de espuma, o chuvisco em pó sob a luz do sol e, principalmente, ao longe, aquele horizonte curvo qual um muro frente ao céu! Tanto desejara aquele instante que agora estava sem forças, como se fosse morrer, ou dormir.
Era mesmo o mar, o seu mar, só para ele, e sabia que nunca mais poderia ir embora. Daniel deixou-se ficar um longo tempo estendido na areia dura, esperou tanto tempo, deitado de lado, que o mar começou a subir pela encosta e veio tocar seus pés descalços.
Era a maré. Daniel ergueu-se de um salto, todos os músculos retesados para fugir. Ao longe, na negra rebentação, as ondas explodiram com um ruído estrondoso. Mas a água ainda não tinha força. Quebrantava-se e borbulhava na parte baixa da praia, chegava se arrastando. A espuma ligeira envolvia as pernas de Daniel, cavava poços sob seus calcanhares. A água fria primeiro mordeu-lhe os artelhos e canelas, depois insensibilizou-os.
Com a maré, veio o vento. Soprou do fundo do horizonte, surgiram nuvens no céu. Mas eram nuvens desconhecidas, iguais à espuma do mar, e o sal viajava no vento como grãos de areia. Daniel só pensava em fugir. Pôs-se a andar à beira do mar, na franja de espuma. A cada onda, sentia a areia escapando por entre seus artelhos abertos, para retornar em seguida. O horizonte, ao longe, se inflava e encolhia qual respiração, ia jogando o seu peso em direção à terra.
Daniel sentiu sede. Com as mãos em concha, juntou um pouco d’água com espuma e bebeu um gole. O sal queimou-lhe a boca e a língua, mas Daniel continuou bebendo porque gostava do sabor do mar. Há quanto tempo pensava naquela água toda, livre, sem fronteiras, aquela água toda que daria para se beber a vida inteira! Na praia, a última maré jogara pedaços de pau e raízes que lembravam grandes ossadas. A água agora as retomava devagar, depositava-as um pouco mais adiante, misturava-as com as grandes algas negras.
Daniel andava à beira d’água, e olhava tudo com avidez, como querendo descobrir num só instante tudo o que o mar tinha para lhe mostrar. Pegava nas mãos as algas viscosas, os pedaços de conchas, cavava no lodo junto às galerias de vermes, procurava por tudo, andando, ou então de quatro na areia molhada. O sol no céu estava árduo e forte, e o mar rugia sem parar.
De vez em quando, Daniel se detinha de frente para o horizonte, e fitava as ondas altas que tentavam passar por cima da rebentação. Respirava com toda a força, para sentir o sopro, e era como se o mar e o horizonte enchessem seus pulmões, seu ventre, sua cabeça e ele se tornasse uma espécie de gigante. Olhava para a água escura, ao longe, onde não havia terra ou espuma, somente o céu aberto, e era com ela que ele falava, baixinho, como se ela pudesse ouvir; dizia:
“Venha! Suba até aqui, ande! Venha!”
“Você é linda, vai vir e vai cobrir a terra toda, as cidades todas, vai subir até o alto das montanhas!”
“Venha com as suas ondas, suba, suba! Por aqui, por aqui!”
Então ele recuava, passo a passo, para a parte alta da praia. Foi assim que aprendeu os caminhos da água que sobe, cresce, se espalha feito mãos pelos pequenos vales de areia. Os caranguejos cinzentos corriam à sua frente, garras erguidas, leves como insetos. A água branca preenchia os buracos misteriosos, inundava as galerias secretas. Subia, um pouco mais a cada onda, ampliava seus lençóis movediços. Daniel dançava diante dela, igual aos caranguejos cinzentos, corria meio de lado erguendo os braços e a água vinha morder-lhe os calcanhares. Depois tornava a descer, cavava trincheiras na areia para a água subir mais depressa e, para ajudá-la a subir, cantarolava as palavras:
“Vamos, subam, vamos, ondas, subam mais, mais alto, vamos!”
Já estava com água até a cintura, mas não sentia frio, não tinha medo. Sua roupa encharcada lhe grudava no corpo, os cabelos lhe caíam nos olhos feito algas. O mar turbilhonava à sua volta, retirava-se com força tamanha que ele tinha de se agarrar na areia para não cair de costas, depois se jogava de novo e o empurrava para a parte alta da praia.
As algas mortas açoitavam suas pernas, se enroscavam em suas canelas. Daniel as arrancava como se fossem serpentes e as jogava no mar, gritando:
“Arrh! Arrh!”
Ele não olhava para o sol, nem para o céu. Já não via sequer a faixa de terra longínqua, nem o vulto das árvores. Não havia ninguém ali, ninguém além do mar, e Daniel estava livre.
De repente, o mar começou a subir mais depressa. Tinha se inchado na rebentação, e as ondas agora chegavam lá do largo, sem nada para detê-las. Eram altas e amplas, meio enviesadas, a crista fumegando, seu ventre azul-escuro se escavando por baixo delas, orlado de espuma. Chegaram tão depressa que Daniel não teve tempo de se abrigar. Virou de costas para fugir e a onda atingiu-o nos ombros, passou-lhe por cima da cabeça. Daniel grudou instintivamente as unhas na areia e cessou de respirar. A água, turbilhonando, desabou sobre ele com um ruído estrondoso, penetrando seus olhos, ouvidos, boca, narinas.
Daniel rastejou pela areia seca, fazendo um esforço imenso. Estava tão aturdido que se quedou algum tempo deitado de bruços na franja de espuma, sem conseguir se mover. Mas vinham as outras ondas, rugindo. Erguiam ainda mais alto suas cristas, e seus ventres se cavavam feito grutas. Daniel então correu para a parte alta da praia e sentou-se na areia das dunas, para lá da barreira de sargaços. Pelo resto do dia, não se acercou mais do mar. Mas seu corpo ainda tremia e, em toda a sua pele, e até por dentro, sentia o gosto ardido do sal e, no fundo dos olhos, a mancha ofuscante das ondas.
Na outra ponta da baía havia um promontório negro, escavado de grutas. Foi lá que Daniel viveu nos primeiros dias quando chegou diante do mar. Sua gruta era uma pequena saliência nos rochedos negros, atapetada de seixos e areia cinzenta. Foi lá que Daniel viveu aqueles dias todos, sem nunca, por assim dizer, tirar os olhos do mar.
Quando surgia a luz do sol, muito pálida e cinza, e o horizonte mal se avistava como um fio entre as cores mescladas de céu e mar, Daniel se levantava e saía da gruta. Subia no alto dos rochedos negros para beber água da chuva nas poças. As grandes aves marinhas também iam para lá, voavam ao seu redor soltando seus longos gritos dissonantes, e Daniel as cumprimentava assobiando. De manhã, quando o mar estava baixo, as misteriosas profundezas ficavam a descoberto. Havia grandes alagados de água escura, torrentes cascateando em meio às pedras, trilhas escorregadias, montanhas de algas vivas. Daniel então deixava o cabo e descia rente aos rochedos até o centro da planície descoberta pelo mar. Era como chegar ao próprio centro do mar, numa paisagem estranha, com poucas horas de existência.
Tinha que se apressar. A franja negra da rebentação estava próxima, Daniel escutava as ondas rugindo em voz baixa e as correntes profundas murmurando. O sol, ali, não brilhava muito tempo. O mar logo voltava a cobri-los com sua sombra, e a luz refletia, violenta, sobre eles, sem chegar a aquecê-los. O mar revelava alguns segredos, mas precisava aprendê-los depressa antes que sumissem. Daniel corria sobre os rochedos do fundo do mar, em meio às florestas de algas. O cheiro forte subia dos alagados e dos negros vales, o cheiro que os homens desconhecem e os embriaga.
Nas poças grandes, bem perto do mar, Daniel procurava os peixes, os camarões, as conchas. Mergulhava os braços n’água, em meio aos tufos de algas, e esperava até que os crustáceos viessem fazer cócegas na ponta dos seus dedos; então os apanhava. Nas poças, as anêmonas-do-mar, roxas, cinzentas, vermelho-sangue, abriam e fechavam suas corolas.
Nos rochedos planos viviam as lapas brancas e azuis, as nassas alaranjadas, as mitras, as arcas, as amêijoas. No fundo dos alagados, às vezes, a luz brilhava no dorso largo dos atuns, ou na madrepérola cor de opala de uma natica. Ou então, de súbito, entre as folhas de algas surgia a concha oca, irisada feito nuvem, de uma velha orelha-do-mar, a lâmina de uma faca, a forma perfeita de uma concha de vieira. Daniel as contemplava, demoradamente, ali onde estavam, através da vidraça da água, e era como se também ele vivesse dentro da poça, no fundo de uma fenda minúscula, deslumbrado de sol e esperando a noite do mar.
Para comer, caçava lapas. Tinha que se acercar sem fazer barulho, para elas não se grudarem na pedra. Depois, soltá-las com um pontapé, batendo com a ponta do dedão. Mas as lapas não raro escutavam o som dos seus passos ou o chiado da sua respiração e se grudavam nos rochedos planos, produzindo uma série de estalos. Depois de apanhar camarões e mariscos suficientes, Daniel guardava sua pesca numa poça pequena, na cavidade de um rochedo, para cozinhá-la mais tarde numa lata sobre um fogo de sargaço. Então ia dar uma olhada lá adiante, bem na ponta da planície do fundo do mar, lá onde as ondas rebentavam. Pois lá é que vivia seu amigo polvo. Ele é que Daniel logo conhecera, naquele primeiro dia em que chegara diante do mar, antes mesmo de conhecer as aves marinhas e as anêmonas. Ele fora até a beira das ondas que rebentam caindo sobre si mesmas, quando o mar e o horizonte já não se movem, já não incham, e as grandes correntes escuras parecem conter-se antes de saltar. Aquele era decerto o lugar mais secreto do mundo, onde a luz do dia não brilha mais que alguns minutos. Daniel andara bem devagar, segurando-se nas paredes das rochas escorregadias, como que descendo para o centro da terra. Avistara o grande alagado de águas pesadas, onde moviam-se lentamente as algas longas, e permanecera imóvel, o rosto quase tocando a superfície. Avistara então os tentáculos do polvo flutuando rente às paredes do alagado. Surgiam, feito fumaça, de uma falha bem junto ao fundo, e deslizavam mansamente sobre as algas. Daniel prendera a respiração, fitando os tentáculos que mal se moviam, mesclados aos filamentos das algas.
Então o polvo saíra. O longo corpo cilíndrico se movia cauteloso, os tentáculos ondulando à sua frente. Na luz fragmentada do sol efêmero, os olhos amarelos do polvo brilhavam qual metal sob as sobrancelhas salientes. O polvo deixara flutuar um momento seus longos tentáculos de anéis arroxeados, como buscando alguma coisa. Em seguida avistara a sombra de Daniel debruçada sobre o alagado e pulara para trás, apertando os tentáculos e soltando uma estranha nuvem cinza-azulada.
Como todos os dias, Daniel chegava agora à beira do alagado, bem perto das ondas. Debruçou-se sobre a água transparente e chamou baixinho pelo polvo. Sentou-se no rochedo mergulhando na água as pernas desnudas, frente à falha onde habitava o polvo, e esperou, sem se mexer. Passado algum tempo, sentiu os tentáculos tocando de leve sua pele, enrolando-se em suas canelas. O polvo o acariciava com cautela, às vezes entre os artelhos e na planta dos pés, e Daniel punha-se a rir.
“Bom dia, Wiatt”, disse Daniel. O polvo se chamava Wiatt, embora, é claro, não soubesse seu nome. Daniel falava com ele em voz baixa, para não assustá-lo. Perguntava sobre o que acontecia no fundo no mar, sobre o que se vê quando se está sob as ondas. Wiatt não respondia, mas continuava acariciando de mansinho, como que com cabelos, os pés e canelas de Daniel.
Daniel gostava do polvo. Nunca dava para ficar muito com ele, pois o mar subia depressa. Quando a pesca tinha sido boa, Daniel lhe trazia um siri, ou camarões, que ele soltava no alagado. Os tentáculos cinzentos irrompiam feito chicotes, apanhavam as presas e as levavam até o rochedo. Daniel nunca via o polvo comendo. Este ficava quase sempre escondido na falha escura, imóvel, seus longos tentáculos flutuando à sua frente. Talvez fosse igual a Daniel, talvez tivesse viajado muito tempo até encontrar seu lugar no fundo do alagado, talvez olhasse para o céu claro através da água transparente.
Quando o mar estava totalmente baixo, ocorria como que uma iluminação. Daniel andava em meio aos rochedos, sobre os tapetes de algas, e o sol se punha a refletir na água e nas pedras, ateava fogos repletos de violência. Não havia vento àquela hora, nenhum sopro. Sobre a planície do fundo do mar, o céu azul era imenso, brilhava com uma luz excepcional. Daniel sentia o calor na cabeça e nos ombros, fechava os olhos para não ficar cego com a terrível cintilação. Então não havia mais nada, nada mais; o céu, o sol, o sal, que se punham a dançar sobre os rochedos.
Certo dia em que o mar descera tão longe que só se avistava uma fina orla azul na direção do horizonte, Daniel pôs-se a caminho pelos rochedos do fundo do mar. Sentiu, de repente, a embriaguez dos que penetram uma terra virgem e sabem que talvez não consigam voltar. Não havia, naquele dia, nada igual; tudo era novo, desconhecido. Daniel se virou e avistou a terra firme, longe, lá atrás, igual a um lago de lama. Sentiu também a solidão, o silêncio dos rochedos nus gastos pelo mar, a inquietação emanando de todas as fendas, de todos os poços secretos, e se pôs a andar mais depressa, depois a correr. Seu coração batia forte dentro do peito, como no primeiro dia em que chegara diante do mar. Daniel corria sem recobrar o fôlego, saltava por sobre os alagados e vales de algas, seguia as arestas rochosas abrindo os braços para manter o equilíbrio.
Havia às vezes largas lajes grudentas, cobertas de algas microscópicas, ou rochas aguçadas feito lâminas, pedras estranhas que lembravam pele de esqualo. Por toda parte cintilavam, estremeciam poças d’água. Os mariscos incrustados nas rochas crepitavam ao sol, os rolos de algas produziam um curioso som de vapor.
Daniel corria sem saber para onde ia, em meio à planície do fundo do mar, sem parar para olhar o limite das ondas. O mar agora tinha se retirado, sumido no horizonte como se houvesse escorrido por um buraco ligado ao centro da terra.
Daniel não tinha medo, mas já não era totalmente ele mesmo. Não chamava o mar, já não falava com ele. A luz do sol refletia na água das poças como em espelhos, quebrava na ponta dos rochedos, dava saltos velozes, multiplicava seus raios. A luz estava por tudo ao mesmo tempo, tão próxima que ele sentia em seu rosto passarem raios endurecidos, ou muito distante, igual à fria faísca dos planetas. Por causa dela é que Daniel corria em ziguezague pela planície dos rochedos. A luz o tornara livre e louco, e ele saltava como ela, sem ver. A luz não era suave e doce como a das praias e dunas. Era um turbilhão desvairado jorrando incessante, repicando entre os dois espelhos que eram o céu e os rochedos.
Principalmente, havia o sal. Há vários dias ele se acumulava por tudo, nas pedras pretas, nos seixos, nas conchas dos moluscos e até nas folhinhas pálidas das suculentas, ao pé da falésia. O sal penetrara a pele de Daniel, depositara-se em seus lábios, sobrancelhas e cílios, nos seus cabelos e roupas, formando agora uma dura carapaça ardida. O sal entrara inclusive dentro do seu corpo, em sua garganta, em seu ventre, até dentro dos seus ossos, corroía e rangia feito poeira de vidro, acendia faíscas em suas retinas doídas. A luz do sol inflamara o sal, e cada prisma agora cintilava ao redor de Daniel e dentro do seu corpo. Havia então esta espécie de embriaguez, esta eletricidade vibrante, porque o sal e a luz não queriam que se ficasse parado; queriam que se dançasse e corresse, pulasse de um rochedo para o outro, queriam que se fugisse pelo fundo do mar.
Daniel nunca vira tanta brancura. Até a água dos alagados, até o céu eram brancos. Queimavam as retinas. Daniel cerrou totalmente os olhos e se deteve, porque suas pernas tremiam e já não conseguiam sustê-lo. Sentou-se num rochedo plano, frente a uma lagoa de água do mar. Ouviu o som da luz pulando pelas rochas, os estalidos secos, as batidas, os chiados e, junto aos seus ouvidos, o murmúrio agudo igual ao canto das abelhas. Sentia sede, mas era como se água alguma pudesse jamais saciá-lo. A luz continuava a queimar-lhe o rosto, as mãos, os ombros, mordia com mil picadas, formigamentos. As lágrimas salgadas se puseram a rolar, devagar, dos seus olhos cerrados, traçando sulcos quentes em suas faces. Entreabrindo as pálpebras a custo, contemplou a planície das rochas brancas, o grande deserto em que rebrilhavam os alagados de água cruel. Os animais marinhos e as conchas haviam sumido, tinham se escondido nas frestas, sob as cortinas das algas.
Daniel se inclinou para a frente no rochedo plano, e pôs a camisa na cabeça para não ver mais a luz e o sal. Permaneceu muito tempo imóvel, cabeça entre os joelhos, enquanto a dança ardente passava e tornava a passar pelo fundo do mar.
Depois veio o vento, de início fraco, andando dificilmente no ar espesso. O vento cresceu, o vento frio saiu do horizonte, e os alagados de água do mar estremeciam e mudavam de cor. O céu ganhou nuvens, a luz tornou a ser homogênea. Daniel escutou o rugido do mar próximo, as ondas grandes batendo o ventre nos rochedos. Gotas de água molharam sua roupa e ele saiu do seu torpor.
O mar já estava ali. Vinha ligeiro, cercava depressa os primeiros rochedos como ilhas, afogava as fendas, deslizava com um som de rio em cheia. Toda vez que tragava um pedaço de rocha, havia um som surdo que abalava o soco da terra, e um rugido no ar.
Daniel ergueu-se de um salto. Pôs-se a correr sem parar rumo à praia. Já não tinha sono, já não temia a luz nem o sal. Sentia uma espécie de fúria dentro do corpo, uma força que ele não entendia, como se fora capaz de quebrar os rochedos e abrir as fendas assim, num só golpe de calcanhar. Corria à frente do mar, seguindo o caminho do vento, e ouvia atrás de si o rugido das ondas. Também gritava, vez ou outra, para imitá-las: “Ram! Ram!”, pois ele é quem comandava o mar.
Tinha de correr depressa! O mar queria tomar tudo, os rochedos, as algas, e também aquele que corria à sua frente. Às vezes jogava um braço, à esquerda, ou à direita, um longo braço cinzento e manchado de espuma que cortava o caminho de Daniel. Este pulava para o lado, buscava uma passagem no alto das rochas, e a água se retirava chupando os buracos das fendas.
Nadando, Daniel atravessou vários lagos já turvos. Não sentia mais o cansaço. Ao contrário, havia nele como que uma alegria, como se o mar, o vento e o sol tivessem dissolvido o sal e o tivessem libertado.
O mar estava lindo! Os feixes brancos jorravam luz afora, muito altos e retos, e tornavam a cair em nuvens de vapor que deslizavam no vento. A água nova enchia a cavidade das rochas, lavava a crosta branca, arrancava os tufos de algas. Ao longe, junto às falésias, brilhava a estrada branca da praia. Daniel recordava o naufrágio de Simbad, quando este fora levado pelas ondas até a ilha do rei Miragem, e exatamente assim é que era agora. Corria ligeiro pelos rochedos, seus pés descalços escolhiam as melhores passagens sem que ele sequer tivesse tempo de pensar. Decerto vivera ali desde sempre, na planície do fundo do mar, em meio a tempestades e naufrágios.
Ia na mesma velocidade do mar, sem parar, sem recobrar o fôlego, escutando o barulho das ondas. Elas vinham do outro lado do mundo, altas, inclinadas para a frente, arrastando a espuma, deslizavam pelas rochas lisas e se estraçalhavam nas fendas.
O sol cintilava com seu brilho fixo, bem perto do horizonte. Dele é que vinha toda aquela força, sua luz empurrava as ondas para a terra. Era uma dança que não podia terminar, a dança do sal quando o mar estava baixo, a dança das ondas quando as águas subiam de volta à praia.
Daniel entrou na gruta quando o mar alcançou a muralha de sargaço. Sentou-se nos seixos a fim de olhar o mar e o céu. As ondas, porém, foram para além das algas e ele teve de recuar para dentro da gruta. O mar continuava batendo, jogando seus lençóis d’água que fremiam nos pedregulhos qual água fervendo. As ondas continuaram subindo, assim, uma após a outra, até a última barreira de algas e folhagens. Encontravam as algas mais secas, os galhos de árvores esbranquiçados de sal, tudo o que há meses se amontoara na entrada da gruta. A água esbarrava nos detritos, separava-os, juntava-os na ressaca. Daniel estava agora com as costas tocando o fundo da gruta. Não podia recuar mais. Olhou então para o mar a fim de detê-lo. Com todas as suas forças, olhou para ele, sem falar, e mandou as ondas de volta, criando ondas contrárias que quebravam o impulso do mar.
Várias vezes, as ondas saltaram sobre as muralhas de algas e detritos, respingando o fundo da gruta e cerceando as pernas de Daniel. Então, de repente, o mar parou de subir. O barulho terrível se aplacou, as ondas ficaram mais suaves, mais lentas, como pesadas de espuma. Daniel percebeu que acabara.
Deitou-se nos seixos à entrada da gruta, o rosto virado para o mar. Tremia de frio e cansaço, mas nunca experimentara felicidade igual. Adormeceu assim, naquela paz imóvel, e a luz do sol desceu devagar qual chama que se apaga.
O que foi feito dele, depois disso? O que ele fez todos aqueles dias, aqueles meses, dentro da sua gruta de frente para o mar? Talvez tenha mesmo ido para a América, ou ido até a China, num cargueiro avançando devagar, de porto em porto, ilha em ilha. Os sonhos que começam assim não devem parar. Daqui, para nós que estamos distantes do mar, tudo era impossível e fácil. Só sabíamos que algo estranho acontecera.
Era estranho porque havia nisso tudo um aspecto ilógico que desmentia tudo o que diziam as pessoas sérias. Tanto tinham se agitado para lá e para cá, os professores, bedéis, policiais, para encontrar o rastro de Daniel Simbad, tantas perguntas tinham feito, e eis que um belo dia, a partir de certa data, foi como se Daniel nunca tivesse existido. Não falavam mais nele. Mandaram para seus pais todos os seus objetos pessoais, inclusive os antigos trabalhos, e nada restou no liceu além da sua memória. E nem isso as pessoas queriam mais. Puseram-se novamente a falar numa coisa e outra, nas suas mulheres e casas, seus carros e nas eleições cantonais, como antes, como se nada tivesse acontecido.
Talvez não estivessem fingindo. Talvez tivessem mesmo esquecido de Daniel, de tanto terem pensado nele meses a fio. Talvez, tivesse ele voltado e aparecido na porta do liceu, as pessoas não o tivessem reconhecido e teriam perguntado:
“Quem é você? O que quer?”
Nós, porém, não tínhamos esquecido. Ninguém, no dormitório, nas salas de aula, no pátio, esquecera-se dele, nem mesmo os que não o tinham conhecido. Falávamos de coisas do liceu, de problemas e de versões, mas ainda pensávamos muito nele, como se ele fosse de fato um pouco Simbad e ainda andasse percorrendo o mundo. Vez ou outra, parávamos de falar e alguém fazia a pergunta, sempre a mesma:
“Você acha que ele está lá?”
Ninguém sabia ao certo o que era aquilo lá, mas era como se víssemos o lugar, o mar imenso, o céu, as nuvens, os recifes selvagens e as ondas, os grandes pássaros brancos que pairam ao vento.
Quando a brisa agitava os galhos das castanheiras, olhávamos para o céu e dizíamos, com alguma preocupação, à maneira dos marujos:
“Vamos ter tempestade.”
E quando o sol de inverno brilhava no céu azul, comentávamos:
“Hoje ele está com sorte.”
Mas nunca dizíamos muito mais que isso, era como se tivéssemos, sem saber, concluído um pacto com Daniel, como se tivéssemos feito algum dia uma aliança de segredo e silêncio, ou era talvez como o sonho que tínhamos simplesmente iniciado, certa manhã, ao abrir os olhos e ver na penumbra do dormitório a cama de Daniel, que ele arrumara pelo resto da vida, como se não fosse nunca mais dormir.
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