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Desde Carvajal, desenxergar a floresta tem sido o ato mais característico dos colonizadores que vieram ocupar a região. “Essa é uma terra de mitos”, afirma com desgosto o ex-governador Simão Jatene. “Veja como passamos rápido de inferno verde a celeiro do mundo, de almoxarifado a santuário. São simplificações. Nada disso dá conta da nossa complexidade.” A Amazônia, segundo ele, foi sempre chamada a suprir as carências do Brasil. Projeta-se nela o que falta no resto do país: terra para gente excluída, pasto barato para boi que perdeu espaço no Sul, energia para os grandes polos econômicos e para pessoas que, em sua imensa maioria, vivem em outro lugar.

As forças que avançaram sobre a floresta nunca tentaram compreender a real vocação da mata, aquilo de que ela é capaz. O processo de ocupação da Amazônia pode ser entendido como um grande fracasso epistêmico.

Não é fácil descrever a floresta. De modo geral, os autores acabam adotando uma (ou mais de uma) das três estratégias narrativas seguintes: adjetivismo apoteótico, panteísmo mágico ou derrotismo fatalista.

Um exemplo da primeira modalidade vem da ensaísta e crítica literária argentina Beatriz Sarlo, que viajou para a Amazônia em fins da década de 1960. Diante da mata, sua sensibilidade habitualmente sóbria se excita: “Sentimos, sem o confessar, uma coisa asquerosa, putrefacta, placentas vegetais, sementes a germinar, lagartas”, registra Sarlo no livro de memórias que publicou em 2014. Ela preparara o terreno na página anterior, citando, com admiração, o sociólogo e crítico francês Roger Caillois: “Embaixo, o feltro espesso de uma decomposição nauseabunda e prolífica. A morte, que aqui não é senão necrose, está presente, mas diluída numa química incessante. Ativa uma poluição geral que se confunde com uma fertilidade terrível.”

O panteísmo mágico é a linha dos que enxergam estratos invisíveis na floresta, como o poeta paraense Vicente Franz Cecim, citado pela portuguesa Alexandra Lucas Coelho em livro de 2015: “A Amazônia tem duas camadas de realidade. Uma é natural, visível, tangível. A outra é puramente imaginária, povoada por seres encantados do bem e do mal, que tanto protegem como punem.”

Cecim está em boa companhia. Em 11 de junho de 1927, Mário de Andrade anotou coisa parecida em seu diário: “Eu gosto desta solidão abundante do rio [Amazonas]. Nada me agrada mais do que, sozinho, olhar o rio no pleno dia deserto. É extraordinário como tudo se enche de entes, de deuses, de seres indescritíveis por detrás, sobretudo se tenho no longe em frente uma volta do rio.”

Ótimos escritores não hesitam em adotar a terceira estratégia, admitindo que, diante da floresta, as palavras falham. É, entre outras coisas, uma dificuldade de escala. Em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, Euclides da Cunha se referiu à tentativa penosa de encontrar a linguagem correta para descrever aquele “excesso de céus por cima de um excesso de águas”.

No romance A Selva, clássico de 1930 ambientado durante o ciclo da borracha, Ferreira de Castro acompanha os pensamentos de seu protagonista, um jovem português desterrado pelo pai para o Pará. Do barco que o levará à sua nova morada, um seringal no interior da floresta, ele avista pela primeira vez a Baía de Marajó: “Depois de saber que toda aquela água não era pertença do oceano, mas sim o corpo da imensurável aranha hidrográfica da Amazônia, vinha-lhe o assombro da vastidão, do que pesa e esmaga pormenores e, pela sua grandeza, se recusa de começo à fria análise.”

Três anos antes, sempre em 1927, Mário de Andrade, também a bordo de um barco, havia procurado em vão as margens do rio: “Não se vê nada!”, exasperou-se. “A foz do Amazonas só é grandiosa no mapa; vendo, tudo é tamanho que não se pode ver.”

Descrever esse excesso é um pouco como um gato tentando agarrar uma bola de basquete. Ela sempre escapará. Os relatos que mais nos aproximam da Amazônia são aqueles que prestam atenção ao discreto, ao pequeno — a curva de um rio, certo crepúsculo, o comportamento de um animal, um aguaceiro, a majestade de uma árvore. Passagens assim são mais comuns nos escritos dos naturalistas, uma gente cujo primeiro impulso é sempre observar.

É o que faz Henry Walter Bates descrevendo como uma lagarta constrói o casulo dentro do qual se transformará em borboleta: “Quando inicia o seu trabalho, a lagarta prende o fio na ponta da folha escolhida e vai descendo, pendurada nele, até alcançar o comprimento desejado […] Sua feitura leva quatro dias. Terminado o casulo, a lagarta encerrada dentro dele se aquieta, sua pele se enruga e racha, e por fim só se vê lá dentro uma crisálida esguia grudada num dos lados do invólucro de seda.” Quatro dias de trabalho, quatro dias de atenção, um exercício de rigor tanto do inseto que tece quanto do naturalista que o observa.

É o que faz o entomologista Edward O. Wilson, professor em Harvard por cinco décadas, sozinho, à noite, na mata dos arredores de Manaus: “Vasculhei o chão com o facho da minha lanterna em busca de sinais de vida, e encontrei diamantes! A intervalos regulares, distantes alguns metros uns dos outros, pontos intensos de luz branca faiscavam a cada volta da lâmpada. Eram reflexos dos olhos de aranhas da família Lycosidae, à caça de insetos. Quando as aranhas se petrificavam ao ser iluminadas, permitindo que eu me aproximasse delas de joelhos e as estudasse quase no mesmo plano, podia discernir uma ampla variedade de espécies por tamanho, cor e penugem. Percebi como sabemos pouco sobre essas criaturas da floresta pluvial tropical, e como me daria satisfação passar meses, anos, o resto da minha vida neste lugar até conhecer todas as espécies pelo nome e todos os detalhes de suas vidas.”

Ou Mário de Andrade diante deste amanhecer: “Antes de qualquer prenúncio de claridade no céu, é o rio que principia a alvorada e se espreguiça num primeiro desejo de cor. Bate um frio nítido. No conchego morno e mais que úmido positivamente molhado do noturno, sai brisando de uma volta do rio um ar quase gélido que esperta. Esperta os primeiros cochilos das cores apenas, nenhuma ave por enquanto. Um aroma vago, quase só imaginado, porque os rios da Amazônia não têm perfume, um perfuminho encanta os ares e se sente que o dia vai sair por detrás do mato. E então o horizonte principia existindo.”

A pensadora francesa Simone Weil dizia que a atenção é a forma mais rara e mais pura da generosidade. A floresta sempre precisou de atenção, mas poucos lhe dispensaram esse cuidado simples. Populações indígenas e tradicionais, sim. Naturalistas, exploradores e cientistas, sim. Alguns escritores, sim. Mas a grande massa de gente que, ao fim e ao cabo, colonizou a Amazônia, não.