Sérgio Ferro prefere a conversa de ateliê, sobre fatura, ao universo prestigioso de referências culturais que a pintura renascentista assimilou ILUSTRAÇÃO: O PINTOR AO CAVALETE_SÉRGIO FERRO_1938_CORTESIA DE MINERVA AUCTIONS_ROMA
Artes plásticas e trabalho livre
Sérgio Ferro e a pedra angular do marxismo
Roberto Schwarz | Edição 104, Maio 2015
Sérgio Ferro acaba de lançar um livro pesquisado e complexo, que condensa uma vida de reflexão sobre as artes plásticas e a sociedade capitalista. Como tenho a mesma idade do autor, sei o custo de escrever depois dos 70 anos, procurando na medida do possível não baixar o nível. Com amizade e admiração, tiro o chapéu para ele. [1]
O título do livro, Artes Plásticas e Trabalho Livre, contrapõe noções de ordem muito diversa, que parecem não ter nada a ver uma com a outra. Entretanto, esse título nos leva ao centro das preocupações de Sérgio, que são tanto estéticas como sociais. Aqui, o trabalho livre deve ser entendido em duas acepções. Uma, digamos, libertária, que tem parte com a utopia, em que o trabalho está sob o signo da liberdade e polemiza com a opressão social.
Na outra acepção, filiada à crítica marxista, o adjetivo “livre” está em sentido sarcástico e paradoxal, sobretudo de privação e desconexão, no polo oposto à plenitude que a palavra “liberdade” parece prometer. Aqui o trabalho é dito livre quando está separado de tudo que não é ele próprio, desembaraçado, por assim dizer, da riqueza das relações sociais, ou, ainda, quando não tem vínculo social algum que o proteja do capital. Ele é a única propriedade com que conta o trabalhador, que foi apartado à força de suas condições de realização material e até de subsistência – reduzido a uma situação de absoluta precariedade.
Ou seja: por oposição ao servo da gleba, que historicamente o precedia, o trabalhador livre não dispõe de meios de produção ou de outra propriedade qualquer, nem de garantias, não lhe restando outra saída senão vender sua força de trabalho no mercado, sob forma de mercadoria. Livre e solto, ele está condenado a ser vítima da exploração. Aí está, resumindo muito, a figura do trabalho assalariado, que é um dos pilares da alienação moderna.
O título da obra de Sérgio Ferro sugere, pois, uma ligação de fundo entre as artes plásticas e estes dois significados do trabalho livre, cuja contradição é justamente o problema a entender: o trabalho livre na perspectiva do artista, e não só dele, e o trabalho livre na perspectiva do capital.
Historicamente, a questão não se apresenta de maneira simples. No plano das motivações evidentes – sempre acompanhando o argumento do autor –, pintores e escultores buscavam distinguir-se dos artesãos das corporações de ofício, para assim escapar à pecha que marcava o trabalho manual, destino das classes dominadas. Tratava-se de inventar um tipo de trabalho a que o estigma da sujeição social – o trabalho dos inferiores, que recebem ordens e obedecem a regras – não se aplique. O objetivo era tornar “a sua atividade – a pintura e a escultura – uma arte ‘liberal’, como a poesia e a música, isto é, alçá-la a uma posição nobre, socialmente respeitável e, sobretudo, mais lucrativa”. Em suma, era preciso desmanualizar e espiritualizar as artes plásticas, transformá-las, como diria Leonardo da Vinci, em cosa mentale – uma coisa mental, acima da materialidade rude do trabalho propriamente dito.
Sérgio estuda três soluções funcionais para essa escalada, as quais formam um pequeno sistema, cuja dialética interna é sumamente interessante. A primeira das soluções seria o virtuosismo de Dürer, uma espécie de superartesanato, de artesanato elevado ao quadrado, que tornaria inconfundível o artista e garantiria a diferença entre a sua obra de gravador – altamente intelectualizada – e a produção mais esquemática e convencional, e menos pretensiosa, de seus colegas de ofício, os mestres das corporações. No entanto, por mais que sublinhasse a diferença, o virtuosismo não deixava de ser trabalho. O engenho extraordinário causaria admiração, mas não suprimiria as marcas da atividade física e da condição inferior que lhe era associada.
Uma resposta diferente ao problema seria apresentada por Leonardo da Vinci, com sua teoria e prática do liso. Como a palavra indica, o ideal do liso apontava para “uma pintura ou escultura desprovidas de qualquer vestígio do processo produtivo”. Mais especificamente, a pincelada devia desaparecer, ou tornar-se invisível, e com ela seriam disfarçados e apagados os rastros da mão do artista e da condição de trabalhador. A obra, ou melhor, a perfeição, se apresenta como fruto do espírito, e não do ofício, que é obliterado.
O liso, entretanto, não ocultava apenas o processo material da produção, mas também a individualidade do pintor ou escultor, que deveria desaparecer atrás da objetividade por assim dizer divina de sua obra. Ora, diante do mundo exacerbadamente personalista e arrogante de príncipes, papas, condottieri e demais mecenas, a ocultação de si implicada no liso parecia insatisfatória. Por outro lado, e aí a dificuldade, não haveria risco em identificar e devolver ao primeiro plano a mão do artista? Não seria o mesmo que recair no desprestígio da condição subalterna de artesão, que acabava de ser superada?
A terceira solução, que tem em Michelangelo seu representante máximo, seriam a sprezzatura e o non finito. Sprezzatura se pode traduzir por desprezo, desdém, pouco caso, fastio, displicência, coisa feita sem grande empenho. Tratava-se de transferir para o campo artístico os atributos da naturalidade elegante da nobreza, cujos modos distintos e superiores não deviam trair esforço. Certa negligência na pincelada não só representaria a transposição pictórica dessa superioridade de classe como acentuaria a individualidade do artista, que se afirmava superior e desapegado inclusive em relação à atividade dele próprio, cuja natureza de trabalho se disfarçava.
Vistas no conjunto, são três respostas das artes plásticas ao desafio colocado pela desigualdade social que tomava formas novas. É claro que todas as respostas têm desdobramentos que vão além do impulso inicial e não se podem reduzir à motivação sociológica. O traço comum, porém, existe, e não é difícil perceber nelas, nas respostas, o anseio geral de ascensão social e de distanciamento em relação ao mundo do trabalho artesanal antigo, para não dizer de aproximação das artes às classes dirigentes. É uma evolução significativa, de grande interesse, mas nada que entusiasme o leitor igualitário. Paralelo a essa tendência, contudo, como um fio vermelho que vem do Renascimento aos nossos dias, há um outro curso, de espírito muito diverso, que para Sérgio é o principal e é o foco de sua reflexão.
Repisando um pouco, digamos que o pintor e o escultor buscavam afastar-se do mundo pautado e repetitivo, e sobretudo socialmente inferiorizado, do trabalho dos artesãos. Na face complementar da moeda estava o desejo de ser reconhecido como igual pela gente graúda. Isso no plano dos desígnios mais ou menos conscientes. Num plano menos consciente, mas fundamental e apontando para o futuro, vem a novidade: a recusa das regras do ofício levava à invenção, mas a uma invenção que reage a seu próprio andamento, criando uma dinâmica nova, antitradicionalista, inacessível às prescrições artesanais. Esse é o princípio das obras únicas e autônomas, autodeterminadas, que estarão no centro da reflexão sobre arte nos tempos modernos.
Também na outra frente, do desejo de equiparação com os de cima, a suscetibilidade pessoal aguçava a repulsa a qualquer espécie de sujeição. Assim, amarrada ao trabalho material, que era da natureza inescapável das artes plásticas, formava-se uma combinação de rebeldias estéticas e sociais. Esta engendrava, talvez sem o saber, como um subproduto, algo que se poderia chamar de trabalho livre propriamente dito, um trabalho autônomo, que no interior da prática artística se opunha a tudo que lembrasse subordinação. Em âmbito restrito, pintura e escultura estavam criando o exemplo de um trabalho novo, contrário ao trabalho livre entre aspas, então nascente, trabalho “livre” que na verdade era heterônomo e seria o padrão das relações sociais na era capitalista que se abria. Nesse sentido, as artes plásticas têm uma relevância incomparável, e o livro de Sérgio, que formula e ressalta esse aspecto, se deseja uma homenagem máxima a elas.
A ênfase nos termos sprezzatura, liso e virtuosismo, tomados ao vocabulário propriamente técnico, mostra a preferência do autor pela cozinha artística e seus macetes. São simpatias materialistas que enxergam mais verdade nas conversas de ateliê, sobre fatura, que no universo vasto e prestigioso das referências teológicas, filosóficas, científicas e culturais que a pintura renascentista assimilou, e que Sérgio chama de “enxerto” – um enxerto ideológico, que facilita o entendimento meio espúrio com os mecenas e as classes dirigentes. Essa valorização do clima de oficina, em detrimento da sala de visitas, tem algo a ver com a explicitação dos procedimentos teatrais praticada por Bertolt Brecht, que também via na revelação do que se passa nos bastidores da encenação um ato de desmistificação e de clareza rebelde, por oposição à névoa das aparências burguesas. Dito isso, o anti-ilusionismo é apenas um aspecto do materialismo de Sérgio. O outro e principal é a articulação negativa, como se viu, do trabalho autodeterminado das artes plásticas ao trabalho heterônomo que nascia e seria uma das realidades centrais de todo o período capitalista até hoje. Aqui temos uma construção materialista em sentido profundo, em que uma das esferas principais da cultura é ligada por dentro, criticamente, ao andamento socioeconômico de nossa sociedade no seu todo. Em escala maior ou menor e a despeito de sua pompa e glória, a pintura clássica seria atravessada por essa negatividade, a que deve a sua força.
Para singularizar o trabalho de Sérgio no campo dos materialismos marxistas, digamos que estes costumam dar uma descrição ampla da pintura, escultura e arquitetura de um período e aproximá-las da história social correspondente. Já Sérgio isola o impulso que lhe parece crucial e procura entendê-lo como a negação polêmica da viga mestra que sustenta a ordem econômico-social moderna. Em lugar do painel abrangente, que convida à contemplação, a busca da pedra angular, que permitiria derrubar o edifício. Neste sentido, as artes plásticas, cujo ânimo último estaria na emancipação do trabalho, seriam desde sempre um pressentimento da revolução. Pensando no vasto leque dos materialismos que hoje disputam a praça, seria o caso talvez de dizer que o de Sérgio tem o seu critério na desalienação do trabalho (menos que na apropriação social dos resultados e da riqueza da produção capitalista).
Note-se enfim que um livro como esse dificilmente teria sido escrito no Brasil, pela familiaridade detida que supõe com obras europeias de difícil acesso. Neste sentido ele é fruto da longa estada do autor no Velho Mundo, que começou pelo exílio político em 1972. Seria o caso então de dizer que se trata de um livro europeu? Sem muita certeza, eu gostaria de sugerir que ainda nos anos 60, quando o marxismo brasileiro era em grande parte nacional-desenvolvimentista, Sérgio se rebelou contra o fatalismo etapista que era convicção geral na época. Onde os arquitetos progressistas adiavam a solução do problema da moradia popular, que só poderia vir com a industrialização ainda incipiente, Sérgio e seu grupo tomaram o partido da urgência presente e se negaram a esperar. Em lugar de uma remota arquitetura industrializada em grande escala, optaram pelos famosos experimentos em forma de oca, baratos e simples, modernos à sua maneira, compatíveis com a autoconstrução popular.
Noutras palavras, os arquitetos de esquerda tinham a obrigação de responder ao problema do momento e de inventar soluções, mesmo que a indústria ainda não estivesse aí. O que importava era atender ao povo pobre e democratizar o processo de trabalho, cruelmente explorador, mesmo que as soluções ficassem longe dos processos produtivos mais adiantados. Estava postulada a possibilidade de um trabalho autodeterminado e inventivo que passava mais ou menos à margem do desenvolvimento das forças produtivas modernas.
O leitor dirá se me engano ao ver aqui uma afinidade com o interesse de Sérgio pelo surgimento do trabalho autônomo nas artes plásticas da Renascença, um processo relativamente apartado da parafernália teológico-político-filosófico-científica que o acompanhava. Algo do marxismo antietapista e urgente dos jovens arquitetos dos anos 60 pode ter migrado para os esquemas de história da arte renascentista que o autor desenvolveu depois. Neste sentido, Artes Plásticas e Trabalho Livre não seria um livro só europeu, e daria continuidade a um impulso gerado na América Latina.
[1] Sérgio Ferro, Artes Plásticas e Trabalho Livre: De Dürer a Velázquez, São Paulo, Ed. 34, 2015.