“Tiriyóooooo...” O nome sai como um objeto distante, um eco que se ouve lá longe. É a única palavra que Ester enuncia desse modo. “Eu vou voltar. Tenho saudade das minhas terras” CREDITO: VITO QUINTANS_2021
Arrabalde: Parte V_O reencontro
Histórias de quem escolheu a mata
João Moreira Salles | Edição 174, Março 2021
Florestas baixas, capoeiras, pastos, roçados, bosques plantados, matas densas, rios caudalosos, igarapés cristalinos, povoados, fábricas de porte – na Amazônia é possível ver tudo isso da janela de um carro que roda horas e horas sem jamais deixar os limites de uma mesma propriedade. O Projeto Jari, na fronteira entre o Pará e o Amapá, é assim. Criado no final da década de 1960 por um septuagenário recluso que queria instalar ali a maior operação mundial de celulose, a propriedade é quase do tamanho de dois Líbanos. Dentro de suas fronteiras, pode-se passar por uma cidade, por duas, por três; por uma unidade de conservação, depois por outra, por uma terceira e ainda por uma quarta. Por um aeroporto. Por quatro vilas industriais – as silvovilas, como são chamadas –, servidas por clube, clínica, igreja e mercado. Por 98 comunidades tradicionais que, espalhadas pelas florestas do empreendimento, abrigam 14 mil pessoas. Vai-se de um ponto a outro escolhendo trajetos formados por 9 mil km de estradas e ramais. O Jari já foi considerado a maior propriedade privada contínua do planeta.
A história do Jari e do armador norte-americano Daniel Ludwig, tido por muitos como o homem mais rico de seu tempo, empreendedor que, com apoio dos generais brasileiros, planejou construir um enclave imperial no meio da selva, é uma saga fascinante para outra hora. O que importa, no momento, é a paisagem do vasto território compreendido pelo projeto. Do milhão e pouco de hectares, apenas um décimo é área aberta, e, desse décimo, um terço é ocupado por plantações de eucalipto. A maior parte é floresta. Saindo de jipe pela manhã de Monte Dourado – a company town que Ludwig construiu para alojar seus funcionários –, anda-se indefinidamente por estradas de terra que avançam pela mata como serpentes. De um lado e do outro correm árvores, lianas, bromélias, flores. Nos trechos mais fechados, galhos riscam os vidros e folhas caem dentro da cabine.
Aos olhos de um amador, a floresta não parece imponente. Não é preciso inclinar muito o rosto para ver o céu, observação sem muito valor para quem estuda a Amazônia. Há muitas florestas dentro da floresta, e o elemento do espanto – em especial, o espanto de um leigo – diz quase nada (se é que diz alguma coisa) sobre a complexidade ecológica dessas várias fisionomias vegetais.
Contudo, mesmo um olho destreinado identifica diferenças na mata contínua, seções mais altas ou mais baixas, mais luminosas ou mais escuras, mais ruidosas ou mais quietas, com menos ou mais céu à vista. Afora os trechos em que o homem deixou visível o seu trabalho – um corte raso, um pasto –, as transições são suaves. Em meio a árvores de diâmetro modesto começam a aparecer as de tronco mais robusto. No início, uma aqui, outra acolá. Em seguida, duas juntas, depois três. Uma inclinação leve da cabeça encontra logo a copa e o sol que ofusca, mas dali a 200 metros o dossel se fecha, a luz cai, a temperatura também, o sol desaparece. Para ver o fim da árvore já não basta dobrar o pescoço, é preciso inclinar um pouco o corpo. Esse é o lugar do espanto.
Três carros do Projeto Jari param no meio dessa mata desconcertante. Funcionários da empresa, pesquisadores de organizações não governamentais e um antropólogo da Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas) descem e caminham até uma sumaúma. Quarenta metros de altura, estima um engenheiro agrônomo, talvez cinquenta, sugere o homem da Semas. Como se a gravidade tivesse mudado de eixo e puxasse em outra direção, todos agora estão dobrados para trás, os rostos apontados para o céu – um céu que não se vê. Raízes nascem altas no tronco e se lançam à terra como as costuras de uma saia rodada. São raízes tabulares que cumprem a função dos arcobotantes numa catedral, afixando a estrutura imensa no solo, e que também ajudam a árvore a respirar. Nos nichos que formam, uma pessoa adulta é capaz de ficar em pé.
Árvores assim não são raras nesse lugar. É possível encontrá-las a poucos passos de distância, com seus troncos que seis ou sete homens de mãos dadas não conseguem enlaçar. Joanísio Mesquita, o antropólogo, fica de cócoras, espana as folhas e apanha uma lasca no meio da serrapilheira. “Cerâmica indígena”, diz. Todos param de olhar para cima e passam a vasculhar o chão. Fragmentos de artefatos humanos se espalham por toda a área. Estão cobertos por folhas ou ocultos sob a terra – uma terra mais escura que as outras, coalhada de pequenos sedimentos, granular ao toque. “Solo estruturado, terra feita por índio.”
Apenas 6% dos solos da Amazônia são naturalmente férteis. Segundo uma interpretação hoje predominante entre arqueólogos e endossada por alguns ecólogos (mas contestada por outros), todo o excedente de fertilidade nos solos do bioma – ou seja, todas as terras ricas além daqueles 6% – resulta de ação humana. Ao longo de milênios, os habitantes da floresta alteraram a composição do solo, enriquecendo-o com resíduos de fogueira, fragmentos de cerâmica, sepultamentos e descarte de matéria orgânica. Nesse chão que alguns estimam cobrir até 10% da floresta, as populações originárias selecionaram plantas, domesticaram seu plantio e redesenharam a paisagem, aumentando a oferta de alimento animal e vegetal.
Ninguém nega a excepcionalidade desses solos manejados, que estão entre os mais férteis do mundo. Se correta, a hipótese da intervenção humana tem implicações profundas. Quem olhasse para aquele trecho de floresta na imensidão do Jari, por exemplo, não estaria enxergando apenas um patrimônio natural. Veria também um monumento arquitetônico, a ruína histórica, botânica e viva, de uma civilização antiga. É a floresta como o legado de um povo, um lugar construído para o qual seus arquitetos – e os filhos e as filhas de seus arquitetos –, quando distantes, querem retornar, assim como nós queremos voltar para a cidade em que crescemos.
O Rio Paru delimita a fronteira ocidental do Projeto Jari. Subindo 500 km em direção à sua nascente, chega-se à fronteira do Suriname. Lá fica a Serra do Tumucumaque, que é outra natureza, outra paisagem, uma topografia de montanhas entremeada por campos naturais e savanas. De lá, de uma missão franciscana isolada do mundo, uma mulher decidiu retornar.
A HISTÓRIA DE ESTER YMERIKI KAXUYANA
Primeiro ela vai contar sobre a avó dela, que é a mãe da mãe dela; agora vai começar, anuncia a filha, que se chama Vaneusa Tirtiri Kaxuyana de Sousa e tem 20 anos. Ela se vira para a mãe e fica em silêncio.
Ester Ymeriki Kaxuyana é capaz das mais extraordinárias modulações de voz. Na pouca luz da casa, seu relato é uma presença tangível, um puro fato sonoro que ganha a dimensão de outro corpo na sala, mais presente até que as silhuetas na penumbra. Para quem não fala kaxuyana, é o corpo de um estranho que se expressa sem o fardo do sentido, de outra maneira, por transições quase instantâneas entre sussurros e silvos, lamentos e gargalhadas, angústia e alegria, simulacros de choro e sorrisos de deleite, declamação e canto. Ester Ymeriki Kaxuyana poderia ser uma atriz do teatro nô.
Ela fala por uns minutos e se cala. A filha traduz: Ela disse que no começo, como os brancos viviam atrás dos indígenas e dos negros, eles se afugentaram lá na mata, lá no rio. Lá, nesse lugar aqui.
Esse lugar, essa região – Norte do Pará, na Amazônia setentrional – é de difícil acesso. Florestas densas e rios encachoeirados formam barreiras quase intransponíveis para feitores brancos que perseguiam negros escravizados em fuga, razão pela qual o território passou a ser partilhado com quilombolas.
A mãe retoma a história, Vaneusa traduz: Ela disse que esses grupos fugiam, e fugiam, e fugiam, e fugiam não só dos brancos, mas também dos negros, porque eles tinham medo, e foram todos parar nas margens de um rio, e lá apareceu um outro grupo, e nesse grupo tinha um homem, e o tio da avó dela falou: Ah, você tem que casar com ele porque já tá moça, pra formar familiares. E a avó dela casou com esse homem.
O casamento durou pouco. O marido adoeceu e os remédios caseiros não funcionaram. Ainda jovem, a avó de Ester ficou viúva. Os parentes lhe disseram para se casar de novo, agora com um primo, um homem mais velho, e foi o que ela fez. Mudou-se então para a aldeia desse homem, no Rio Kaxuru, terra ancestral dos kaxuyanas – essa é “a denominação dos índios que se reconhecem como a ‘gente’ (-yana) do ‘Cachorro’ (Kaxuru)”, escrevem os antropólogos Ruben Caixeta de Queiroz e Luisa Gonçalves Girardi. A aldeia ficava num mundo de rios e florestas.
A jovem deixou para trás a parentela. A família começava a se dispersar, num movimento pendular de afastamentos e reaproximações que, em escala fractal, reproduzia a dinâmica de grupos indígenas inteiros. No caso específico do povo Kaxuyana, esses “movimentos de maré”, no dizer de antropólogos, ganhariam feições drásticas por intervenção do Estado brasileiro. O governo militar seria o agente da dispersão, da diáspora; os indígenas providenciariam o retorno à terra original.
Uma das crianças com quem a avó de Ester havia crescido era um primo querido. Tendo perdido pai e mãe, coube a ele, filho mais velho, cuidar de si, do irmão e também da tia. Adolescente ainda, já não tinha ninguém, e a tia era incapaz de prover o sustento deles. Vaneusa traduz: Ela diz que como ele tinha que ser o chefe, o primeiro que fez foi tentar fazer a roça. Nós temos que nos virar, foi o que ele disse. Porque já não tinha o pai pra ajudar e teve que tentar sozinho. Foi quando ele derrubou uma árvore e essa árvore caiu em cima da cabeça dele, a árvore caiu, e ele foi junto e quebrou o pescoço.
A filha termina e se vira para a mãe, esperando a continuação, e aí um grito agudo se espalha pela sala. Sentada num balde de boca para o chão, as costas apoiadas na parede, Ester golpeia o peito com os punhos fechados. Impassível, a filha ouve e reconta: Ela diz que ele ficou vivo debaixo do pau, mas a árvore era pesada e eles não conseguiram tirar de cima dele, porque o irmão era pequeno, a tia era fraca e os outros não quiseram ajudar, entendeu? A tia e o irmão ficaram do lado dele, tentaram puxar o pau, mas não conseguiram. Não tem mais jeito, eles falaram, esse pau é muito grosso, e então enterraram. Jogaram terra e enterraram ali mesmo. Com árvore e tudo?, alguém pergunta. Com árvore e tudo, Vaneusa responde, e continua: Ela disse que a avó dela, quando ficou sabendo desse acidente, subiu o rio e voltou lá, mas já tinham enterrado, não tinha mais jeito.
A avó tomou o rio na direção contrária e voltou para sua aldeia trazendo consigo o primo sobrevivente. Com o tempo ela teria um filho com o novo marido. Esse homem partia para longas caçadas e pescarias, e os parentes iam coletar remédios e alimentos na floresta, manipulando a mata e manejando seus recursos. Volta e meia davam com negros fugidos de seringais.
A filha conta o que ouve da mãe: Ela disse que foi nesse tempo que a avó teve o primeiro encontro com um negro, primeiro encontro nesse lugar, o indígena e o negro. Apareceu por lá um negro com uma bebezinha, vinha fugido dos brancos e a esposa dele tinha morrido. Eram só eles, esse negro e a bebê. Como a avó também tinha um filhinho, eles dois foram acolhidos, e todos viviam bem.
Ester sobe a voz, como quem muda de oitava. É um ponto de inflexão. A filha traduz sem alterar o tom: Ela disse que o marido saía pra caçar e pescar, pra fazer essas coisas todas, e durante esse período a avó dela, mãe da mãe dela, teve um relacionamento com esse negro – Ester começa a rir enquanto fala, é um momento da história de que gosta. Vaneusa traduz: Ela disse que o marido ficava na pesca e não sabia de nada, e como eles tinham relações sexuais ele não desconfiou quando deu com a mulher grávida um dia que voltou dessas viagens. Só que a criança nasceu negra, muito, muito escura mesmo. Pra esconder, ela pegava uma cuia d’água e passava pasta de tapioca na cabeça do bebê pra não ficar… Era o cabelo, né? E ela bonita, branquinha, de cabelo bem liso…
O marido aceitou. Eram pessoas boas, diz Vaneusa, pessoas sábias. O negro fugido se chamava Tiago Vieira e o filho ganhou um nome português, não indígena: Mirtão Vieira. Mirtão cresceu junto com o filho indígena da avó dela, a criança negra numa família kaxuyana.
O marido já estava com certa idade, o corpo enfraquecia, ele caçava menos. Passou a fabricar remos, que negociava com a comunidade. A atividade o levava para o mato, agora por breves períodos, o suficiente apenas para encontrar a madeira e trazê-la de volta. Numa dessas ocasiões, trouxe também um jabuti.
Vaneusa traduz: Ela disse que ele entregou o jabuti pra avó dela, mãe da mãe dela, pedindo assim: Faz essa comida pras crianças – que eram o filho dele e o filho desse negro – que eu vou pro mato por causa do remo. Quando ele voltou, parece que o almoço ainda não tinha ficado pronto, e aí ele não gostou. Ele sabia que a mulher dele continuava de caso com o negro, porque ele era pessoa sábia, mas nesse dia ele ficou com raiva e disse: Você tava bem namorando, então você não teve tempo de fazer o almoço por esse motivo. Um monte de coisas ele falou. Nesse tempo quem mandava era o homem, então ela fez o almoço fingindo que ia tudo bem. O marido almoçou e voltou pro mato. Acontece que o namorado dela, o negro, ficou ouvindo atrás da bananeira, e aí foi ele que ficou com raiva.
Ester retoma, Vaneusa acompanha: Ela disse que ninguém sabe o que aconteceu, se teve violência, se não teve. Quando acharam o marido, ele tava morto, e ninguém sabe se foi o negro ou se foi acidente. Aí, como ele já tinha falecido, os dois ficaram juntos. Vivendo juntos, entendeu? Ele era o único negro entre os parentes. Porque ele casou com a avó, então teve que morar lá. Os dois viviam de comércio, vendiam castanha em troca de terçado, essas coisas, né?
Algum tempo depois, a avó engravidou novamente. A filha conta: Ela disse que naquela época os indígenas faziam rituais e ele, Tiago, decidiu olhar. É proibido. Os parentes falavam: Não vai. Mas ele desobedeceu, e o que aconteceu depois ninguém sabe. Ele passou a agredir a esposa grávida e a errar muito. Os parentes vieram, parentes dele, viram que ele tava enfeitiçado e levaram ele embora, e foram até um lugar onde não tinha ninguém. Parece que mataram. Minha mãe disse que não sabe o que aconteceu, na época foi só isso que falaram pra avó dela: Ele tá morto.
A avó de Ester não sobreviveu ao parto; a bebê, sim. Essa menina de pele negra viria a ser a mãe de Ester, avó de Vaneusa.
Ester fecha os punhos e os aperta contra o peito. Solta um gemido. Vaneusa ouve e reconta: Ela disse que a avó da menina, bisavó dela, mãe da mãe que tinha morrido no parto, não quis ficar com a neta, achava que essa neta era uma aberração. Ela era kaxuyana, a menina não era. Ela não gostava de pessoas negras, tinha o preconceito, e então preferiu ficar só com o neto kaxuyana da filha morta.
A criança ficou com o irmão, Mirtão Vieira, que já era um menino crescido. Ao saber da morte do filho, a mãe de Tiago Vieira, matriarca negra que até então não convivia com os indígenas, foi até o Rio Kaxuru, viu a criancinha e perguntou ao neto Mirtão: Quem é? É minha irmã, eu tô cuidando. Não tá mais, ela disse, e ficou no Kaxuru pra cuidar da menina.
Certo dia, um primo adulto da avó kaxuyana de Ester voltou da pesca e encontrou a criança sozinha na rede, chorando. Com pena, resolveu ajudar a cuidar de Mirtão e da bebezinha, as duas crianças negras. Tornou-se pai de criação de ambas.
O tronco de Ester balança muito lentamente, os braços embalam uma criança. Os braços se desfazem, a mão espalmada contra o chão vai subindo, subindo, é a criança – a mãe dela, a mãe de Ester – que cresce e vira moça.
Ela disse que veio a primeira menstruação da mãe dela. Aí, como a mãe era prima com o próprio pai de criação, os parentes falaram pra esse pai: Vocês têm que casar. Você criou ela, agora casa e forma outras famílias. Ele não queria, tinha criado ela, considerava uma irmã, e ela era negra. Casar era diferente de criar, ele falava que não ia conseguir pentear o cabelo dela. Então tinha preconceito também, né? Mas casou, ela tinha 12 anos, e os dois tiveram um bebezinho que morreu logo porque eles não sabiam cortar o cordão umbilical. O pai dela, o meu avô, então foi pro mato junto com outros anciãos porque ia virar pajé, e ficou lá quase um ano porque pra se tornar sábio precisa muito tempo, e quando ele voltou, a minha avó, minha avó negra, mãe dela, tava grávida. O pai chamava Okoyi e era filho de criação do meu avô. Mas Okoyi cresceu e se apaixonou pela madrasta dele, e eles tiveram um filho, que foi o primeiro irmão da minha mãe, o meu tio João Batista. O meu avô viu aquilo e sabia que o filho não era dele. A princípio ele voltou pro mato deixando claro que minha avó tinha que se virar. Eu não vou ficar perto de mulher que tem filho que não é meu, foi o que ele disse, mas lá no mato ele sentiu falta dela e decidiu retornar. Vamos voltar a ter relação entre marido e mulher, mas não aqui. E aí mudaram de aldeia.
Vaneusa prossegue: Ela disse que lá ele se apaixonou por uma outra mulher e decidiu que ia viver com as duas. A minha avó, minha avó negra, mãe da minha mãe Ester, não podia falar nada porque tinha um filho no colo que não era dele, né? Então eles passaram a dormir todos juntos. Quando o meu tio João Batista tinha 5 anos, nasceu minha mãe.
Ester passaria seus primeiros anos ali, em terras kaxuyanas, nadando no Cachorro e no Trombetas, a filha de traços indígenas de mãe negra.
Foi quando o Protásio, o alemão, veio pelo rio, diz Vaneusa.
Quem é Protásio?, pergunta um dos ouvintes.
Era um padre.
Protásio era um padre?
Era. Ele passava nas aldeias e falava: Vamos, vamos.
E por que isso?
Era o assunto das missões. Ele falava sobre a Bíblia, essas histórias, né? Ela disse: Ele ensinava essas coisas todas, e os indígenas não sabiam de nada, eles acreditavam nos deuses deles. Não queriam saber, mas ele insistia: Vocês têm que saber mais sobre Deus, vocês não podem mais ser assim. Ele foi querendo mudar, entendeu? Falava assim: Vocês não podem mais acreditar nessas coisas que vocês fazem. Então o pai dela resolveu acompanhar esse padre e foram todos parar na Missão Tiriyó, na Serra do Tumucumaque, fronteira com o Suriname.
Tiriyóooooo… O nome sai como um objeto distante, um eco que se ouve lá longe. É a única palavra que Ester enuncia desse modo.
Ela disse que em Tiriyó tinha um grupo de indígenas muito bravos que os padres vinham tentando catequizar, e é nessa hora que chega o grupo da minha mãe. A convivência era difícil. O pai dela não pensava em ficar lá, mas os padres insistiam: Vocês têm que mudar e por isso precisam ficar aqui.
Não demoraram a retornar, pois logo chegou a notícia de que o irmão do pai havia morrido. Era melhor partir, decidiu. Fizeram o longo caminho de volta. Ester viveria novamente nas florestas e nos rios onde nascera, quase sem memória do pouco tempo que havia passado na Missão Tiriyó. O pai continuava a morar com suas duas mulheres, e a segunda, aquela por quem se apaixonara, era da nação Tiriyó. Conforme a tradição de os maridos ficarem perto dos sogros, acabou voltando para as terras dela, juntando-se uma vez mais aos padres da missão. Aos 12 anos, Ester foi levada de novo para o Tumucumaque, deixando para trás a paisagem da sua infância.
Eram terras do povo Tiriyó, diz a filha, e os tiriyós eram bravos, então eles não eram felizes lá, não se sentiam bem. Ela disse que o pai dela sempre pedia: Quando eu falecer, quero que você volte pra nossa terra porque aqui a gente não é feliz. Acontece que ele já não podia voltar, ele tinha que morar na terra da mulher tiriyó, então a minha avó e a minha mãe foram junto com ele. Ela disse que não tem boas lembranças de lá.
Ester viveu na missão até os 33 anos, quando seu pai morreu por mordida de cobra. Já tinha quatro filhas, a mais nova com 3 anos. Apesar de jovem, sentia-se doente e não queria morrer ali. Era uma kaxuyana, e os tiriyós não a consideravam bem-vinda – na missão, o afluxo de gente do seu povo era percebido como invasão de território.
Ela disse que pensou assim: Eu vou voltar. O meu pai me disse que eu tinha que retornar pras minhas terras, que as aldeias ainda existiam. Ela pensou: Eu prefiro morrer lá onde eu nasci, eu quero morrer do mesmo jeito que os meus antepassados, eu tenho saudade das minhas terras.
Vaneusa prossegue: E então ela decidiu retornar, só que não sabia como. Porque lá na missão eles não têm essas coisas de barco. Não tem nada lá, é isolado, parece que você é um preso, entendeu? Quando ela disse que ia voltar, teve dois kaxuyanas, Frederico e Madalena, um senhor e uma senhora, que falaram assim pra ela: Leva a gente contigo. E a minha mãe disse: Mas como? Eu não tenho dinheiro, não sei como fazer pra sair daqui. E o Frederico falou que ia conseguir algum dinheiro.
A decisão foi de Ester?
Foi sim, foi dela, não tinha mais nenhum índio kaxuyana aqui, explica a filha, referindo-se ao lugar onde está e onde nasceu, a Terra Quilombola Cachoeira Porteira, município de Oriximiná, nas margens do Rio Trombetas, a floresta onde Ester viveu até os 12 anos.
A única forma de sair de lá era de avião. Ester resolveu deixar as três filhas mais velhas com o pai e trazer apenas a menor. Embarcou num monomotor da missão e voou sobre 600 km de selva até Macapá. Não sabia falar português, Frederico e Madalena tampouco. Na tentativa de se comunicar com os passantes, repetia o nome dos rios e das aldeias de sua infância. Até que alguém lhe disse: Só dá pra ir de barco, e foi o que ela fez. De Macapá para Santarém, 500 km pelo Rio Amazonas. De Santarém para Óbidos, 120 km também pelo Amazonas. De Óbidos para Oriximiná, 45 km pelo Amazonas e depois pelo Trombetas. De Oriximiná até Cachoeira Porteira, 175 km pelo Trombetas.
Ao descer a última perna do rio, Ester se sentiu bem. Aquela era a paisagem em que crescera, muito diferente das serras e dos campos de Tumucumaque. A filha traduz: Ela disse que reconheceu, era a casa dela.
Ester afaga os cabelos longos e lisos. O balde emborcado em que ela continua sentada a deixa quase ao rés do chão. Sob a luz débil que vem da cozinha, um Cristo em 3D colado à parede abre e fecha os braços. Acima dele, quase na junção com o teto, um urso de pelúcia fixado na madeira com um prego lembra uma segunda crucificação.
Na missão ela foi ficando católica, explica a filha, mas depois que voltou viu que tinha outras religiões e ficou perturbada. Ela perguntava: Mas quantas religiões que tem? Porque lá na missão era só padre, então minha mãe ficou em dúvida. Mas hoje ela é indígena e acredita em tudo o que vê. Ela acredita em tudo.
Da soleira da casa, o pai de Vaneusa, marido de Ester, membro da Comunidade Remanescente de Quilombo de Cachoeira Porteira, corrige a filha: Ela é evangélica, ela me acompanha.
Ester percebeu que duas décadas de ausência não tinham mudado a floresta, mas a paisagem humana era outra. Vaneusa diz que a mãe se espantou com a quantidade de negros. Quando ela partiu, aos 12 anos, eles já estavam na região, mas conviviam pouco com os indígenas: Ela disse que sentiu dificuldade, porque no passado, tirando a mãe dela, aqui ela vivia só entre kaxuyanas. Podiam aparecer negros pra fazer comércio de castanha, mas depois iam embora, e agora eram só eles na região. Não tinha mais nenhum kaxuyana. Só ela, Frederico, Madalena e minha irmã.
Ela teria mais chance de encontrar parentes se procurasse pelo ramo da mãe. Guardara a memória do tio Mirtão, mas não sabia do destino dele: Então minha mãe procurou os quilombolas e pra cada um perguntava: Conhece esse senhor? Até que um respondeu: Ele mora lá no… E ela então reencontrou o tio e teve uma esperança quando viu esse tio, porque agora ela sabia que nem todos tinham morrido. Aqueles eram os nossos parentes, os Vieira, e aquilo deixou ela feliz.
A mãe de Vaneusa passou a viver com os Vieira. Pouco tempo depois – Ester não sabe dizer quando –, o irmão João Batista deixou a Missão Tiriyó. Queria saber da irmã e saiu à procura dela. Encontrou-a entre os quilombolas e soube então que o retorno era possível. Ao voltar para a missão, juntou o seu povo e disse: Lá ainda tem os nossos parentes e as nossas aldeias.
Eles viram que existia aquela chance de retornar pros lugares de origem. Minha mãe tinha conseguido, eles também podiam voltar, e aí decidiram que não queriam mais ficar naquele lugar estranho, que era terra de Tiriyó, né? Então os kaxuyanas começaram a retornar: Ah, é aqui que o meu avô morava, preciso retornar pra esse lugar. Ah, é aqui que eu nasci, preciso retornar pra esse lugar. E, pensando na minha mãe, eles apontavam para a minha avó negra, que ainda estava no Tiriyó. Falavam: A filha e a neta dela já conseguiram voltar, vamos agora nós também, e assim eles retornaram às origens onde nasceram.
Ester ainda voltou duas vezes à missão. Tinha saudade das filhas que deixara lá e tentou recompor a vida com o marido, mas não se acostumou mais: Porque ela se sentia triste, entendeu? Não eram os rios da infância, não era a floresta, não eram os parentes dela. Então ela se sentiu acolhida de novo onde ela nasceu, perto dos familiares e do tio dela, né? Aí trouxe de volta as outras filhas, as minhas irmãs, mas a mãe dela, a minha avó, a avó negra, ela não quis voltar.
Vaneusa vai até uma pilha de papéis e traz uma fotografia. Duas mulheres sentadas num banco de madeira, uma indígena e uma negra, Ester e a mãe. Ester, de cabelos escorridos, escuros, veste uma blusa branca e olha para a lente com um sorriso meio triste e sem jeito; a mãe, de cabelos muito brancos, olha para fora do quadro com uma expressão serena e firme. Uma está em casa, a outra não. A fotografia foi tirada na Missão Tiriyó.
Ela não pretende mais sair daqui, entendeu? Ela pretende morrer aqui, ficar pra sempre.
Ester Ymeriki Kaxuyana meneia a cabeça, em concordância com a última frase da noite. Sua história se interrompe aqui, enquanto ela continua encolhida contra a parede, pequena e ocupando pouco espaço, uma forma modesta de estar no mundo.
A HISTÓRIA DE GUNTHER PROTASIUS FRIKEL
Protásio, como o chamavam no Brasil, nasceu em 1912, na cidade alemã de Breslau, hoje Wroclaw, na Polônia, filho de um relojoeiro. Uma nota biográfica publicada em 1978 por um pesquisador do Museu Goeldi, de Belém, conta que, aos 20 e poucos anos, chegou ao Brasil movido pela vocação religiosa e aqui entrou na ordem dos franciscanos menores. Cursou filosofia em Olinda e teologia em Salvador. Os estudos o puseram em contato com os cultos afro-brasileiros, pelos quais desenvolveu um vivo interesse. Era a sua abertura para a antropologia. Nas décadas seguintes, tentaria conciliar o trabalho da fé e o da razão. Prevaleceria o segundo.
Transferido para a Amazônia, Gunther Protasius Frikel será missionário entre os povos Munduruku do Alto Tapajós e Tiriyó no extremo Norte do Pará. “Nesse período, que se inicia em 1938, estuda também os ‘mocambeiros’, descendentes de escravos fugidos que foram se abrigar nos altos rios Trombetas, Curuá e Cuminá [Rio Paru de Oeste]”, diz a nota biográfica. “No que entra em contato com os índios Kaxuyana, Parukotó, Wayana, Aparaí, além dos Tiriyó.” Eram as peças se arranjando para que dali a três décadas seu destino e o da menina Ester Ymeriki Kaxuyana se cruzassem.
Desde o início do século XX os kaxuyanas do Médio Trombetas vinham sendo dizimados por moléstias trazidas por forasteiros. Entre 1923 e 1925, um surto de sarampo disseminado por trabalhadores de castanhais se alastrou pelas aldeias:
Os índios enfermos, com febre alta, procuraram “refrescar o sangue”, tomando banho na água fria. Em consequência disso, pegaram, no mais das vezes, pneumonia e com isso a morte certa. A mortandade foi enorme. Os índios entraram em pânico. Foi uma tragédia! Durante a nossa estadia no Kaxuru, os índios mais velhos contaram que aqueles que ainda estavam bons já não tinham mais tempo nem vontade de enterrar os mortos, abandonando os cadáveres juntamente com os doentes, fugiram para a mata […] O sarampo arrasou, praticamente, todas as faixas da população de idade madura (dos 30 anos para cima), da qual somente 6 ou 8 sobreviveram.
O relato acima foi escrito por Frikel, que àquela altura, 1970, já abrasileirara o prenome e assinava Protásio. Desde 1957 estava ligado ao Museu Goeldi, instituição pela qual começaria a publicar importantes estudos etnográficos. Segundo a nota biográfica escrita pelo colega do museu, Frikel se deu conta da impossibilidade de conciliar as obrigações de missionário com a atividade científica. Durante trinta anos foi religioso e pesquisador, mas por fim escolheu a antropologia e abandonou a ordem franciscana. Até sua morte, em 1974, publicaria mais de vinte trabalhos, muitos deles com a ajuda da mulher, Marlene, que o acompanhava nas viagens.
É esse Protásio – não mais um frei, agora um antropólogo – que em 1968 despontou pelo rio na aldeia da menina Ester. Vinha movido por um sentido de urgência. Novas doenças estavam dizimando o povo Kaxuyana dos rios Cachorro e Trombetas. Nos testemunhos que colheu entre os sobreviventes dos surtos da década de 1920, Frikel registrara uma tragédia humana e uma tragédia epistêmica: “Como, em certa ocasião, o chefe kaxuyana nos explicou, o sarampo, causando a morte de quase todos os velhos, foi responsável também pela tão grande falta de conhecimento de plantas medicinais e remédios nativos entre eles. Não houve tempo de transmitir esses conhecimentos pelas vias tradicionais e funcionais da tribo.”
Agora tudo se repetia, e com um agravante: a questão do parentesco. Frikel escreve sobre o núcleo Kaxuyana no Rio Trombetas: “Todavia, naqueles anos, grande parte destes últimos morreu. Os restantes, por necessidade, ligaram-se novamente aos índios do Rio Kaxuru que, outrossim, também foram dizimados por doenças. Em relação aos adultos, o número dos jovens estava em certa desproporção de excedentes, mas – e aí começa novamente o grande problema para os Kaxuyana – todos estavam tão aparentados entre si que, para a maioria dos jovens, não havia mais possibilidade de casamento dentro das leis tribais do parentesco etc.”
Para sobreviverem, seria preciso que se dispersassem, que partissem em busca de novos grupos que os aceitassem e com cujos membros pudessem começar novas famílias. Havia duas possibilidades: “[Uma] era descer o Rio Trombetas para a região da Porteira, morar no meio da população negra e mesclar-se com ela. Mas isso não lhes agradava. Tinham ainda bastante consciência tribal de querer ser e continuar ‘gente’, isto é, índio. Outra era a de se agregar a um dos grupos dos altos rios.” Um desses grupos vivia às margens do Rio Paru de Oeste, na Serra do Tumucumaque. Eram os Tiriyó.
O verbete sobre o povo Kaxuyana no site do Instituto Socioambiental (ISA) informa que “cerca de 48 sobreviventes […] se reuniram e concordaram em serem transferidos, com ajuda da FAB (Força Aérea Brasileira), em 1968, para a Missão Tiriyó, na Terra Indígena Parque do Tumucumaque/PA”. Ester Ymeriki Kaxuyana provavelmente estava entre essas 48 pessoas.
A missão nascera de um esforço conjunto entre a Prelazia de Óbidos e o Exército Brasileiro. Ruben Caixeta de Queiroz e Luisa Gonçalves Girardi escrevem que, do ponto de vista da Igreja, a iniciativa era uma forma de converter os índios ao cristianismo; do ponto de vista militar, um modo de fixar populações nativas em pontos de fronteira, assegurando assim a ocupação do território nacional.
Frikel fizera trabalho missionário na juventude. Retornava agora como antropólogo durante uma emergência sanitária. Conhecia os padres, o Exército, a missão e os povos indígenas. Recolhera histórias do passado sobre a devastação das epidemias. Tudo convergia nele. Talvez tenha sido o facilitador do arranjo migratório; talvez tenha sido apenas seu estudioso. No trabalho em que menciona a diáspora, escreve como observador. Não toma parte no episódio, o que pode ter sido o caso. “O que nos interessa no momento é a sobrevivência dos Kaxuyana”, afirma já no final do artigo. “Cremos que sob o ponto de vista sanitário, a mudança foi a sua salvação.”
Em 2003, os kaxuyanas da Missão Tiriyó escreveram uma carta à Funai. Dizia assim:
No ano de 1968, o povo kaxuyana foi transferido pelos missionários franciscanos do Rio Cachorro, seu território original que fica no município de Oriximiná, para a Missão Tiriyó. Algumas famílias decidiram ir para o Rio Nhamundá. Nessa época tinha pouca gente. No total, eram cerca de 60 pessoas, sendo que 40 foram levadas para se juntarem com o povo Tiriyó, dentro da região do Parque do Tumukumaque no Pará, localizado no Rio Paru de Oeste. […] O motivo pelo qual os Kaxuyana foram transferidos de sua terra habitual para a terra habitada pelos Tiriyó era a falta de assistência para apoiar esse povo. Quando os missionários entraram em contato com os Kaxuyana, esse povo estava se acabando com doenças.
Os remetentes chegam logo ao ponto:
O povo que só tinha 40 pessoas aumentou muito na Missão Tiriyó. Então os novatos kaxuyana que nasceram na Missão Tiriyó estão querendo retornar a habitar sua terra natal que seus avós deixaram para eles futuramente. Eles estão a caminho de abrir a aldeia no Rio Cachorro, onde se localizam aldeias antigas kaxuyana.
Desterrados por causa de epidemias e ações missionárias, os kaxuyanas nunca se esqueceram das terras ancestrais, do lugar “onde nossos pais foram enterrados”. Tinham saudade. O “país estrangeiro” era simultaneamente terra de acolhida e de estranhamento; eles não eram dali, condição que lhes era sugerida veladamente pelos povos locais e, de forma clara, pela vegetação de serra, savana e campos gerais, tão diferente da floresta tropical a que estavam habituados no Rio Cachorro. Tinham motivos para voltar:
Assim mesmo, chegaremos um por um, devagarinho, sem ter pressa. Os que estão indo primeiro irão ver a terra e fazer roça. Já tem três famílias – Frederico, Renato e Ester Kaxuyana – morando numa aldeia na Boca do Rio Cachorro (Katxuru) no Rio Trombetas (Kahu) […] Sendo assim, nós já temos ponto de apoio na nossa Terra.
A carta se encerra com um pedido para que o governo brasileiro assegure o retorno e faça a demarcação da terra Kaxuyana. Não seria uma volta destituída de tensões. Nos anos posteriores haveria conflitos com os quilombolas, ocupantes igualmente legítimos de vastos territórios na Bacia do Rio Trombetas. Com o tempo, viria a pacificação e um convívio cordial.
O trecho da carta em que os kaxuyanas se referem ao momento do êxodo menciona Protásio Frikel: “O missionário Protásio Frikel conversou com os mais velhos sobre a transferência.” É tocante que os dois personagens desta história – Protásio e Ester – tenham se encontrado novamente, agora não em vida, mas num documento que pede o retorno à terra de origem, trinta e tantos anos depois do dia em que se viram pela primeira vez, quando o barco que trouxe o ex-missionário aportou numa aldeia indígena assolada pela doença.
Escrevendo quatro anos antes de morrer, o corpo maltratado pelas “incursões ao interior e pela malária”, Frikel havia dito que, sim, do ponto vista sanitário, o grupo que chegara à missão estava a salvo; já em relação à sobrevivência deles como povo, “os Kaxuyana talvez não [tivessem] tanta sorte”. Era cedo para fazer prognósticos, escreveu, ainda não havia elementos para saber como a situação evoluiria. A maior liberdade de casamentos asseguraria a sobrevivência biológica das estirpes, isso era certo. Contudo, “como grupo próprio, étnico, possivelmente desaparecerão dentro de uma ou duas gerações ou até antes”.
Protásio não contava com Ester.[1]
A HISTÓRIA DE FRANCISCO WATARU SAKAGUCHI
(E DE SEU PAI NOBORU)
Em setembro de 1929, um grupo de 189 imigrantes japoneses – 43 famílias e 9 pessoas solteiras – chegou à Colônia Acará, localizada no atual município de Tomé-Açu, no Nordeste Paraense. Vinham diretamente do Japão e nunca tinham posto os pés no mundo tropical. Não seriam os primeiros japoneses a enfrentar a Floresta Amazônica – no início do século, alguns conterrâneos seus, atraídos pelo boom da borracha, se instalaram na Amazônia brasileira depois de atravessar a Cordilheira dos Andes –, mas eles eram os primeiros a chegar ao bioma como resultado de políticas de Estado.
Esses imigrantes vinham sob os auspícios da Companhia de Colonização Sul-Americana S.A. e de sua subsidiária, a Companhia Nipônica de Plantação do Brasil, empresas fundadas com o incentivo do governo japonês com o propósito específico de criar colônias agrícolas no ultramar. Da perspectiva brasileira, o que inspirara o empenho em trazê-los era a boa experiência constatada nas lavouras do Sul do país. “O governador do Pará também queria os seus japoneses”, diz o agricultor Francisco Wataru Sakaguchi com um sorriso maroto no rosto. E, como os quisesse, encaminhou ao embaixador do Japão a proposta de conceder 500 mil hectares, mais de duas Tóquios, para a construção de um assentamento japonês na região.
Às vésperas de completar 61 anos, Sakaguchi é um tipo divertido. De início, quase não fala, prefere observar. Tem segredos, um conhecimento profundo da floresta tropical, mas só os revela aos poucos, quem sabe depois de se convencer de que a curiosidade do interlocutor justifica a concessão. Porque, do contrário, tem mais o que fazer. Enquanto isso, adota o figurino do matuto de quem não se espera muito.
Quando não está na sua propriedade, pode ser encontrado numa venda modesta à beira de uma estrada estadual que passa por Tomé-Açu. Numa manhã de setembro de 2019, ali estava ele, de camisa polo, bermuda e sandália Crocs com meia, comerciando os produtos de sua lavoura. A filha caçula, igualmente silenciosa, o ajudava atrás do balcão. O lugar é pequeno e sem luxos, cada palmo de superfície ocupado por frutas, verduras, nozes, farinhas, especiarias, bolos e garrafas de mel. De certa forma, é uma abundância conquistada ao preço de imensos fracassos, não de Francisco Sakaguchi, mas das gerações que o precederam. Ou, mais precisamente, que precederam o pai dele.
Noboru Sakaguchi desembarcou no Pará em 1957. Acabava de se formar em engenharia florestal na Universidade de Agricultura de Tóquio (Tóquio-Nodai), e sem muitas perspectivas no Japão do pós-guerra, decidira emigrar. Fazia isso estimulado pelo próprio governo, que, de olho na obtenção de matéria-prima para as indústrias nascentes da reconstrução, incentivava jovens profissionais como ele a se estabelecer em países como a Indonésia e o Brasil, para se dedicar ao cultivo da seringueira e à produção de borracha.
Prometeu aos pais que a aventura duraria apenas alguns anos. Adquirida a experiência, voltaria para o Japão. “Era mentira”, diz Francisco, o filho. “Ele embarcou no navio já sabendo que nunca mais voltaria.” Ao zarpar do Porto de Yokohama, não podia ter noção exata do que encontraria do outro lado do oceano. Seu conhecimento do mundo tropical era acadêmico. Nada sabia de florestas equatoriais, com suas águas de dilúvio, seu sol de maçarico, suas pragas, suas moléstias, sua solidão. Era o que o aguardava ao final da travessia.
Assim como as 189 pessoas que aportaram no Pará em 1929, Noboru estava prestes a constatar que, nos trópicos, as coisas acontecem de outro modo. Aqueles pioneiros haviam chegado com a intenção de desenvolver na região de Tomé-Açu o maior projeto de cultivo de cacau do mundo. “O problema é que a maioria só conhecia plantio de hortaliças e arroz”, diz Francisco. “Você sabe, a rizicultura é quase uma obrigação para o japonês.” O resto era um mistério. “Vieram sem conhecer o clima e o lugar. Desmataram tudo e botaram fogo na roça, porque na cabeça deles essa era a única forma de limpar a área. Plantaram cacau em pleno sol e não na sombra, como se deve. Não deu certo.” Para piorar, a lavoura intensiva de hortaliças e arroz atraiu a praga dos gafanhotos, que acabaram devorando também os cacaueiros. “Virou tudo banquete de inseto”, resume Sakaguchi.
Seis anos depois de iniciada, a experiência de implantação da Colônia Acará parecia irremediavelmente fracassada. Em 1936, um surto de malária levou um número considerável de famílias a desistir do projeto. Muitas regressariam ao Japão. A Companhia de Colonização Sul-Americana S.A. também jogou a toalha. A colônia agora ficaria a cargo dos próprios colonos – dos poucos que insistiam em permanecer.
Do cacau, esses resistentes passaram para a pimenta-do-reino – segundo Sakaguchi, trazida à Colônia Acará por uma infelicidade. Ainda na década de 1930, mais um navio repleto de imigrantes deixou o Porto de Kobe. No caminho, tendo falecido uma senhora, o capitão pediu autorização para atracar em Cingapura e sepultá-la. “Lá eles embarcaram treze mudas de pimenta-do-reino, e me parece que conseguiram salvar três”, conta Sakaguchi. Essas três mudas deram início ao plantio no Pará.
Em 1942 o Brasil cortou relações diplomáticas com o Japão. Em Tomé-Açu, os bens que ainda pertenciam ao Estado japonês ou aos seus súditos foram confiscados e a Colônia Acará se transformou em campo de confinamento de imigrantes oriundos dos países do Eixo. Declarados “alienígenas hostis”, os italianos, alemães e japoneses que viviam nas vastas regiões cortadas pelo curso superior do Rio Amazonas foram retirados de suas propriedades e levados para diversos campos. Não deixariam os limites dessas colônias até o fim da guerra.
“Os japoneses confinados na Colônia Acará eram usados principalmente na construção de estradas”, informa uma publicação da biblioteca do Parlamento japonês. Os que não estavam nas frentes de trabalho e ainda podiam se dedicar à lavoura começaram a experimentar com as mudas vindas de Cingapura, e foi bom o resultado. Quando recuperaram o direito de ir e vir, os agricultores de Tomé-Açu tinham uma lavoura promissora nas mãos.
O sucesso viria no início dos anos 1950. Com a independência da Indonésia em 1949 – o mesmo ano em que a Acará foi rebatizada como Colônia Tomé-Açu, nome que guarda até hoje –, boa parte das plantações de pimenta-do-reino naquele país foram convertidas em campos de arroz para atender ao consumo local. Como os indonésios eram grandes produtores da planta, o preço explodiu. A especiaria começou a fazer fortunas no Pará – falava-se em “magnatas da pimenta” – e a lavoura se espalhou pela região da colônia. Passados alguns anos, 7% de toda a pimenta comercializada no mundo era fruto do trabalho de duzentas famílias na Amazônia.
Noboru Sakaguchi chegou ao Pará nessa época. Seu sonho era plantar seringais e, assim, cumprir com diligência os objetivos de Estado que o haviam trazido até a Amazônia. “No quintal da casa em que a gente cresceu ainda tem os cinco primeiros pés de seringueira que ele plantou”, conta o filho. Noboru destinou 12 hectares à espécie, mas o negócio não vingou. O retorno financeiro não justificava o esforço e o investimento.
A solução era a pimenta. Na década seguinte, Noboru se dedicaria somente a ela e, como tantos compatriotas que haviam feito trajeto similar, também prosperaria. Começava a se sentir confortável no novo continente, já conseguia se comunicar em português e, sobretudo, estabelecera laços sólidos na comunidade nipônica que o acolhera. Para as questões do espírito, era ele o monge budista da Colônia Tomé-Açu; para as questões terrenas ou, mais especificamente, agronômicas, Noboru ocupava uma das diretorias da cooperativa local, aquela responsável por prospectar novas culturas.
Tudo caminhava bem até que, mais uma vez, a floresta mandou suas tropas, que agora não chegaram voando, mas pelo solo. Provocada por fungos, a fusariose é uma doença que apodrece a raiz das plantas. Quando encontra uma monocultura pela frente, alastra-se sem piedade. Foi o que aconteceu no final da década de 1960 com as pimenteiras de Tomé-Açu. “Dizimou tudo”, relata Francisco Sakaguchi. “Os japoneses foram trazidos pra instalar no Norte os mesmos sistemas do Sul. Ou seja, monocultivos. Só que aqui a coisa era diferente.”
À frente da diretoria de inovação da cooperativa, Noboru saiu à cata de soluções. Era preciso extirpar as plantas doentes, zelar pelas pouquíssimas que se mantinham saudáveis e criar alternativas de renda enquanto as plantações não se recuperassem. Tratava-se de “desbastar a mata e no meio da pimenta incentivar a cultura branca: arroz, feijão, milho”, explica o filho.
Havia ali o início de alguma coisa, mas não ainda a grande intuição. “A lógica era puramente econômica”, continua Francisco, “meu pai falava em otimizar a área, ou seja: plantar aquilo que desse um retorno econômico mais imediato.” Sem receita corrente não havia como financiar a guerra contra a fusariose. A diversificação servia para isso.
Alguns agricultores tentaram a estratégia; outros, repetindo os conterrâneos vencidos pelos malogros da década de 1930, desistiram e foram embora. Tentando manter viva a comunidade, Noboru viajava pelo Brasil à procura de espécies frutíferas que pudessem servir de alternativa à pimenta. Algumas vingavam, mas em geral as pragas acabavam triunfando. Nas palavras de Francisco: diante desse quadro, “meu pai foi buscar ideias”. Tem a lembrança de que o ano era 1973 ou 1974. Vendo que nada dava certo, Noboru Sakaguchi decidiu que precisava refletir. Tomou uma embarcação comercial que fazia a ligação entre Tomé-Açu e Belém e partiu. Usaria a viagem para pensar.
No sistema de cabotagem fluvial, o barco ia parando nos povoados para pegar passageiros ou embarcar mercadorias. Noboru desceu numa dessas paradas, queria caminhar. Era uma comunidade ribeirinha, e ele logo se viu diante do quintal de uma casa onde um homem chupava uma fruta. Os dois ficaram ali se olhando, o engenheiro florestal japonês e o ribeirinho que lanchava, um na frente do outro, em silêncio, incapazes de saber que alguma coisa muito importante estava prestes a acontecer.
Noboru se deu conta do que despertara seu interesse: o quintal era um pomar copioso de árvores frutíferas. Apontando uma delas, perguntou no seu português claudicante: “Quem plantou?” “Meu avô”, respondeu o ribeirinho. “E aquela?” “Meu bisavô.” “Essa?” “Meu avô também. E a detrás, meu bisavô. E aquela lá foi papai.” Noboru pensou: Essas árvores vêm se mantendo por várias gerações. Alguém comeu, achou gostoso e plantou. Muitas sementes provavelmente não deram em nada, mas outras germinaram e estão aí até hoje.
Francisco traduz a cena: “Foi o insight. Aquele quintal continha biodiversidade. Meu pai pensou: Por que não transformar isso em campo de agricultura? Ou seja, por que não transformar o quintal num exemplo, rejeitar a monocultura, misturar tudo e fazer um plantio biodiverso?”
Era a intuição que o faria desenvolver o que hoje se chama de sistema agroflorestal. O que Noboru Sakaguchi observara no quintal do ribeirinho era a própria floresta nativa na sua exuberância de variedades. Imaginar que essa lógica da multiplicidade pudesse substituir a conveniência já testada de uma lavoura homogênea era um conceito novo. “Tanto assim que foi contestado pela colônia”, conta Francisco. Noboru dizia: “Vamos plantar cacau no meio da pimenta.” “De jeito nenhum”, respondiam os cooperados. Já tinham a experiência desastrosa do cacau, não queriam se arriscar de novo. E diziam: “Isso é confuso, parece uma salada de frutas.” Noboru insistia: “Planta misturado. Nem tudo vai sobreviver, mas não é um problema. Morreu, perdeu o lugar. Planta outra coisa.”
Noboru previu que as lavouras conviveriam com a mata. Ou, por outra, trariam a mata de volta, combinando reflorestamento natural – aquele feito por pássaros e outros dispersores de sementes – e plantio de espécies comerciais, um sistema híbrido que, novamente como informa a biblioteca do Parlamento japonês, é capaz de recuperar entre metade e dois terços de uma floresta nativa 25 anos depois de plantadas as árvores de maior porte.
Aos poucos a colônia se convenceu das razões de Noboru Sakaguchi. Ele próprio adotara o sistema e as pessoas podiam ver que dava resultado. As pragas que atacavam uma planta nada faziam contra outra. Além disso, como o sistema preservava a biodiversidade, cada fungo, inseto ou parasita que aparecia na vizinhança tinha de se haver com predadores e concorrentes. As forças se equilibravam, o que tornava improvável, quando não impossível, situações de terra arrasada típicas de monoculturas atacadas por pragas como a fusariose.
Isso era importante, pois representava um último argumento na manga para convencer os conterrâneos e colegas de colônia: o do imigrante que se cansou de andar. Noboru dizia: “Durante anos a gente abre novas áreas pra fugir da praga, planta a pimenta e a praga chega. Então vamos viver como ciganos pra sempre? Nós temos que nos fixar na terra. Em quatro ou cinco anos a pimenta morre, então você precisa ir pensando em outras espécies que podem entrar no lugar dela: o cacau, o açaí, o cupuaçu…” Como ninguém mais queria seguir andando, o argumento tinha força.
Noboru Sakaguchi faleceu em 2007. Francisco, que de 2003 a 2015 presidiu a cooperativa de que seu pai foi diretor, conta que hoje 98% da agricultura do município adota alguma modalidade do sistema imaginado por Noboru. Isso significa que cerca de 5 mil famílias tiram seu sustento de uma agricultura que trabalha junto com a floresta, não contra ela.
“Observe a natureza”, recomendava o velho Sakaguchi. Um conselho quase banal na sua singeleza, mas revolucionário na história da ocupação da Amazônia. Noboru Sakaguchi decidiu enxergar a floresta quando a norma foi sempre eliminá-la. Viu que a inteligência ecológica dependia da variedade e fez disso o princípio do seu sistema.
A singeleza, afinal, era simplicidade, que nada tem de banal. Pode ser apenas outro nome da sabedoria, tanto a que sustenta o espírito como a que põe comida na mesa. No site da biblioteca do Parlamento japonês se lê: “Em Tomé-Açu, o lucro obtido por uma propriedade com 25 hectares é equivalente ao lucro obtido com mais de mil hectares de criação de gado.” Essa é a parte fácil de ser calculada. Mais difícil é a parte da floresta de pé, com todas as suas criaturas vivas, pois nela não é o preço que conta, e sim o valor.
Perto do fim da vida, Noboru Sakaguchi deu uma entrevista para a TV Record. “Você não pretende voltar para o Japão?”, perguntaram-lhe. “Não, eu amo essa terra.” Aqui ele se estabelecera, aqui se casara com uma nissei que conhecera na colônia, aqui haviam nascido seus filhos e aqui ele transformara a vida de sua comunidade.
Seus filhos – eram oito – também gostavam da terra. Contudo, à diferença do pai, alguns deles passaram a namorar a ideia de uma “aventura reversa”, na expressão de Francisco.
Por volta de 1985, o movimento de retorno para o Japão começou a ganhar fôlego. Os novos imigrantes eram os decasségui, descendentes de japoneses que, em busca de trabalho ou de uma vida melhor, iam ao encontro do país de seus ancestrais. Em certo dia de 1989, Noboru chamou o filho Francisco e lhe disse: “Os seus irmãos querem ir. Eles não falam a língua, vai ser muito difícil, alguém precisa ajudar. Ou vai você com eles ou vou eu.” Francisco nunca havia pensado nisso – “A ideia não batia muito comigo” –, mas, ironicamente, era o único dos irmãos que falava japonês. Tinha 29 anos. Soube que cabia a ele a tarefa. Não submeteria o pai às tristezas de regressar a um país que já não era o dele, e apenas para deixar os filhos ali.
Francisco Sakaguchi viveu seis anos no Japão. Não demorou a identificar as razões de seu desenraizamento. “Apesar de falar as duas línguas, você descobre que não é nem japonês nem brasileiro. Lá você é tratado de brasileiro, como aqui te tratavam de japonês. Você se sente sem pátria.” A comida foi outra dificuldade. Não o cardápio japonês, ao qual se habituara desde criança, mas a ausência da dieta básica brasileira. Não tinha arroz com feijão, e não tinha charque. “A gente fica doido com isso, né?”
Não eram dores insuperáveis e tampouco se distinguiam substancialmente da experiência de qualquer um que vá fazer a vida em terra estrangeira. Num país próspero com oportunidades a oferecer, Francisco logo explorou as que se abriram. Começou no chão de fábrica da Suzuki, na linha de montagem de automóveis. Em seguida, foi intérprete de uma firma que empregava nisseis brasileiros. Por fim, abriu um comércio de alimentos para atender os conterrâneos. Morava num prédio ocupado por nisseis. Certo dia, quando conseguiu uma partida de charque do Brasil, espalhou que ofereceria uma panelada à vizinhança. Estavam todos convidados. Na hora combinada, o apartamento lotou. Um homem deu um passo à frente: “Eu sou o brasileiro que está há mais tempo no Japão, então tenho o direito de ser o primeiro a experimentar.” Sakaguchi relembra a cena: “Esse cidadão lacrimejou quando pôs o charque na boca. Eu pensei: Olha só que coisa.” Nasceu assim a decisão de abrir o comércio. “Fui bem-sucedido”, conta.
Durante todo o tempo, e a despeito do êxito comercial, Francisco Sakaguchi sempre pensou em voltar para Tomé-Açu. Tinha “essa ideia fixa” de que sua terra era o Brasil. Sentia saudades do cheiro da mata – eram os da sua infância, incutidos pelo pai e também pela mãe, cuja dedicação ao trabalho na terra o impressionou desde menino. Impressiona até hoje; aos 87 anos de idade, ela continua ativa. “Minha mãe nasceu e foi criada aqui. Sei lá, é coisa de berço. Eu sempre fui mato, sempre fui floresta”, diz, omitindo a preposição de.
Sakaguchi casou-se no Japão com uma nissei de São Paulo. Nasceu a primeira filha, e quando ela completou 2 anos o casal se sentou para conversar. “A gente precisa tomar uma decisão”, disseram um ao outro. Se a matriculassem na creche, os dados estariam lançados: era a opção por ficar. Não se podia interromper uma educação tão singular para substituí-la pela de um país completamente diferente. Dali em diante, portanto, a vida estaria decidida: seria uma vida japonesa. “Agora, se você não quer continuar morando aqui”, disse Sakaguchi, “a hora de ir embora é agora. Vamos educar nossa filha no Brasil. O que você quer?” Sua mulher deu a resposta que ele queria ouvir.
Afastando um galho com o braço, Francisco Sakaguchi avança pela mata densa de sua propriedade. São 350 hectares, herdados do pai. Qualquer leigo que deite os olhos no lugar dirá que está numa floresta. Mas não, é uma lavoura. Não espanta que, no início, a ideia de um sistema agroflorestal fosse recebida com desconfiança. É outro modo de fazer as coisas, ou outro modo de estar no mundo. A mecanização é difícil, por exemplo. A diversidade de espécies exige não apenas uma competência, como as monoculturas, mas várias, tantas quanto forem as plantas ali presentes. É uma agricultura para artesãos, não para industriais.
Como se passassem por um conta-gotas, Sakaguchi vai soltando aos poucos, muito aos poucos, as tantas coisas que produz. Mostra um trecho da mata aparentemente idêntico aos que ficaram para trás e aos que virão em seguida. “Por ano, aqui eu tiro quarenta sacas de café”, e aponta um cafeeiro. Difícil dizer onde estão os outros. “Ali: 10 toneladas de andiroba.” Ali igual a acolá. Dez passos adiante: “Aqui: de 4 a 5 toneladas de cacau.”
Para quem já esteve em meio ao silêncio dos campos de soja, de milho ou de qualquer monocultura, é imenso o contraste com o que se escuta nessa floresta. O alarido é exuberante. Não se tem dúvida da quantidade de vida que existe ali.
“Doze toneladas de açaí”, continua Sakaguchi. “Era pra ser mais, mas roubam muito.” Sua falta de pressa ao pingar os nomes só não é maior do que a naturalidade com que empilha espécie por sobre espécie por sobre espécie, num acúmulo que, pela desmesura, se torna cômico. “Tem uns cem pés de pitaia. Uns quinhentos de mangostão.” Minutos depois: “Vários outros de rambutão, parecido com a lichia, que meu pai trouxe da Malásia. Pimenta-do-reino. Castanha. Canela-da-china.” Ao cabo de outros cinquenta passos: “Puxuri. Guaraná. Cupuaçu. Quinina. Cardamomo, da família do gengibre.” Numa pinguela sobre um igarapé: “Camu-camu. Acerola. Sapucaia. Graviola. Limão. Tangerina. Langsat. Cumaru. Pupunha. Abiu. Durião.” Lembra a cena clássica dos irmãos Marx na qual a pequena cabine de um navio vai se enchendo de gente – camareiras, mecânicos, assistentes de mecânico, manicures, faxineiras, visitas, garçons –, num excesso que desafia as leis da física e provoca gargalhadas de tão absurdo. Sakaguchi conta que um dia resolveu fazer a lista “das coisas que tem aqui”. Pegou lápis e caderno e começou a anotar. “Quando chegou em 86 espécies, cansei.”
Quatro irmãos seus ficaram no Japão. Ele não se arrepende de ter voltado. “A selva de lá é diferente da selva daqui”, diz. “O meu pai deixou um legado muito grande. Ele permitiu que eu passasse o resto da vida sem precisar dar murro em ponta de faca. Não posso reclamar, tive uma vida de classe média.”
Noboru plantou, Francisco agora só colhe. “Passei de agricultor a extrativista”, resume, entre a pilhéria e o orgulho. Tornou-se o zelador de um patrimônio que exige – sobretudo e simplesmente – proteção e cuidado. Mantida a integridade do sistema – esse “sistema orgânico que preserva todas as espécies vegetais”, como Noboru dizia –, a natureza se incumbe do resto. Sakaguchi não aduba, não usa defensivo, não adota nenhuma tecnologia. “O meu sistema é o ‘largânico’”, explica com ar douto. Leia-se: ele larga na mão da floresta. Sakaguchi acredita em Darwin: “Quanto mais esforço você faz com a natureza, maior é a batalha. Se tiver fungo, a planta vai morrer, é da vida, vem outra no lugar.” Ele abre os braços: “Isso aqui me serve pro resto da vida. Aqui eu não preciso fazer nada.”
Nos próximos anos terá de decidir que destino dar ao que ele e o pai construíram. Sakaguchi tem três filhas. A mais velha é bacharel em direito, a do meio tem mestrado em geografia e a mais nova, aquela que o ajuda na venda, está estudando administração. Não acredita que elas queiram permanecer no campo. “Então, vai chegar a hora em que vou ter que pensar numa maneira de eternizar isso aqui.” Como? “Na verdade, eu nem sei por onde começar.” Mas pode já ter a solução: se, como é justo, as filhas escolhem o próprio rumo e não pensam em levar adiante o legado dos avós e dos pais, então a obra deve pertencer à comunidade, “onde a gente vive e sempre gostou de viver”. Se a ideia se concretizar, futuramente a propriedade será uma benfeitoria para todos.
Sakaguchi sabe da necessidade de formalizar essas decisões. Os riscos e as tentações econômicas existem e não devem ser menosprezados. A pressão urbana é grande, a cidade se aproxima e está cada vez mais difícil e caro evitar invasões. Simultaneamente, o preço da terra aumenta, oferecendo oportunidades sedutoras. “Às vezes essas coisas acabam falando mais alto”, diz, não se excluindo do dilema. Mas a noção é logo rejeitada: “A gente é apenas um habitante por determinado tempo, né? E eu acho que a gente deve usufruir, preservar e deixar alguma coisa pra outra geração.”
Em parte, já começou a agir. Não faz tempo, doou 9 hectares da fazenda à Universidade Federal Rural da Amazônia. Hoje, numa das pontas da agrofloresta plantada por seu pai, existe um campus em que já funcionam cursos de biologia, engenharia agrícola, ciências contábeis, letras e administração.
O passeio pela mata-lavoura termina em frente a uma árvore meio sem graça na qual cresce uma trepadeira. Sakaguchi abre um sorriso. “Isso aqui é o tesouro”, diz, apontando a planta ornamental, “1 quilo vale mais que 1 quilo de prata.” É baunilha, uma espécie de orquídea nativa do México e sem polinizador natural fora de lá. Todas as manhãs, Sakaguchi vem até a árvore, sobe na escada para alcançar as extensões mais altas da planta e a poliniza com as mãos. É um trabalho de relojoeiro, a última imagem de um homem que, tal como seu pai, decidiu compreender a natureza e se integrar a ela.
[1] É certo que os kaxuyanas de hoje não são os kaxuyanas de 1968. Contudo, eles se reconhecem como Kaxuyana, reafirmando-se com frequência como “povo misturado”, característica de que a história de Ester é exemplar. Eles já não estão desterritorializados, voltaram para suas terras ancestrais – são “gente do Cachorro”.
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