ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2014
As duas vidas de Martin
Sueco troca a fama pela matemática
Bernardo Esteves | Edição 90, Março 2014
Quando Martin Andersson entrou na sala, já havia algumas dezenas de estudantes sentados. Com cabelo comprido, bermuda colorida e tênis de cano alto, ele poderia passar por um aluno – o que o distinguia dos demais era principalmente sua pele muito clara de escandinavo. Na audiência havia estudantes de 2º ano de engenharia, física e outros cursos de exatas. Eram alunos da UFF, a Universidade Federal Fluminense, em Niterói, e iniciavam mais um semestre letivo naquela semana. Numa sala com vista para o Pão de Açúcar, do outro lado da Baía de Guanabara, teriam a primeira aula de equações diferenciais, ministrada por Andersson.
O professor destampou o pincel atômico, anotou seu e-mail no quadro e arriscou uma piada num português com leve sotaque. “Meu nome é Martin, como o Martinho da Vila.” Não se fez de rogado diante da indiferença da turma e prosseguiu a aula. Prometeu ensinar aos alunos ao longo do semestre “uma maneira muito legal” de resolver as equações diferenciais. Em duas horas, encheu vários quadros com frases e fórmulas. De vez em quando tirava da cartola um exemplo improvável. Em dado momento, encenou o famoso paradoxo lógico que tenta provar que Aquiles jamais venceria uma corrida contra uma tartaruga – um apagador no chão representou o quelônio, e ele próprio, o herói grego.
Os artifícios de Andersson não bastaram para conquistar a atenção de uma aluna na primeira fileira que lixava as unhas pintadas de vermelho. Pouco depois, a estudante sacou o celular para conferir as últimas notificações no Facebook. Não lhe ocorreu pesquisar o nome do professor na internet. Caso tivesse feito isso, se surpreenderia ao descobrir a vida pregressa do matemático. Andersson talvez seja o único de seus professores com uma entrada no Internet Movie Database, o maior site de referência sobre cinema.
Martin Andersson é um rosto conhecido na Suécia, onde nasceu em 1979. Depois de fazer testes de elenco, foi selecionado e aos 15 anos protagonizou a série para adolescentes Bert. Num café em Santa Teresa, no Rio de Janeiro, contou que seu personagem se via às voltas com os dilemas típicos da adolescência. “Ele se achava feio e estava sempre apaixonado por uma menina. Tinha um amigo inteligente, outro doido e vivia apanhando de um cara malvado na escola.”
Com doze episódios exibidos nas noites de sábado em 1994, Bert foi uma das séries mais populares da tevê sueca naquela década e ainda hoje é reprisada regularmente. O seriado e sua adaptação para o cinema no ano seguinte foram dirigidos por Tomas Alfredson, que também filmou Deixa Ela Entrar, a história de um vampiro adolescente.
A popularidade marcou a adolescência de Andersson. “Eu não podia andar 5 metros na rua que aparecia alguém apontando o dedo na minha cara”, contou. A fama teve seu lado incômodo. “Minha escola tinha 4 mil alunos e de repente todo mundo sabia o que eu estava fazendo o tempo todo.” Rebeldia e agressividade foram sua resposta à superexposição, até para se distanciar do nerd virgem que representava na tevê. “Fiz muita besteira, bebia, aprontava confusão nas festas”, disse, sem conter o riso. “Era como o Justin Bieber pichando os muros.”
Outro efeito colateral da fama foi uma aversão às entrevistas que era pressionado a dar. Traumatizou-se com os repórteres que chegavam com as pautas prontas e lhe atribuíam declarações fantasiosas. Se era aquilo que as pessoas queriam ler, a humanidade não tinha salvação. “Guardo até hoje um ódio quase infinito em relação à imprensa”, disse, fitando o vazio.
Andersson pensou em seguir carreira no cinema, mas julgou que não seria uma atividade criativa o bastante. Fascinado desde a infância pelas ciências abstratas, decidiu estudar matemática. Queria sair de Estocolmo, e foi estudar no Imperial College, em Londres. Mudar de país foi também um jeito de fugir do assédio. Mas ele estranhou a volta ao anonimato. Espantou-se, por exemplo, que ninguém reparasse na sua presença quando chegava a uma festa.
Ao final do mestrado, Andersson estava cheio de Londres. Soube que um professor tinha contatos no Impa – o Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada, no Rio de Janeiro, um centro de pesquisa de ótima reputação no exterior. Cursar o doutorado num país tropical pareceu-lhe o ideal. Providenciou uma carta de recomendação e matriculou-se em 2003, onde estudou sob a orientação de Marcelo Viana, um dos maiores pesquisadores brasileiros na área de sistemas dinâmicos, um campo da matemática que estuda comportamentos caóticos. O sueco foi a um baile funk na Rocinha pré-UPP, pulou o Carnaval de rua e se apaixonou pelo Rio. Cinco anos depois, defendeu uma tese de título impenetrável para leigos: “Robustez de Propriedades Ergódicas em Dinâmica Parcialmente Hiperbólica.”
Antes de se fixar de vez no Brasil, Andersson ainda fez um pós-doutorado em Paris. Nos períodos de férias, visitou Londres e Estocolmo, mas constatou que tinha saudade mesmo era do Rio. Disse que seu futuro na Europa seria extremamente previsível. “Eu morreria aos 80, teria uma casinha no subúrbio, um cachorro e quem sabe um Volvo”, projetou. “Já se eu morasse no Brasil, não tinha a menor ideia do que aconteceria. Daqui a vinte anos o país será completamente diferente.”
Um concurso na UFF foi o pretexto que lhe faltava. Andersson passou, tomou posse em 2009 e virou professor universitário em Niterói. Mas se decepcionou com o ensino público, com as decisões centralizadas em Brasília, o mau uso dos recursos, a estabilidade dos servidores e a falta de estímulo à criatividade dos alunos. “Depois que entrei no serviço público deixei de acreditar em qualquer tipo de intervenção do Estado”, contou. “Eu era socialista, agora sou um libertário.”
Quando estava em Londres, Andersson chegou a receber a oferta de um papel na tevê. Como teria que abandonar os estudos, declinou. O sueco não se arrepende da opção pela matemática e pelo Brasil, mas ainda se vê assombrado pelas vidas que não viveu. “Às vezes tenho dúvidas sobre as escolhas que fiz”, disse. “Você nunca tem?”