ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2020
Arquitetura da demolição
Em meio à pandemia, o governo destrói o patrimônio cultural de Tirana
Franc Golemaj | Edição 165, Junho 2020
De Tirana
Tradução de Bernardo Joffily
A Covid-19 irrompeu na Albânia em 8 de março, quando foram confirmados os dois primeiros casos de contágio: um pai e seu filho que tinham chegado da Itália. Começaram então a ser aplicadas no país medidas de proteção, que, cada vez mais duras, afetaram a sociedade albanesa em três sentidos: econômico, psicológico e cultural.
A partir de março, foram suspensas as aulas nas escolas, do jardim de infância à universidade, e cancelados os eventos públicos e esportivos. O tráfego aéreo e terrestre passou a ser controlado ou mesmo bloqueado. Os serviços religiosos foram suspensos. Na capital Tirana e em outras cidades de grande porte, decretou-se o toque de recolher entre as seis da tarde e as cinco da manhã do dia seguinte. Mas nos fins de semana o isolamento era total, das 13 horas da sexta-feira até as 7 de segunda-feira. Os idosos só podiam sair aos sábados, entre sete e onze da manhã. Severas e variadas multas eram aplicadas a quem descumprisse as ordens. Até mesmo emissoras de tevê que reunissem num mesmo local fechado mais de duas pessoas eram multadas.
A repressão policial também se acentuou. Num episódio polêmico, a polícia deteve um homem de 32 anos que levava dois pães à casa de seus pais em isolamento social. Acusado de violar o horário da quarentena, ele passou 72 horas na delegacia até que o autorizassem a retornar à residência da família.
As medidas sanitárias, que só começaram a ser abrandadas no início de maio, permitiram controlar com êxito a pandemia. Até 28 de maio, o país tinha 1 076 casos positivos e 33 mortes, numa população de 2,9 milhões de habitantes.
Mas a Albânia é um país de economia frágil e está entre os mais pobres da Europa. Dois meses de isolamento domiciliar causaram um baque de grande proporção na vida das pessoas. Milhares perderam seus empregos. Os negócios, em particular os pequenos e médios, entraram em profunda crise, pois a ajuda econômica do governo nos últimos meses foi aplicada a apenas alguns setores, em escala reduzida.
As consequências dessa situação para a vida das pessoas, inclusive do ponto de visto psicológico, são incalculáveis. Por isso, protestos contra as medidas do governo não deixaram de acontecer em várias regiões. Aos problemas que foram se acumulando, a classe política deu respostas sem consistência, que adicionaram ainda mais “insegurança” à opinião pública.
Tudo isso ampliou a preocupação dos cidadãos com o seu futuro, o de suas famílias e o do país, tanto mais porque o governo, durante a quarentena, tomou iniciativas bastante danosas à democracia, como restringir a liberdade de imprensa e a mídia online.
Arquiteto que sou, chamo a atenção para a destruição de prédios de expressivo valor cultural e histórico do país, processo que começou já faz alguns anos, mas encontrou espaço e ambiente perfeito nesse momento de crise causado pela pandemia.
Quando as atenções estavam voltadas para o combate à Covid-19 foram derrubadas as duas últimas mansões tradicionais de Tirana do período em que o país esteve sob o domínio turco (do século XV ao início do século XX; a independência da Albânia ocorreu em 1912). O fato de uma das mansões ter sido tombada pelo patrimônio histórico em 1987 não impediu que o governo autorizasse a destruição de ambas, feita sem alarde em 9 de maio.
Tirana é uma metrópole de quase 900 mil habitantes, onde se agrupam culturas muito diferentes. No coração da cidade vive e trabalha a maior parte da elite albanesa, e é ali que estão localizados o Parlamento, os prédios estatais e várias construções históricas, muitas delas projetadas por arquitetos italianos na década de 1930 (mesmo antes da ocupação da Albânia por Mussolini, em 1939, a Itália já exercia grande influência sobre o país). Uma dessas construções era o Teatro Nacional de Tirana.
Tratava-se de um tesouro do patrimônio arquitetônico europeu, construído em 1939 pelo engenheiro e arquiteto italiano Giulio Bertè. Mas, há dois anos, o governo decidiu, sem consulta à população, substituir essa edificação histórica por um novo teatro, projetado pela companhia dinamarquesa Bjarke Ingels Group BIG), escolhida sem licitação pública.
A arquiteta francesa Françoise Astrog Bollack afirmou que um prédio antigo não pode ser qualificado como um obstáculo ao processo urbanístico, pois é onde está guardada parte da memória de um povo, que modifica e adequa as construções às suas necessidades e desejos. A ação do poder público de dar continuidade às mudanças na cidade não deve implicar na destruição da história coletiva, como também nos ensina uma das arquitetas mais ilustres do século XX, a ítalo-brasileira Lina Bo Bardi: “O passado não volta. Importantes são a continuidade e o perfeito conhecimento de sua história. A defesa do patrimônio cultural não pode ter fraturas. As fraturas culturais, a indiferença e o esquecimento são próprios das classes médias e altas – o povo não esquece – é o único capaz de constituir-se numa continuidade histórica sem fraturas.”
No caso do Teatro Nacional, porém, os órgãos legislativos albaneses, valendo-se da atual situação, não apenas ignoraram como procuram atingir a memória coletiva das pessoas, ao atentar contra a arquitetura com a qual conviveram durante décadas e que continha algo do espírito popular da cidade.
No dia 17 de maio, às quatro e meia da madrugada, a polícia ocupou o Teatro Nacional para que fosse iniciada a demolição. Com brutalidade ímpar, os policiais retiraram de dentro do edifício ativistas e cidadãos que ali se revezavam havia mais de dois anos, num ato de resistência – e cerca de sessenta pessoas foram presas. Também investiram contra jornalistas, que chegaram a ser espancados.
Esse dia deverá ser lembrado como o mais funesto da democracia albanesa nas últimas três décadas, um novo passo na tentativa de implantação no país de uma ordem político-social asfixiante.