Ilustração a partir de uma foto do aniversário de 1 ano do autor: “Diz meu pai: ‘Com cinquenta anos de caminhão, de estrada, posso dizer com certeza: caminhoneiro é um herói esquecido’” CRÉDITO: CAIO BORGES_2023
As estradas de José
Escrevo entre duas devastações: uma delas acomete o corpo de meu pai e a outra é coletiva
José Henrique Bortoluci | Edição 197, Fevereiro 2023
Meu nome é José Bortoluci. Em Jaú, todos o chamam de Didi, mas na estrada ele era o Jaú. Nasceu em dezembro de 1943, na zona rural dessa cidade do interior paulista, quinto filho de uma família de nove irmãos.
Meu pai estudou até a quarta série, trabalhou desde os 7 anos no pequeno sítio da família, mudou-se com eles para a cidade aos 15. Tinha apenas 22 anos quando se tornou caminhoneiro. Eu era novo, mas tinha coragem de leão.[1] Começou a dirigir caminhões em 1965 e se aposentou em 2015. Era outro país esse que ele percorreu e ajudou a construir, mas que parece familiar nos últimos anos: um país tomado pela lógica da fronteira, da expansão a qualquer custo, da “colonização” de novos territórios, da vandalização ambiental, da vagarosa construção de uma sociedade de consumo cada vez mais desigual. As estradas e os caminhões ocupam lugar de destaque nessa fantasia de nação desenvolvida na qual florestas e rios dão lugar a rodovias, garimpos, pastos e usinas.
O caminhão trazia meu pai, roupas sujas e pouco dinheiro. Minha mãe se angustiava e trabalhava dobrado, cuidando dos dois filhos e costurando para fora. Sou o filho mais velho. Entendi muito cedo que nossa vida familiar era assombrada pelo risco da pobreza extrema, pela inflação desenfreada, pelo adoecimento precoce.
Nós nos habituamos a viver em um estado de incerteza, submetidos à urgência das contas prestes a vencer e aos limites estreitos do que podíamos comer, conhecer, desejar. Nunca conhecemos a fome, em alguns momentos graças à ajuda de vizinhos, amigos e parentes, que vinham em socorro quando a renda da minha família se esgotava e as cobranças feitas a meu pai estavam no auge. Lembro-me, contudo, de me acostumar com aquela espécie de “meia fome que você sente com o cheiro de jantar vindo das casas das famílias mais abastadas”, como descreveu a poeta dinamarquesa Tove Ditlevsen em suas memórias. Uma meia fome insistente, que costumamos menosprezar, dando-lhe o nome enganoso de “vontade”. No meu caso, essa sensação era atiçada pelas propagandas de iogurtes e cereais açucarados que inundavam a tevê nos anos 1980 e 1990, e que até hoje me provocam uma incômoda tentação que brota como um eco desafinado daqueles desejos passados.
Boa parte das roupas que eu e meu irmão usamos durante nossos primeiros vinte anos de vida foram de segunda mão, doadas por um tio ou por amigos da família, ou compradas em bazares de pechincha. Minha mãe, que costurava para ajudar com os gastos da casa, fazia questão de que elas estivessem impecavelmente limpas e reformadas. As mais novas eram “roupas de ir à missa”, as mais velhas, para usar nos dias de semana.
Nossa casa era pequena e abafada, construída aos poucos no fundo da casa dos meus avós maternos. A cozinha sem forro alagava com qualquer chuva mais intensa. Era nesse cômodo que eu e meu irmão estudávamos depois da escola, e que minha mãe trabalhava o dia todo. A trilha sonora dessa casa vinha dos ruídos de sua máquina de costura e das canções do rádio, sintonizado em alguma estação local. Muito trabalho, pouco dinheiro, não havia tempo para desfazer o que foi tecido: nesta história não existem Ulisses ou Penélopes.
Minha mãe detestava que meu pai fumasse dentro de casa. Por isso, quando estava em Jaú, ele passava boa parte do tempo sentado em um degrau da escada que dava acesso, pela cozinha, ao pequeno quintal que ligava nossa casa à dos meus avós. Aquele degrau, espaço limítrofe entre o dentro e o fora, concretizava o estado incerto de meu pai na minha vida: era parte essencial dela e, ao mesmo tempo, um visitante sazonal que desorganizava o ritmo dos nossos dias.
As cobranças financeiras nunca cessavam. Pela casa circulava um terror silencioso associado à expressão “cheque especial”, que eu devo ter aprendido já nos meus primeiros anos. E, mais que qualquer outra, “dívida”: palavra sufocante, que se espalhava pelos cômodos feito a fumaça dos cigarros. Essa palavra chegava de caminhão e ficava por lá, mesmo depois da nova partida de meu pai. Até hoje, a palavra “dívida” me traz à mente o cheiro de cigarro e a imagem daquele degrau da velha casa da infância.
Não há quase nenhum registro escrito desses cinquenta anos de estrada de José Bortoluci – apenas dois cartões-postais enviados à minha mãe e algumas notas fiscais amareladas na gaveta. Mas ele se lembra de muita coisa, e suas madeleines despontam quando menos se espera: uma imagem na tevê faz com que se recorde de quando ficou dias seguidos sem ter o que comer, atolado em uma estrada lamacenta do Sul do Pará; qualquer notícia de acidente grave no rádio abre uma caixa de histórias sobre os muitos desastres que ele viu e o punhado que sofreu; histórias de aldeias, de caçadores, de paisagens tropicais distantes, de companheiros – alguns leais, outros não, a maioria deles já falecidos. Narrativas que vão desfilando e se recompondo sem o apoio de fotos ou anotações. Resta a memória de um senhor de quase 80 anos, já um tanto embaralhada pelo tempo.
Eu vi tanta coisa, filho. Devia ter tirado foto, ter escrito. Celular, essas coisas assim, não tinha. Não existia não. A única coisa que dava era pra ter fotografado com uma Kodak, essa máquina de fotografia branco e preto, mas nunca tive. Porque se eu tivesse gravado tudo que eu fiz, você ia sentir o maior orgulho do seu pai. O que é meu é tudo aquilo que eu vi e gravei na memória. Então a única coisa que posso fazer é tentar recordar e contar.
São poucas também as fotografias em que meu pai aparece em suas viagens nesse período de cinco décadas. A maioria das fotos registra sua presença em datas comemorativas, quando estava com a família em Jaú.
Em uma dessas imagens estamos nós dois na cozinha da nossa casa. É meu aniversário de 1 ano, em novembro de 1985. Ele me segura no ar, enquanto primos cantam parabéns ao redor do bolo. Balões coloridos, copos plásticos azuis, uma garrafa de vidro de Coca-Cola compõem a cena. As mãos dele me seguram firme, e eu pareço confiante; mantenho o corpo ereto, apenas com as pontas dos pés tocando levemente a mesa com meus minúsculos tênis vermelhos. Olho para a câmera, meus olhos muito abertos e atentos, enquanto ele olha para mim. Meus cabelos eram mais claros do que são hoje, e os dele ainda não tinham perdido a cor: estão penteados para trás, compridos, brilhantes e besuntados de Trim, a pasta de pentear que ele usou por décadas, até decidir recentemente que não usaria mais e manteria os cabelos curtos – o mesmo corte do meu avô na velhice. Minhas mãos brancas, pequenas, pousam na pele muito queimada de Sol de meu pai, marcada pelo bronzeado desigual, típico dos motoristas de caminhão, que ele ostenta até hoje, apesar de sua pele ter desbotado e estar pontilhada de manchas e cicatrizes. Uma mãozinha sobre seu braço, outra sobre os dedos da mão que me segura. Essa é das poucas fotografias em que minha mãe não aparece (ela teria tirado a foto?).
Alguns dias depois da festa, meu pai voltaria à estrada e só regressaria a Jaú semanas mais tarde, talvez no Natal, ou no nascimento do meu irmão, dali a sete semanas. Num diário que minha mãe manteve, desde o início do namoro com meu pai em 1976 até pouco depois do meu nascimento, ela descreve esse tempo esgarçado pela distância: “Didi, como eu te amo, repetiria isso milhões de vezes se você estivesse todo dia aqui juntinho de mim. Mas sei que isso é quase impossível, pois tenho de trabalhar e você também, para que possamos chegar até aquele ideal que pensamos. A distância traz a saudade, mas nunca o esquecimento.”
Não sei qual é esse ideal de que ela fala e se hoje ela acredita que o tenha alcançado. Essa anotação é de 3 de junho de 1976, mas o tom empregado nessas linhas se repete dezenas de vezes nas páginas do caderno, nos nove anos seguintes.
Isolado em casa por causa do colapso do sistema de saúde na região de Jaú, uma das mais afetadas pelo coronavírus naquele triste início de 2021, meu pai parecia animado em contar suas histórias. Comecei a registrá-las em áudio em janeiro daquele ano, em noites quentes depois do jantar, nas sucessivas visitas que fiz a ele e a minha mãe. Ele preferia conversar comigo no quintal, deitado numa velha rede que comprou nos anos 1970 em alguma cidade do Piauí e que o acompanhou por décadas em suas viagens.
Filho, essa conversa que nós tamo tendo aqui, você vai ter como lembrança, porque cê sabe que logo o pai vai embora.
Depois de uma dessas gravações, ele se perguntou em voz alta se conseguiria ver o livro publicado. Eu tenho me indagado o mesmo desde dezembro de 2020, quando ele me contou pela primeira vez sobre as dores estranhas que sentia no abdome e sobre o sangue que aparecia em suas fezes havia algumas semanas.
No momento em que escrevo, no início de 2021, meu pai, aos 78 anos, está começando o tratamento de um câncer de intestino. O tumor brotou em seu corpo, se espalhou por nossa vida familiar e chegou até estas linhas.
O câncer foi diagnosticado no dia 29 de dezembro de 2020, antes de eu começar uma série de entrevistas com ele, mas depois de já ter-lhe dito que gostaria de gravar conversas nossas para ouvi-lo falar da estrada, das histórias de sua vida, seus “causos”, suas memórias e o que mais ele quisesse dizer.
Na primeira vez que comentei que escreveria um livro, ele me perguntou se isso seria bom para mim. Respondi que sim, que achava que sim.
Se é bom pra você, eu fico feliz.
No dia anterior ao diagnóstico, eu estava em São Paulo e havia passado a tarde toda fixado em mapas de rios amazônicos e roteiros rodoviários pela região Norte do país. Li sobre períodos de cheias e de estiagem, sobre as épocas mais adequadas para visitar praias de rios, para navegar por igarapés ou observar a mata nos seus entornos. Comecei a planejar uma viagem por toda a Transamazônica (conseguiria me virar por lá, já que não sei dirigir?). Encomendei três mapas da região, desses imensos, de dobrar e desdobrar, além de guias rodoviários detalhados, cartas geográficas das rodovias que atravessam a floresta, os antirrios de asfalto que meu pai ajudou a construir nessa região que ele cruzou por décadas.
Naquela mesma noite, um cano do meu apartamento estourou. A água inundou todo o banheiro, parte da cozinha, a área de serviço, o corredor de entrada e logo se espalhou para fora do apartamento. Isso chamou a atenção da zeladora do prédio, que me ligou preocupada. Eu tinha saído de casa, mas consegui voltar rapidamente. A sala era a principal área afetada, toda ela coberta por um grosso cobertor líquido, um palmo de água sobre o chão de madeira, como um espelho que oscilava suavemente, refletindo abajures, poltronas, plantas e a imagem de meu corpo. O pequeno apartamento no Centro de São Paulo, tão diferente da casa onde cresci, com móveis modernos que finalmente permitiam que eu criasse algo que parecesse um lar adulto de classe média, estava tomado por água que me chegava até as canelas.
Senti excitação e medo. A água fora de lugar parecia cênica demais, um presságio ruim, como que saída de um romance colonial de Marguerite Duras ou de uma pintura surrealista. A água encharcou os meus sapatos, a barra da calça, almofadas, móveis de madeira e se infiltrou por milhares de pequenas rachaduras nos tacos da sala, fazendo com que eles se envergassem para sempre. No quarto, meu gato se escondia debaixo da cama, um dos poucos lugares poupados pela água.
O câncer também tem algo de transbordamento: ele é matéria deslocada, em frenética expansão. Liguei para Jaú na manhã seguinte e perguntei para minha mãe qual o resultado da biópsia de intestino que eles tinham acabado de apanhar no laboratório. Ela se atrapalhou para ler a palavra estranha. Preferiu soletrar, e eu escrevi num pedaço de papel: a-d-e-n-o-c-a-r-c-i-n-o-m-a. Letra por letra a palavra se formou, cada letra uma célula que se juntou a outras para formar um significante novo, uma palavra-massa fora de lugar.
Uma rápida busca no Google me esclareceu que “adenocarcinoma” é o termo médico para certo tipo de tumor que acomete tecidos epiteliais glandulares, como o do reto, caso do meu pai. Ela foi a primeira de muitas palavras que, nos meses seguintes, entrariam em nosso crescente léxico familiar. A doença não é apenas um fenômeno biológico, é também um novo reino de palavras, um emaranhado de vocábulos e expressões que colonizam nossa linguagem cotidiana. Todos nós vivemos isso nos últimos anos, quando o coronavírus nos forçou a mergulhar em uma lagoa terminológica de “médias móveis”, “proteína Spike”, “imunidade de rebanho”, “janela imunológica” e tantas outras. No caso de minha família, fomos também cercados por palavras em rápida multiplicação que passaram a circular pelo corpo do meu pai, a se ligar a ele e a lhe dar novos contornos.
Depois daquele termo inaugural, outras palavras e expressões foram se agregando: “estoma”, “colostomia”, “marcadores tumorais”, “PET-scan”, “tumor colorretal”. E “neoplasia maligna”, a mais cruel de todas, talvez por remeter a uma espécie de drama moral, ou por ser a mais sincera.
Aprendo logo nas primeiras consultas médicas que o tabu com a palavra “câncer” não é restrito ao mundo dos pacientes e seus familiares. Um observador atento teria de se esforçar para encontrá-la em laudos, exames, rotinas hospitalares, conversas com médicos e enfermeiros. “Ele está com aquela doença” ainda é uma frase típica para nos referirmos a esse mal, e basta ter acumulado alguns poucos anos de vida para saber que “aquela doença” não é gripe, cólera ou pneumonia. A sua ausência parece deixá-la mais viva – em meio a esse silêncio, todos sabemos que é de câncer que se trata.
Susan Sontag escreveu: “Todos que nascem têm dupla cidadania, no reino dos sãos e no reino dos doentes. Apesar de todos preferirmos só usar o passaporte bom, mais cedo ou mais tarde nos vemos obrigados, pelo menos por um período, a nos identificarmos como cidadãos desse outro lugar.” A escritora norte-americana conheceu bem essa condição de duplo pertencimento durante seus tratamentos contra o câncer, em uma série de recidivas que ela enfrentou em seus últimos trinta anos.
Meu pai circula com esse novo passaporte. As marcas que ele passa a carregar e os rituais a que é submetido – a perene bolsa de colostomia, a intermitente sonda urinária, as visitas frequentes a hospitais, as cirurgias – assinalam sua cidadania no mundo dos doentes.
Em um famoso diálogo no romance O Sol Também Se Levanta, de Ernest Hemingway, um veterano de guerra e ex-milionário falido explica a um colega como se deu sua ruína econômica:
– Como você faliu?
– De duas formas. Gradualmente e, então, de repente.
Observando meu pai nos últimos anos, aprendi que envelhecer também obedece a esse ritmo duplo. Envelhecemos gradualmente: músculos perdem força, novas dores brotam no corpo, a catarata turva a visão, a audição deixa de captar nuances, escadas conhecidas tornam-se obstáculos olímpicos; cirurgias, internações e falecimentos de conhecidos passam a dominar as conversas com amigos e parentes da mesma idade.
Também se envelhece de repente. O grande salto de meu pai chegou com o diagnóstico de câncer colorretal e com o tratamento que se seguiu.
Depois dos quarenta a vida passa rápido, mas tá voando desde que eu soube da doença.
“Cardiopata grave”, registram os prontuários; “seu pai é um paciente complicado”, dizem os médicos que o atendem; “com o senhor nós temos menos opções de tratamento”, repete o oncologista em todas as consultas.
Memórias emergem e se entrelaçam: ele se lembra de que seu pai e dois irmãos morreram de câncer de intestino.
Minha vó Maria também teve. Ela operou do tumor no dia da inauguração de Brasília. Depois viveu mais um tempo, acho que não morreu disso, não sei bem.
A condição cardíaca frágil de meu pai impede que os médicos realizem uma cirurgia de intestino que de fato remova o tumor logo no início do tratamento. Ou ao menos foi o que concluiu um primeiro cirurgião, já que os encaminhamentos médicos raramente nos pareciam convincentes. A dúvida passou a ser a condição permanente no trato de sua saúde. Nunca nos sentimos persuadidos de que ele realmente não podia ser operado para extirpar o tumor, e ao mesmo tempo tínhamos pavor da ideia de que ele fosse.
Escrevo entre duas devastações. Uma delas acomete o corpo de meu pai. A outra é coletiva, nacional. Esta nos circunda, nos engole, sufoca. Nos últimos anos, fomos abatidos pelo macabro experimento político do grande mal que escancara os dentes para a pilha de mortos que nem mais conseguimos contar.
Assim como fortunas e corpos entram em crise no ritmo duplo do gradual e do repentino, países podem ser devastados nessa mesma toada. É certo que a crise atual do Brasil está inscrita em sua longa história de violências. Mas o repentino de nosso mal coletivo se deu em outubro de 2018, quando a encarnação da nossa barbárie foi escolhida para ocupar o posto mais alto da República.
Alguns meses antes, durante dez dias de maio daquele ano, o país assistiu atônito à misteriosa paralisação dos caminhoneiros por todo o território nacional. Aqueles trabalhadores das estradas irrompiam como um espectro incômodo na política do país. Desde então, “caminhoneiros” tornaram-se um sujeito indeterminado que ronda a imaginação brasileira, apavorando os políticos de ocasião e excitando líderes oportunistas, desejosos por sequestrar a potência política desses trabalhadores com a ameaça de uma repetição dos fatos de 2018.
O corpo do meu pai, já atravessado de cicatrizes, ganharia mais algumas desde o diagnóstico de dezembro de 2020. Ele entrava em um território estrangeiro e nós o acompanhávamos de perto, como viajantes sem mapa que pedem indicações ao longo do caminho e se orientam pela intuição e por memórias de outras viagens.
Uma bolsa de colostomia foi acoplada do lado esquerdo de seu abdome em abril de 2021. Essa foi uma novidade com que ele seria obrigado a se acostumar. Ela deve ser limpa várias vezes ao dia e trocada semanalmente. Essas bolsas irão acompanhá-lo pelo resto da vida, recolhendo os excrementos eliminados por um estoma, uma espécie de ânus sem esfíncter construído cirurgicamente pelo desvio do intestino para a superfície do abdome. Depois viriam as várias sessões de radioterapia e uma sucessão alarmante de consultas, exames, internações, sempre antecedidas de incontáveis horas em salas de espera lotadas.
Pouco depois da cirurgia de colostomia, meu pai se tornou incapaz de urinar por causa de um descomunal crescimento na próstata, o que exigiu a colocação de uma sonda que o acompanhou por três meses, até que outra cirurgia – uma “raspagem de próstata” – devolvesse parcialmente a ele essa capacidade fisiológica básica, ao menos por algum tempo. O estoma funciona bem, e meu pai se acostumou aos desagradáveis rituais de cuidado e limpeza, mas uma hérnia cresce sem parar em volta do orifício. A imensa protuberância incomoda, deforma seu corpo e o obriga a usar continuamente uma cinta larga e apertada.
O tempo passa a caminhar no ritmo da constante espera dos próximos resultados. Somos cercados pelo medo de possíveis cirurgias futuras, da piora de sua condição cardíaca, pelo receio de recebermos notícias de novos tumores.
As palavras “nódulo” e “pulmão” aparecem juntas pela primeira vez em fevereiro de 2022, quando mais uma especialidade médica, a pneumologia, foi chamada a participar desse longo escrutínio de seu corpo. Da mesma forma que entrou, ela saiu de cena um mês e vários exames depois, quando os médicos concluíram que, “provavelmente”, não se tratava de um novo tumor. Não, não tínhamos que falar em metástase, ao menos ainda não.
Como se narra a vida de um homem comum? Sou desafiado pelo silêncio das fontes, o apagamento de registros daqueles que constroem o mundo, que escrevem suas histórias com mãos e pés, com palavras ditas e cantadas, com suor e a pele marcada. Tento entrar naquele território do ir e vir dos que não costumavam fotografar, que não escreveram muitos diários, não deram entrevistas nem foram filmados. Como sugere Bertolt Brecht, procuro os construtores dos palácios e das muralhas, não os nobres e generais que os comandam; as cozinheiras, motoristas, jardineiros e faxineiras, e não os dignitários nos salões do poder.
Um herói esquecido. Com cinquenta anos de caminhão, de estrada, posso dizer isso com certeza: caminhoneiro é um herói esquecido. É maltratado, desprezado. Só não sou esquecido por vocês. Ninguém dá valor, ninguém. Não vê o sofrimento da gente levantar duas horas da manhã, tocar até onze e meia, meia-noite, ficar sem comer, correr o risco de morrer em acidente, de ser assaltado, a dureza de ficar longe da família.
Gosto de ouvir meu pai falar sobre o cotidiano, sobre as sensações e pequenas lembranças que marcam o ritmo dos dias: “Os relatos da cotidianidade dos sentimentos, dos pensamentos e das palavras. Tento captar a vida cotidiana da alma”, como ensina a escritora bielorrussa Svetlana Aleksiévitch. Com frequência me pego tentando descobrir os detalhes das paradas de seu caminhão, onde ele comia ou tomava banho, que cheiros sentiu, com quem falava. O que ele viu e iria me contar, o que jamais me contaria, o que apenas sugere, ou aquilo que já se perdeu na memória.
Logo de início, desisto de me deixar guiar pela minha formação acadêmica em história e sociologia e de produzir uma história social dos caminhoneiros brasileiros, ou uma sociologia histórica de uma categoria profissional da qual meu pai seria um “caso”.
Isto tampouco é uma biografia. Apesar da minha curiosidade, não se trata de trazer à luz a “verdade dos fatos”, as informações precisas sobre os lugares que ele percorreu, as pessoas que conheceu, quanto ganhava e devia. Esse pai não pode ser narrado dessa forma: ele não existe. Talvez exista o homem José Bortoluci, brasileiro, nascido em 1943, filho de Demétria e João, no bairro do Campinho, zona rural do município de Jaú, casado com Dirce, pai de José Henrique e João Paulo, católico, motorista de caminhão, palmeirense, grande cozinheiro, cardiopata grave desde os 48 anos, aposentado “por invalidez”, atualmente paciente oncológico. Isso seria tarefa de um biógrafo, mas biógrafos não se debruçam sobre a vida de pessoas como ele, trabalhador, homem comum, que pouco leu e escreveu, que não liderou corporações, não comandou exércitos, não governou países nem conquistou territórios.
A forma como ele narra sua história também parece trair a fixação pela unidade e pelo sentido de uma vida que é tão marcante na maioria das biografias. Busco por vezes o pensamento de Roland Barthes: contra o autoritarismo unificador da biografia, procuro recorrer a “alguns pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos a ‘biografemas’, cuja distinção e mobilidade pudessem viajar fora de qualquer destino e vir tocar, como átomos epicurianos, algum corpo futuro”.
Esses átomos epicurianos viajam pelas palavras de meu pai, unindo diferentes tempos e cenas. Eles podem aparecer na forma de uma viagem pela Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, a famigerada “Ferrovia do Diabo”, assim conhecida por causa do imenso número de trabalhadores mortos durante sua construção no início do século XX:
Deve ter sido em 1967 que aconteceu isso, já faz tanto tempo que eu me perco. Apareceu uma viagem pra ir de São Paulo a Rio Branco do Acre, pra levar maquinários pra uma fábrica que tavam montando lá. Mas eu sabia que de Porto Velho pra Rio Branco não tinha rodovia. A gente tinha que chegar em Porto Velho, colocava o caminhão em cima de um vagão de trem e andava 500 km em cima do vagão. Era pura aventura no meio da mata. Tinha umas seis ou sete estaçãozinha de parada que é onde os trem carregava mercadoria dos índios, dos garimpeiros, dos seringueiros; então era o lugar que os trem parava que era o ponto de carga. Ali tinha um barzinho, tinha uma cachaça, uma tubaína, não tinha mais nada que isso. Então essa viagem eu carreguei, pus o caminhão em cima do trem em Porto Velho, demorou três dias pra depois ele sair de viagem. Aí gastamos cinco dias pra fazer uns 400 km nesse vagão de trem. O trem tinha cinco vagãozinho e uma máquina tocada a lenha. Em toda estação eles tinham que carregar a maquininha de lenha pra poder fazer o combustível da viagem.
Poucos anos depois, em 1972, a ferrovia de 366 km seria desativada. A imagem de um velho trem movido a lenha rasgando lentamente a floresta me remete aos delírios de ocupação colonial da Amazônia, às centenas de trabalhadores mortos na construção dessa ferrovia no início do século XX, ao experimento prepotente de conquista da floresta.
A velha ferrovia é um esqueleto de nossos incansáveis planos de grandeza nacional. O canteiro de construção daquela Ferrovia do Diabo prenuncia os canteiros de Brasília, da Transamazônica, de Belo Monte, dos estádios construídos para a Copa do Mundo de 2014 e de tantas obras que serviram como cartões-postais de nosso arremedo de modernidade. Cinco vagãozinho e uma máquina tocada a lenha atravessando o estado de Rondônia, um dos gestos soberbos e fracassados de “ocupação do território” que o capitalismo de devastação brasileiro ainda chama de progresso.
O que fazer com as palavras do meu pai? Como ouvi-las, transcrevê-las, reorganizá-las sem que percam sua consistência e suas cores?
Desisto de nomear essa busca que enlaça passado e presente, história nacional e história de vida de um trabalhador, fatos e fabulação, deslocamentos e condensações, oralidade e escrita, diferentes registros de linguagem que se complicam pelo ato da transcrição – que, por si só, já envolve um processo nada inocente de tradução.
Ao tentar reconstruir partes importantes de sua história, os fatos da sua vida vão sendo montados sobre uma estrada que se abre entre mim e meu pai. E essa história eu só posso escrever como filho.
Trecho do livro O Que É Meu, a ser lançado em março pela editora Fósforo.
[1] Os trechos em itálico são falas de José Bortoluci, pai do autor do texto.
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