ILUSTRAÇÃO_ANDRÉS SANDOVAL_2018
As candidatas
A multiplicação de Marielle
Tiago Coelho | Edição 143, Agosto 2018
“O que você faria se fosse eleito deputado?”, dizia um cartaz na entrada do Teatro Oficina, no Centro de São Paulo. Palco habitual das montagens do dramaturgo José Celso Martinez Corrêa, naquele sábado de julho o prédio projetado por Lina Bo Bardi e Edson Elito acolhia o lançamento de cinquenta candidaturas a cargos do Legislativo em nove estados do país. Alguns participantes se dispuseram a responder à pergunta do cartaz: legalização do aborto e políticas de combate ao racismo foram alguns dos tópicos mais lembrados.
O público ia se acomodando em assentos suspensos sobre andaimes, ao redor do tablado estreito e comprido onde foi encenado Os Sertões, de Euclides da Cunha. Os candidatos chegaram às cinco da tarde: jovens negras com turbantes; uma mulher de cabelos pretos e colar étnico; uma trans cadeirante (havia também homens e mulheres brancas). Pertenciam a cinco partidos e participavam do coletivo Ocupa Política, que organizou o evento. A maior parte vinha da periferia de suas cidades e defendia as bandeiras políticas de Marielle Franco, a vereadora do Rio de Janeiro executada em março, cujo rosto era lembrado em camisetas e adesivos.
“Vamos começar o flertaaaço!”, anunciou ao microfone uma travesti de vestido vermelho. No palco, estavam dispostas duas fileiras com cinquenta cadeiras cada, uma de frente para a outra. Os candidatos ao Senado, à Câmara e às Assembleias Legislativas sentaram na fileira da esquerda. Em frente a cada um deles, acomodava-se um participante, que “flertava” com o candidato à sua frente e trocava de cadeira e de interlocutor após algum tempo.
Um rapaz sentou em frente a Robeyoncé Lima, uma moça de 29 anos que lhe disse com orgulho ter sido uma das primeiras advogadas negras e trans de Pernambuco. Ela também explicou que integrava uma candidatura coletiva para deputada estadual em seu estado, encabeçada por Jô Cavalcanti, do PSOL, e da qual fazem parte outras cinco mulheres. Na urna eletrônica, o eleitor verá o nome e a foto de Cavalcanti, que, se eleita, compartilhará as decisões do mandato com as outras integrantes do grupo, chamado Juntas. O coletivo defende as causas da população negra, LGBT e sem-teto.
Mais adiante estavam duas jovens candidatas, uma a deputada federal, outra a estadual por São Paulo, ambas pela Rede Sustentabilidade. (O lançamento daquela noite também teve candidaturas do PT, PSB e PV.) As duas defendiam maior diversidade nos espaços de poder público. “A Assembleia Legislativa de São Paulo, além de ser essencialmente masculina e branca, é muito fechada para o diálogo com a população”, disse a administradora de empresas Marina Helou, de 30 anos, candidata a deputada estadual.
Eugênia Lima, uma das três postulantes ao Senado apoiadas pelo Ocupa Política, concorre ao cargo pelo PSOL de Pernambuco. Em recente sondagem de opinião, a bacharel em direito de 34 anos pontuou 2%, ficando atrás de Jarbas Vasconcelos, do MDB, e Humberto Costa, do PT, velhas raposas da política local. Lima, que pretende arrecadar fundos para a campanha com um financiamento coletivo, não parecia incomodada com a lanterna. “É no Senado que as grandes questões do país são decididas. É preciso ter uma feminista lá”, disse, otimista.
As mulheres ocupam 54 das 513 cadeiras da Câmara de Deputados. Dentre elas, apenas três se declaram negras. Representam 0,6% do total da Câmara, enquanto as pretas e pardas são cerca de 25% da população. A sub-representação desse grupo no Congresso foi posta em pauta logo que o flertaço terminou, quando os participantes se dividiram em mesas de discussão. “O pessoal é político”, defendeu a paraense Áurea Carolina, uma das candidatas mais aplaudidas da noite, evocando um slogan cunhado nos anos 70 pela feminista americana Carol Hanisch. “Precisamos recuperar esse lema se quisermos um sistema político inclusivo e generoso”, afirmou.
Em 2016, Carolina lançou-se à Câmara de Belo Horizonte pelo PSOL e foi a vereadora mais votada, com 17 420 votos. Dos seis projetos de lei que propôs em um ano e meio de mandato, cinco beneficiavam negros e mulheres. Seu desempenho eleitoral serviu de estímulo às candidatas presentes. “É preciso transformar o Legislativo”, disse Carolina. “Não podemos repetir o Congresso que elegemos em 2014, o mais conservador desde a redemocratização.”
Na avaliação do sociólogo e cientista político Luiz Augusto Campos, pesquisador da Uerj que investiga a ausência de negros na política nacional, as eleições de 2018 serão uma prova de fogo para movimentos como o Ocupa Política. Campos vê na multiplicação de candidaturas de ativistas negros um fenômeno novo no jogo eleitoral. “Ao longo da redemocratização, os partidos não se mostraram muito abertos a essas candidaturas.” A atuação do movimento negro limitou-se a pressionar por políticas afirmativas em espaços do Executivo, como ministérios e secretarias. “No último mandato de Dilma e durante o governo Temer, com a crise política e econômica, esses canais se esgotaram e os ativistas passaram a buscar espaço no Legislativo”, disse Campos.
Falta de verbas privadas para financiamento das campanhas e pouco espaço na tevê são os principais adversários dessas candidaturas. Mas ainda que a maioria não alcance votação expressiva, Campos acredita que esses movimentos não vão abdicar da via eleitoral como forma de fazer política. A causa ganhou impulso após o assassinato de Marielle Franco, que motivou a criação de fundos de apoio a lideranças políticas de mulheres negras. “A morte dela deu uma cara para essas candidaturas”, lembrou o sociólogo.
No fim da noite, as luzes do teatro se apagaram e num telão surgiu projetado o rosto de Marielle Franco. “Não sabem ouvir a posição de uma mulher eleita?”, a voz da vereadora ecoou no ambiente. Era um trecho do discurso que ela proferira ao ser interrompida por um colega em plenário. “O espaço da política é onde as decisões sobre nossas vidas são tomadas. E a gente tem que estar nesses lugares”, prosseguiu a voz na escuridão. Quando as luzes se acenderam, não se ouvia um pio.