ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2021
Arame da discórdia
Protesto de comunidade ofusca reabertura do MAM da Bahia
Fernanda Santana | Edição 181, Outubro 2021
Embora viva a menos de 200 metros do Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA), em Salvador, Dilson Vasconcelos dos Santos não costuma frequentar o local. “O que aconteceu foi que os caminhos foram sendo fechados”, explica o senhor de 63 anos. Em 17 de agosto passado, ele foi ao museu pela primeira vez em duas décadas. Era um grande dia para o MAM, que, depois de cinco anos em reforma, reabria as portas com a exposição O Museu de Dona Lina, em homenagem à arquiteta Lina Bo Bardi, que projetou a transformação do Solar do Unhão no espaço atual.
Mas Vasconcelos dos Santos não foi até lá para ver a exposição. Às onze da manhã, ele e trinta moradores da Comunidade do Solar do Unhão, vizinha do museu, se reuniram na entrada para uma manifestação. O símbolo do protesto havia se espalhado pelas redes sociais na tarde anterior: uma cerca de arame farpado colocada no muro próximo à entrada principal do museu.
O Coletivo de Entidades Negras, a Associação de Moradores do Solar do Unhão e o Museu Street Art Salvador, que convocaram o protesto, chamaram de “racista” a iniciativa de instalar a cerca e espalharam a frase: “Para a elite, píer e casarão. Para a comunidade, arame farpado.” Na reforma, o museu ganhou um píer, um atracadouro e uma reserva técnica.
A concertina, que tem 4 metros, foi colocada em janeiro sobre um muro próximo à entrada do MAM, na Avenida Lafayete Coutinho (mais conhecida como Avenida Contorno). Segundo a administração do museu, foi uma medida para impedir que as pessoas pulem o muro para chegar à Prainha do MAM, uma das faixas de areia mais disputadas pelos soteropolitanos e turistas, localizada na área ocupada pelo museu. O único acesso à Prainha é pelo portão principal, que está fechado desde dezembro de 2019, a fim de preservar as esculturas que ficam a céu aberto. Para chegar à Prainha, os banhistas, impedidos de ir pelo caminho do museu, contratam barqueiros que cobram 10 reais pela viagem de ida e volta. Alguns pulam o muro.
O arame, no entanto, foi apenas o ponto de ebulição do conflito dos vizinhos com o museu. A manifestação era contra o descaso das autoridades com a comunidade, que não teve nenhuma melhoria ao longo do tempo em que o MAM virou um canteiro de obras.
Mesmo Vasconcelos dos Santos, que é presidente da Associação de Moradores do Solar do Unhão e trabalha nas docas da Bahia Marina, está mais preocupado com as condições de vida de sua comunidade do que com a concertina. “Não quero dizer que o museu é racista. Quero dizer que a gente também mora aqui”, diz. A comunidade fica a cerca de cinco minutos a pé do museu e é composta por 360 casas, instaladas desde as cercanias da Avenida Lafayete Coutinho até a beirada do mar.
O MAM faz parte do complexo arquitetônico do Solar do Unhão ou Quinta do Unhão, que inclui o casarão do século XVIII onde acontecem as exposições principais, cinco outros espaços expositivos, uma capela, uma sala de cinema, dois pátios e um parque de esculturas, numa área de 60 mil m2, que vai até a praia. O conjunto, na orla da Baía de Todos-os-Santos, foi tombado em 1943 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
O cuidado com o entorno de bens tombados é uma das discussões relacionadas à defesa do patrimônio. Foi com base nela que os moradores da comunidade questionaram o fato de não terem sido beneficiados pela reforma do museu. Os protestos levaram a diretoria do MAM e o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac) a fazerem reuniões em agosto e setembro com a associação de moradores para debater as reivindicações.
Em setembro, duas secretárias do museu passaram a cadastrar pessoas da comunidade para receberem convites de cinema, entradas em exposições, desconto ou gratuidade em oficinas e passagem livre para a Prainha, pelo portão principal.
A comunidade, porém, está interessada em outras coisas. Nas reuniões com as entidades culturais, moradores pediram o melhoramento da escada que os leva à Praia das Pedras, a liberação do trabalho de ambulantes na Prainha do MAM e a construção de uma quadra de esportes. “A cerca foi um marketing para as lutas legítimas deles. Ela não é demanda e não será retirada”, diz o diretor do MAM, Pola Ribeiro. “Mas não existe museu sem diálogo com o entorno”, completa.
O primeiro endereço do MAM, em 1959, foi o foyer do Teatro Castro Alves. No Complexo do Unhão funcionava o Museu de Arte e Tradições Populares, projetado por Lina Bo Bardi. “Ela sonhava em criar ali um museu-escola, e como tal aberto a todos”, explica o professor Maurício Chagas, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que pesquisou a trajetória da arquiteta nesse estado. O espaço devia integrar o popular e o erudito, as comunidades e os artistas, com oficinas de artesanato e arte destinadas a todas as pessoas. “Mas o museu, de centro de pesquisa, documentação e transmissão de conhecimento, passou a ser expositivo, tradicional.”
As coisas mudaram depois do golpe militar, em 1964. Lina Bo Bardi e seu projeto entraram na mira do novo regime, ela pediu demissão, e o Museu de Arte e Tradições Populares foi absorvido pelo MAM, que havia sido transferido para o endereço atual.
Dilson Vasconcelos dos Santos chegou em 1965 ao Solar do Unhão, então uma vila de pescadores com vinte casas. Criança, ele buscava água numa fonte do MAM. Nos fins de semana, ia até o museu para ver o pôr do sol. Raramente visitava as exposições. “O contato foi diminuindo com o tempo, e as coisas aqui cresceram muito”, diz sobre a comunidade, que atualmente tem 450 habitantes.
Ele planeja frequentar mais o museu de agora em diante. No dia do protesto, embora não tenha ido até lá para isso, aproveitou a caminhada e visitou a exposição. Como conseguiu uma folga no último domingo de setembro, planejava passar parte do dia no MAM com um sobrinho e os quatro netos.
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