A gaúcha Maria Portela, de azul, enfrenta a sparring Alexia Castilhos durante os preparativos para a Olimpíada. Como é bem menor do que atletas de sua categoria, Maria procura compensar a defasagem com um estilo de luta mais ofensivo FOTO: SIMON PLESTENIAK_2016
As sete cascudas
Os altos e baixos da seleção feminina de judô
Fábio Fujita | Edição 117, Junho 2016
Aurélio Miguel deu um tapa no rosto de Mayra Aguiar. Sutilezas não funcionariam naquele momento, ele bem sabia. Era preciso tirá-la do transe, salvá-la do buraco negro que parecia prestes a tragá-la. Miguel fitou os olhos da judoca: “Levanta a cabeça, menina! Ainda não acabou.” O estímulo funcionou. Pouco a pouco, Mayra controlou o choro e se recompôs, após tomar a segunda injeção do dia, uma infiltração no cotovelo para suportar a dor atroz que só corroborava a onda de sensações ruins. Um companheiro de Seleção, Leandro Guilheiro, se aproximou. “Mayra, sei que você está puta agora, mas olha só: se você não der tudo o que pode nesta competição, vai ficar arrasada pelo resto da vida.” Eram os minutos seguintes ao revés que a atleta sofrera na semifinal para a norte-americana Kayla Harrison, rival que vencera cinco meses antes num torneio em Paris. A derrota fez ruir o sonho de ouro olímpico que a gaúcha de Porto Alegre acalentava nos Jogos de Londres, quatro anos atrás. Ela chegara à capital britânica como a número 1 no ranking de sua categoria, status que lhe imputava grande favoritismo. Já tendo participado da Olimpíada anterior, em Pequim – quando, aos 17 anos, acabou despachada no primeiro combate –, Mayra acreditava que em Londres tudo seria diferente. Mas as dificuldades surgiram logo na luta de estreia: apesar de ter batido uma oponente da Tunísia, deixou o tatame com uma contusão no punho. Sem conseguir fechar a mão, tomou a primeira infiltração do dia para atenuar o desconforto. Logo depois, uma dura chave encaixada por Kayla no braço esquerdo de Mayra não só lhe esfarelou o sonho dourado como causou uma lesão ainda mais dolorosa.
Da plateia, Aurélio Miguel – que, em 1988, na capital sul-coreana (Seul), tornou-se o primeiro judoca brasileiro campeão olímpico – percebeu a agonia da gaúcha. Disposto a ajudá-la, abandonou a arquibancada e invadiu a área de credenciados. Não havia mais do que vinte minutos para Mayra absorver a derrota, recarregar as baterias e brigar pelo bronze. Nas competições de judô, quem perde a semifinal sempre disputa o terceiro lugar com um adversário que acabou de vencer a chamada repescagem e que, por isso, costuma chegar à última luta muito confiante. Mayra se deu conta de mais essa desvantagem enquanto a treinadora Rosicleia Campos lhe aplicava ruidosos tapas de incentivo às costas. A atleta, porém, conseguiu restituir o foco e, embora machucada, precisou de apenas 84 segundos para derrotar a holandesa Marhinde Verkerk. Com a perna esquerda, fez um calço no calcanhar direito da oponente e a estatelou no chão. Antes de Mayra, só outras duas lutadoras brasileiras conquistaram medalhas olímpicas: Ketleyn Quadros, também bronze, em Pequim, e Sarah Menezes, que ganhou o ouro naquela mesma edição londrina dos Jogos.
Para chegar ao pódio de uma Olimpíada, um judoca tem de encarar até cinco lutas, todas num único dia. Tal cruzada exige dos atletas não somente técnica e preparo físico, mas uma imensa capacidade de administrar a oscilação de sentimentos que a sucessão de combates desperta. Qualquer deslize emocional, ainda que dure meros segundos, pode jogar por terra anos de treinamento. Mesmo assim, das 42 modalidades que estarão nos Jogos do Rio, entre 5 e 21 de agosto, o judô é aquela em que o Comitê Olímpico Brasileiro mais aposta. O projeto de colocar o país no top 10 das nações com maior número de medalhas depende bastante dos nossos resultados no tatame. Até hoje, nenhum outro esporte rendeu tantas conquistas para o Brasil em olimpíadas quanto o judô. Foram dezenove medalhas no total – duas a mais que a vela, na vice-liderança. Se considerarmos apenas o ouro, o judô também se destaca. Ganhou três, façanha que só o deixa atrás da vela (seis), do atletismo e do vôlei (quatro cada).
Em 2012, o país saiu de Londres com dezessete medalhas e ocupando a 22ª posição no ranking oficial, em que a quantidade de ouro tem peso maior que a de prata e bronze. Mas quando se utiliza outro critério – a soma de medalhas, independentemente do metal –, o Brasil salta para o 15º lugar. É esse o parâmetro que o COB adota ao estabelecer a meta de botar o país no top 10 do Rio. Pelas projeções do Comitê, o objetivo se cumprirá caso conquistemos aproximadamente 27 medalhas.
Usar uma metodologia alternativa pode soar como “jeitinho”. No entanto, Marcus Vinicius Freire, superintendente executivo do COB, defende o contrário: que o critério do Comitê acaba driblando as distorções causadas pelos parâmetros habituais. Quando se atribui peso maior ao ouro, nações como a Jamaica – poderosa no atletismo de velocidade, mas inexpressiva nos demais esportes – sobem na classificação geral sem que sejam de fato potências olímpicas, às quais o Brasil deseja se equiparar. No ranking de elite que o COB está mirando, Estados Unidos, China e Rússia se revezam invariavelmente na ponta. Já França, Reino Unido, Austrália, Japão e Alemanha costumam oscilar entre a quarta e a oitava posições. É por uma das duas vagas restantes que o Brasil pretende brigar, concorrendo com Itália, Coreia do Sul, Ucrânia, Holanda, Canadá, Espanha e Cuba. Nesse contexto, o judô assume papel determinante porque oferece catorze possibilidades de medalha, sete no feminino e sete no masculino. Se em outros Jogos as esperanças de triunfo recaíam principalmente sobre os homens, agora são as mulheres de quimono que se revelam as mais promissoras.
O time masculino perdeu o protagonismo porque se depara tanto com o envelhecimento de alguns atletas-chave quanto com a inexperiência de lutadores emergentes. Os dois medalhistas de Londres, Felipe Kitadai e Rafael Silva, ilustram bem o cenário. Podem não ir para o Rio, já que estão empatados tecnicamente no ranking mundial de suas categorias com compatriotas que nunca participaram dos Jogos: Eric Takabatake e David Moura. A situação se iguala à de Luciano Correa. Campeão mundial de 2007, o brasiliense assiste à ascensão de Rafael Buzacarini, que se encontrava duas posições à sua frente no fim de maio (26ª contra 24ª). Outro veterano, Leandro Guilheiro, é baixa praticamente certa, embora possua dois bronzes olímpicos. Também em maio, ele detinha a 66ª posição de sua categoria no mundo enquanto o concorrente Victor Penalber, quase sete anos mais jovem, ocupava a sexta. Dono de duas medalhas em olimpíadas, Tiago Camilo deve confirmar sua vaga, mas chegará à competição sem o vigor de outrora. Terá 34 anos (um judoca atinge o ápice em torno dos 25).
A enorme expectativa depositada sobre as mulheres baseia-se também no fato de que a delegação feminina reunirá somente “atletas cascudas”, na definição favorita de Ney Wilson, gestor de alto rendimento da Confederação Brasileira de Judô (CBJ). Por cascudas, entendam-se lutadoras que, embora jovens, são experientes, já se consolidaram em suas categorias e demonstram muita resiliência. Tudo indica que a equipe será a mesma de Londres: Sarah Menezes (ligeiro, até 48 quilos), Érika Miranda (meio-leve, até 52 quilos), Rafaela Silva (leve, até 57 quilos), Mariana Silva (meio-médio, até 63 quilos), Maria Portela (médio, até 70 quilos), Mayra Aguiar (meio-pesado, até 78 quilos) e Maria Suelen Altheman (pesado, mais de 78 quilos). As escolhas tendem a se dar pela posição de cada competidora no ranking mundial, ainda que não necessariamente. Se uma atleta estiver em posição inferior a outra, mas atravessar um momento melhor, de ascensão, poderá ser convocada.
Em japonês, judô significa “caminho suave”. O nome delicado e pequenino deixa claras as intenções do professor Jigoro Kano (1860–1938), que inventou o esporte em Tóquio, no fim do século XIX. Franzino, Kano buscava um tipo de luta que incorporasse três valores do zen-budismo: a disciplina, o civismo e o respeito – ao adversário, ao local onde se pratica a arte marcial (dojô ou tatame) e especialmente ao equilíbrio dos lutadores, pois tanto o corpo quanto a mente e o espírito dos judocas devem estar fortes e em sintonia.
Ao longo de um combate, que costuma durar quatro minutos, o competidor tem como meta imobilizar o oponente por meio de golpes específicos (chave, estrangulamento etc.) ou lhe aplicar um ippon (fazê-lo cair perfeitamente de costas no chão). Se a queda do adversário não for perfeita, o atleta ganha um yuko, a pontuação mais baixa, ou um waza-ari, que equivale a meio ippon. Dois waza-ari, portanto, encerram a luta. Uma dupla de árbitros fiscaliza a disputa – um de pé, posicionado dentro do dojô, e outro sentado numa mesa. Caso o judoca pise fora da área de luta, um quadrado de oito por oito metros, levará uma punição chamada shidô. Ele também pode sofrer penalizações por falta de combatividade.
Havendo empate nos quatro minutos, os juízes tentam resolver o impasse com o shidô. Quem tiver recebido menos punições desse tipo vence. Agora, se mesmo assim o empate persistir, os atletas vão para o golden score (prorrogação). Nessa etapa, o primeiro que pontuar ganha – ou o primeiro que tomar shidô perde.
Foi entre as décadas de 1910 e 1930 que o esporte se enraizou no Brasil. À época, alguns mestres japoneses abriram academias em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Belém, no norte do Paraná e em Porto Alegre. Durante um bom tempo, porém, a modalidade esteve muito restrita aos homens – e não apenas em função de uma crença que já se disseminara no Japão: a de que o judô masculinizava o corpo das moças. Aqui existiam também razões legais para as jovens não se dedicarem às artes marciais. Em 1941, o decreto-lei nº 3199 proibia que mulheres praticassem “desportos incompatíveis” com a condição feminina, veto mais bem especificado numa regulamentação de 1965, que interditava a “prática de lutas de qualquer natureza” por parte delas. Não à toa, ao longo de décadas, quase que só as filhas ou esposas dos mestres ousavam contrariar as restrições e enfrentar os tatames.
A situação começou a mudar em 1979. Com o intuito de colocar nossas poucas judocas na rota das competições internacionais, Joaquim Mamede de Carvalho e Silva, então diretor-técnico da CBJ, montou a primeira Seleção Feminina do país. Composta por suas filhas Ana Maria, Cristina Maria e Patrícia Maria de Carvalho e Silva, além de Kazue Ueda, a equipe disputou o Campeonato Sul-Americano em Montevidéu. As atletas só conseguiram permissão para viajar porque Mamede, perspicaz, as identificou com nomes masculinos na documentação que enviou ao Conselho Nacional dos Desportos. O saldo daquela ousadia em terras uruguaias acabou sendo positivo: Kazue Ueda se machucou, mas as três filhas do cartola ganharam medalhas de bronze. Dois meses depois, o país autorizou e regulamentou a prática do esporte por mulheres, o que viabilizou a participação brasileira no primeiro mundial feminino de judô, ocorrido em 1980, na cidade de Nova York. A versão feminina da luta só virou modalidade olímpica em Barcelona (1992). Já a masculina ganhou tal status em Tóquio (1964).
Assim, a conquista da primeira medalha por uma brasileira nos Jogos ocorreu há apenas oito anos, quando Ketleyn Quadros faturou o bronze em Pequim. Por sua vez, os homens ganharam a primeira medalha do gênero três décadas antes, em 1972, na Olimpíada de Munique. Na ocasião, o japonês naturalizado brasileiro Chiaki Ishii, cujas filhas Vânia e Tânia também fizeram parte da Seleção, abocanhou um bronze.
Em Pindamonhangaba, no interior de São Paulo, uma figura solitária e um tanto sombria observa tudo que se passa dentro do tatame instalado na quadra de um hotel. Sentada à beira do dojô, em posição de índio, mantém na cabeça o capuz do agasalho azul, o que só ressalta sua androginia. Com 1,65 metro de altura, tem pele negra, aparelho nos dentes e olhos assustadiços. É preciso observá-la com atenção para reconhecê-la: trata-se de Rafaela Silva, primeira brasileira campeã mundial de judô. Na manhã do último dia 11 de janeiro, diferentemente das colegas, a atleta não treina, porque está com suspeita de dengue e, como o resultado definitivo dos exames ainda não saiu, convém poupá-la.
O hotel abriga as seleções masculina e feminina de judô, que participam do treinamento inaugural de 2016. As equipes não se misturam: homens e mulheres exercitam-se em turnos diferentes. Enquanto vê o treino das moças – 39 judocas da delegação principal, entre titulares e reservas, além de doze novatas da base em período de experiência –, Rafaela consulta o celular com certa obsessão, quase de minuto em minuto. Quando finalmente se levanta, dá uma trombada proposital num integrante da comissão técnica e sai de fininho, um sorriso furtivo no canto da boca. É a sua maneira de dizer que está de bom humor. Não parece incomodada por ficar fora do treino em que as companheiras aprimoram técnicas de contragolpe e defesa, mesmo que isso possa lhe acarretar alguma queda de ritmo. A atleta de 23 anos não corre o risco de perder os Jogos do Rio porque reina soberana na categoria leve. Sua irmã, Raquel, três anos mais velha e também judoca, já me adiantara que Rafaela “não gosta muito de treinar, mas é apaixonada por competir”. Testemunho isso na tarde do dia seguinte, durante um aquecimento com bola: divididas em dois times, as lutadoras se enfrentam numa espécie de jogo de rúgbi. Cada equipe tem como objetivo chegar ao fundo oposto da quadra, trocando no máximo dez passes com as mãos, sem que as adversárias consigam interceptá-la. A atividade se prolonga por cerca de dez minutos, o suficiente para deixar a maioria das atletas enlouquecida. Muitas correm às cegas e as que não recebem passes depois de buscarem o melhor posicionamento reclamam, bufam, gritam. Rafaela assiste à disputa hipnotizada, com os olhos bem longe do celular. Aquilo, sim, ela lamenta perder.
Carioca da Cidade de Deus, a judoca se moldou em brincadeiras desse tipo na infância. Todos os dias, jogava futebol num campo em frente à sua casa. Única menina entre os marmanjos, não se intimidava. Era uma zagueira que tocava o terror. “Não deixava passar nada”, me contou pouco antes do aquecimento. Em 1998, quando a atleta tinha apenas 6 anos, seu pai, Luiz Carlos, procurou a associação local de moradores em busca de algum esporte a que as duas filhas pudessem se dedicar nas horas vagas. Ele desejava manter as garotas o maior tempo possível longe das ruas. Rafaela, claro, queria praticar futebol, mas ali só havia time masculino. Seguiu, então, os passos da irmã e optou pelas aulas recreativas de judô, que acabaram contribuindo para lhe domar a agressividade. Ela brigava com frequência tanto na escola quanto na vizinhança. “Sempre aparecia na porta da minha casa uma mãe ou avó, reclamando de mim”, recordou. As desavenças podiam ocorrer pelos motivos mais triviais. Rafaela já saiu dando cadeirada num rapaz “três vezes maior” por ele ter lhe tomado o assento na sala de aula. Em outra ocasião, três marmanjos a emboscaram depois que ela os derrotou num jogo de bafo. Como pretendiam recuperar as figurinhas perdidas, tentaram tomar sua mochila, mas Rafaela se atracou com os valentões. Raquel apareceu a tempo de ajudá-la, e as irmãs conseguiram escapar. O espírito bélico da judoca derivava, em parte, da violência que a rodeava e que desde cedo lhe aguçou o instinto de sobrevivência. Ter o quintal de casa invadido por traficantes que fugiam da polícia era rotina. Certa vez, chegou a ver um homem morrer na frente dela, assassinado a tiros.
No início dos anos 2000, quando a família Silva trocou a Cidade de Deus pelo bairro vizinho de Jacarepaguá, Rafaela migrou para a academia do sensei (mestre) Geraldo Bernardes. O técnico logo notou que a propensão da menina para brigas poderia ser burilada e conduzi-la ao judô de alto rendimento. “Ela já exibia coordenação e elasticidade acima da média, desenvolvidas nos exercícios que praticava naturalmente: correr, pular muro, subir em árvore”, analisou Bernardes, que comandou a Seleção Masculina nas Olimpíadas de Seul, Barcelona, Atlanta e Sydney. Para evitar que Rafaela distribuísse sopapos na rua ou no colégio, o sensei adotou um método repressivo que se valia da graduação por faixas coloridas típica das artes marciais, em que o atleta de nível mais baixo usa a branca e o de nível mais alto, a preta (entre ambas, há as cinza, azul, amarela, laranja, verde, roxa e marrom). Caso descobrisse que a pupila brigara fora do tatame, não a deixava mudar de estágio. “Quando a gente é criança, adora trocar de faixa. Assim podemos contar vantagem e dizer que somos melhores que fulano ou sicrano”, explicou a judoca. Temerosa das punições, tratou de se corrigir. Sua personalidade competitiva a fez rivalizar com a própria Raquel. A irmã mais velha despontou primeiro no esporte, e Rafaela se esforçava para superá-la. Mas uma gravidez aos 15 anos e várias lesões consecutivas comprometeram o desempenho de Raquel, hoje segunda reserva da Seleção na categoria meio-leve, que tem Érika Miranda como titular absoluta.
Por muito tempo, Rafaela nutriu a convicção de que as glórias estavam reservadas apenas aos outros atletas. Com 13 anos, a duas semanas de disputar seu primeiro campeonato pan-americano, a lutadora participava de uma corrida recreativa na academia. Disparou na frente, mas um garoto retardatário a empurrou. O choque contra a parede lhe quebrou o braço e a impediu de encarar o pan. No ano seguinte, num campeonato brasileiro, encaixou um golpe aparentemente perfeito numa adversária e já se preparava para comemorar quando a arbitragem reviu o lance e não só lhe tirou o ippon como a desclassificou. Ela teria cometido uma irregularidade ao segurar o pescoço da oponente. Em 2012, durante os Jogos de Londres, aos quais chegou como favorita, amargou novo revés. Foi eliminada na segunda luta sob a alegação de derrubar a adversária com um golpe ilegal. O episódio a tornou alvo de inúmeros ataques pela internet, inclusive de cunho racista, o que quase a fez encerrar a carreira aos 20 anos.
Quando retornou de Londres, a judoca ficou quatro meses sem competir. Deprimida, evitava sair às ruas. Passava os dias dentro de casa, assombrada pelas lembranças recorrentes da eliminação. Até que, por incentivo das colegas, aceitou se submeter a um coaching motivacional. Nele, a coach Nell Salgado percebeu que a raiva é o principal combustível de Rafaela. A lutadora, no entanto, não administrava bem o sentimento e vivia de mau humor. Na esperança de modificar o quadro, a coach – com quem a atleta ainda trabalha – lhe propôs uma dinâmica sui generis: às vésperas de uma competição, Rafaela deveria, primeiro, visualizar todos os percalços pelos quais passou até chegar ali, um exercício que certamente faria aflorar sua raiva. Com a irritação à flor da pele, teria que pensar na adversária: nas lutas que já travaram, nas técnicas da rival que mais a preocupavam, nas eventuais derrotas sofridas para ela. O passo seguinte seria enxergar a oponente – e não os familiares, os amigos, as colegas, o mundo – como responsável por toda aquela raiva, alguém que merecia pagar nos tatames pela fúria que lhe causara.
Em dezembro de 2012, Rafaela venceu a depressão e voltou a competir. Quatro meses depois, faturou a medalha de ouro no Pan-Americano de San José e, em agosto de 2013, seguiu para o mundial da modalidade. Botou na cabeça que, lutando em casa, no Maracanãzinho, não poderia fraquejar. Na madrugada anterior à estreia, mandou um WhatsApp para Nell Salgado: “Amanhã só saio daquele tatame campeã ou morta.” Saiu viva. Enfileirou cinco vitórias até conquistar o título mundial, com apenas 21 anos. Na segunda luta, a dezoito segundos do fim, Rafaela ainda perdia, mas acabou encontrando o waza-ari da virada. “Minha irmã parece uma fênix”, comparou Raquel. “Quando todo mundo acha que ela já morreu, que não sai mais nada dali, ela vai e ressuscita.”
Na manhã do dia 11 de janeiro, as judocas que treinam no dojô de Pindamonhangaba dividem-se em dois grupos. O principal está sob as ordens de Rosicleia Campos, técnica da Seleção há mais de dez anos, cargo que hoje divide com Mario Tsutsui. O secundário, constituído pelas novatas e por parte das reservas, se encontra sob a batuta da japonesa Yuko Fujii, a treinadora assistente. Mas só a voz firme de Rosicleia Campos (ou Rosi, como muitos a chamam) reverbera e alcança todas as atletas, inclusive as comandadas por Yuko Fujii, que não resistem em espiar furtivamente o lado oposto do tatame, onde a treinadora-chefe vocifera orientações com tamanha assertividade. “Não é para ninguém sair daqui exausta!”, brada. “Prestem atenção em cada movimento. Parem, respirem, oxigenem o cérebro. Vocês fazem tudo no automático! Aprendam a dosar energia! Treinem com inteligência!”
Carioca de 46 anos, 1,77 metro de altura e longos cabelos pretos, a técnica começou a servir a Seleção na adolescência. Conseguiu disputar duas olimpíadas como judoca, a de Barcelona e a de Atlanta, mas teve desempenho insatisfatório: fez três lutas no total e perdeu as três. Em 2000, depois de não se classificar para os Jogos de Sydney, encerrou a carreira. Mesmo assim, participou daquela competição. Foi convidada a atuar como treinadora assistente em vista da experiência que acumulara, do pendor para a liderança, da formação em educação física e do fato de conhecer muito bem as atletas que ajudaria a preparar. Após cinco anos, virou treinadora-chefe e não deixou mais o cargo. Quando o assumiu, as seleções masculina e feminina eram integradas e treinavam juntas. Não havia metas específicas para as mulheres. Os homens, mais antigos no esporte e detentores dos melhores resultados, mereciam praticamente toda a atenção dos cartolas e da equipe técnica.
Em parceria com Ney Wilson, o gestor de alto rendimento da CBJ, Rosi concluiu que chegara o momento do time das meninas voar sozinho. Sob a ótica das atletas, porém, a autonomia soava como um passo para trás, um retrocesso. A insatisfação se manifestou já no primeiro treinamento internacional que as judocas realizaram sem a presença da delegação masculina. Foi em 2006, na cidade equatoriana de Cuenca. Ali, além do Brasil, se encontravam as seleções do Equador, da Venezuela e de Cuba. A precariedade da infraestrutura esportiva, dos alojamentos e da comida revoltou as lutadoras, principalmente depois que algumas começaram a apresentar sinais de infecção intestinal. Érika Miranda, então iniciante, lembrou que ninguém se conformava em treinar num lugar como aquele enquanto os antigos parceiros se preparavam no glamour de Paris. “Eles estão lá porque merecem!”, disparou Rosicleia quando o chororô aumentou. “Eles têm medalhas olímpicas, têm medalhas em mundiais. E a gente, tem o quê?” As atletas se entreolharam. Seguiu-se um silêncio constrangedor. “Foi nessa hora que todo mundo acordou”, contou Érika. “Era verdade, a gente não tinha nada.” Reclamar do machismo que historicamente imperava na modalidade não bastaria para alçar as moças aos pódios.
Até Rosi se tornar treinadora-chefe, reinava a impressão de que a Seleção Feminina de Judô não passava de um mero ajuntamento das melhores atletas. Faltava união entre as judocas. “Quando estava todo mundo junto, não estava todo mundo junto”, definiu Érika. As lutadoras não percebiam que “o judô é o esporte individual mais coletivo que existe”, como explicou Sarah Menezes em 2009, ao receber um prêmio. Afinal, uma atleta deve sempre se colocar à disposição de outra nos treinos diários, servindo-lhe de “cobaia” no aperfeiçoamento de um novo golpe, por exemplo. Empenhada em minar o individualismo excessivo de suas subordinadas, Rosicleia fez com que as vitórias de cada judoca começassem a ser percebidas como um êxito do grupo, e os encargos das derrotas a ser divididos. A técnica plantou a semente dessa filosofia ali mesmo em Cuenca, quando convenceu as meninas de que precisavam compreender como as cubanas, algozes de praxe, se preparavam. Caso as rivais subissem um morro, as brasileiras iam no encalço. Se faziam polichinelo, as brasileiras também faziam. Edinanci Silva – à época, estrela do time – até botou a mão numa santa depois que viu as cubanas orarem diante dela.
O primeiro grande objetivo que Rosi estabeleceu foi o de medalhar em todas as categorias no Pan-Americano do Rio, que ocorreria em 2007. Tratava-se de um projeto ambicioso: nunca o Brasil havia alcançado tal performance. No pan anterior, de 2003, em Santo Domingo, as meninas tinham conquistado apenas quatro medalhas. Mas no Rio cumpriram a meta. Sete judocas ganharam medalhas – duas, inclusive, levaram o ouro. Para conquistar uma das douradas, Edinanci superou justamente uma cubana na decisão.
Austera, Rosicleia costumava gritar muito durante as lutas. Só mudou de estilo pouco antes da Olimpíada de Londres. Foi quando entrou em vigor a proibição de os técnicos orientarem as atletas enquanto o cronômetro corre. Desde então, os treinadores dirigem-se às judocas apenas entre o matte e o hajime – os segundos em que a arbitragem interrompe e reinicia o combate. Longe das competições oficiais, porém, Rosi continua sem poupar a voz. Em 2013, afastou-se temporariamente da Seleção para cuidar dos gêmeos Ana Clara e Matheus, frutos de seu casamento com Edmundo Santos Silva, ex-presidente do Flamengo. Mario Tsutsui, bem mais tranquilo, respondeu sozinho pelo comando da equipe, que passou meses voando em céu de brigadeiro. “Quando a Rosi voltou, fomos fazer uma gracinha qualquer e…”, recordou Érika, crispando o olhar como quem toma um susto.
A orientação da treinadora para que as judocas saibam poupar energia no dojô de Pindamonhangaba não sensibiliza Maria Portela. Nada a ver com insubordinação: a atleta só funciona se estiver na voltagem máxima. Embora seja uma das únicas entre as prováveis titulares que não possui medalhas olímpicas ou mundiais (a outra é Mariana Silva), ninguém treina com tanta dedicação quanto a gaúcha. Ela se esforça em dobro para buscar a redenção no Rio. Com apenas 1,58 metro de altura, é bem menor que a média das lutadoras de sua categoria – “gigantes” que costumam passar de 1,70 metro. Por isso, sempre parece em desvantagem nos combates. Naquela manhã de janeiro, busca aperfeiçoar o seoi-nage, um golpe especialmente difícil. Fazendo o papel de sparrings, três reservas se enfileiram diante de Maria, que realiza a manobra com o braço direito. Uma a uma, as jovens voam, se estatelam no solo e voltam à fila. Quando o exercício parece concluído, a judoca inverte o lado: agora a sequência de golpes se dá com o braço esquerdo, numa variação do seoi-nage, o ippon-seoi-nage. De novo, as sparrings voam e aterrissam estrondosamente. As manchas de suor se espalham pelo quimono de Maria, que expressa muito cansaço no rosto, mas não esmorece. “Ela é impressionante”, deixa escapar Rosicleia. Tão logo a série termina, a atleta vai almoçar com as companheiras e, depois, tira um cochilo. À tarde, está pronta para as simulações de luta, os handori.
Cada judoca participaria de seis handori em sequência, revezando de adversária. Ocorre que, num certo momento, por força das circunstâncias, Maria se vê sem oponente. Mais alto e mais pesado, o técnico Mario Tsutsui dispõe-se a enfrentá-la. O combate de três minutos começa truncado, mas logo a atleta se mostra bastante ofensiva. É seu estilo habitual de luta – o jeito que encontrou para compensar a baixa estatura e os braços relativamente curtos. Às tantas, ela surpreende o treinador e, ligeira, lhe varre a perna esquerda por trás. O mestre desmorona de costas no tatame. Maria abre um sorriso. Constrangido, o derrotado esboça alegar uma irregularidade na manobra da subordinada. “Ipponzaço! Deixa para a próxima, sensei”, zomba Maria. Testemunha do golpe perfeito, Érika Miranda passa por Tsutsui e o consola com um tapinha no bumbum.
Filha de uma empregada doméstica, Maria perdeu o pai quando tinha apenas 6 anos. Aos 8, iniciou-se no judô, sob o estímulo de uma professora. Ela lhe sugeriu conhecer o Projeto Mãos Dadas, em Santa Maria (RS), que desde 1994 recorre à arte marcial para educar crianças e adolescentes em situação de risco social. A princípio, o esporte não seduziu a menina. Mas, quando vieram as primeiras vitórias, a aprendiz de judoca pegou tanto gosto pela coisa que, pouco mais tarde, durante um torneio na cidade gaúcha, concedeu entrevista para um repórter local e confessou que sonhava disputar uma Olimpíada. Mal tomou conhecimento da declaração, um de seus três irmãos não conteve o riso: a mana numa Olimpíada? Impossível!
De Santa Maria, onde vivia com a família, a atleta seguiu para Criciúma (SC). Tinha 17 anos e integrou um time bancado pela prefeitura. Longe dos parentes, restou-lhe dividir um apartamento com outras meninas. Seis meses depois, porém, o técnico que a levou para Criciúma precisou sair da equipe. Maria preferiu debandar também e encontrou novo abrigo num clube de Joinville (SC). Lá aceitou um trabalho como baby-sitter e passou a morar no emprego. Desdobrou-se para conciliar o quimono com as obrigações de babá e as apostilas do ensino médio, que ainda cursava. Pela manhã, cuidava da pequena Valentina. No início da tarde, levava a garota à escola e ia estudar. Retornava das aulas no fim do dia, alimentava Valentina e só às 7 da noite partia para o treino. Quando atuou em times de São Paulo e Florianópolis, continuou fazendo as vezes de baby-sitter, já que não ganhava o bastante como atleta. Deixou o ofício há apenas cinco anos, após se transferir para a Sogipa, equipe de Porto Alegre em que se encontra até hoje.
“Verás que um filho teu não foge à luta.” O célebre verso do Hino Nacional, que Maria tatuou na batata da perna esquerda em 2012, tão logo retornou dos Jogos de Londres, reflete seu orgulho por ter participado daquela competição. Junto da frase, pediu que o tatuador desenhasse os cinco anéis coloridos e entrelaçados que simbolizam as olimpíadas. O orgulho, entretanto, não conseguiu neutralizar por completo a frustração que a atleta experimentou nos tatames londrinos. Ela foi despachada já na primeira batalha pela colombiana Yuri Alvear, 1,74 metro de altura, que sairia do torneio com a medalha de bronze e, depois, se tornaria tricampeã do mundo. Quando as duas se pegaram na capital britânica, havia a expectativa de uma disputa equilibrada. Afinal, três meses antes, Maria vencera a mesma adversária no Canadá. Ser atropelada com meros dois minutos de combate no dojô olímpico desnorteou a Raçudinha dos Pampas (o ex-judoca João Derly, bicampeão mundial, lhe deu o apelido). “Me deixa voltar lá! Por favor!”, implorou, chorando, a Rosicleia Campos, assim que deixou a área de luta. A técnica limitou-se a lhe dar um abraço maternal.
Como Maria, a meio-leve Érika Miranda tinha derrotado anteriormente, e por duas vezes, a rival da única luta que realizou em Londres, a sul-coreana Kyung Ok Kim. Na Inglaterra, porém, tudo deu errado para a brasiliense. Ela perdeu o confronto principalmente por causa da ansiedade, uma característica “de família”. “Qualquer problema que eu tivesse, queria resolver logo, resolver hoje”, contou. Os analistas de desempenho da Seleção levantaram um dado revelador sobre o assunto: o número de shidô que Érika levava costumava crescer a partir do segundo minuto de luta. Ela explicou que entrava no tatame “a mil por hora”, determinada a buscar o ippon rapidamente. Só que, quando o golpe demolidor não saía, sua insegurança aumentava e resultava em precipitações fatais. Para sanar o problema, a atleta vem se submetendo às orientações de Luciana Castelo Branco e Adriana Lacerda desde que retornou de Londres. As duas psicólogas lhe ensinaram algumas técnicas que a ajudam a dosar a ansiedade ao longo das lutas. Uma delas é “a do diálogo interior”: a judoca escolhe uma palavra curta extremamente positiva (“garra”, “foco”) e passa a repeti-la com frequência, à semelhança de um mantra, onde quer que esteja. Durante o combate, quando um pensamento negativo a assalta, Érika procura elaborar uma frase que inclua a palavra positiva e espante o baixo-astral. Por exemplo: se a lutadora pensar algo como “Meu braço dói, não vou conseguir”, deve rebater a caraminhola com um “Tenha garra, menina, ninguém vai tirar o que é teu!”. Até agora o método está funcionando. A atleta obteve os melhores resultados da Seleção no último ano. Sagrou-se campeã no Pan-Americano de Toronto e garantiu o bronze no Mundial de Astana (Cazaquistão).
Em Atlanta (1996), o judô nacional conseguiu duas medalhas, ambas graças à Seleção Masculina. Em Sydney (2000) e Atenas (2004), idem. Já em Pequim (2008), o saldo cresceu para três medalhas – uma veio do time feminino. Finalmente, em Londres (2012), o país alcançou seu melhor desempenho olímpico. Foram quatro medalhas, duas com os homens e duas com as mulheres. No Rio, o mínimo que a comissão técnica espera é igualar o resultado dos Jogos londrinos. Naquela ocasião, o objetivo de atingir quatro medalhas estressou muitíssimo a delegação brasileira, que faturou duas logo no primeiro dia da disputa – o ouro de Sarah Menezes e o bronze de Felipe Kitadai. Mas, nos dias que se seguiram, a fonte parecia ter secado e a pressão sobre os atletas aumentou bastante. “Não vão ganhar mais nada?”, ouviam constantemente dos jornalistas. Até que, no penúltimo dia, Mayra Aguiar levou o bronze e, no último, Rafael Silva cumpriu a meta também com bronze, obtido por um reles shidô de vantagem. “Foi para matar todo mundo do coração”, recordou Rosicleia.
Neste momento, o que mais preocupa os dirigentes é a condição de algumas judocas, como Maria Suelen Altheman. Titular habitual na categoria dos pesados, ela atravessava ótima fase até sofrer uma grave contusão no Mundial de 2014, em Chelyabinsk (Rússia). Rompeu o ligamento cruzado anterior do joelho direito justamente quando brigava pelo ouro. Não bastasse perder a medalha, ficou um ano em recuperação e só voltou às lutas no segundo semestre de 2015. Desde então, registra desempenhos oscilantes – não levou nada nas duas primeiras competições de que participou em 2016 (o Grand Prix de Havana e o Grand Slam de Paris), mas arrebatou o ouro no Grand Prix de Düsseldorf (Alemanha) e no Aberto de Lima.
Outro ponto que tira o sono da CBJ é a campanha ruim que as seleções masculina e feminina amargaram no Mundial de Astana, em 2015. O país saiu da Rússia com apenas um par de bronzes, o de Érika Miranda e o de Victor Penalber. O resultado chama a atenção sobretudo porque o Brasil havia brilhado nos dois mundiais anteriores. Em 2013, no Rio, conquistou seis medalhas (as mulheres responderam por cinco, incluindo o ouro de Rafaela Silva). No ano seguinte, em Chelyabinsk, somaram-se mais quatro medalhas – três alcançadas pelas moças.
O fracasso de Astana acabou impondo mudanças no planejamento da equipe feminina. “A começar pelo período de treinos em Pindamonhangaba, que antecipamos para 6 de janeiro. Em condições normais, o iniciaríamos na segunda quinzena do mês”, explicou Ney Wilson. Já Rosicleia contemporizou ao me dizer que as cinco medalhas ganhas pelas mulheres no Mundial do Rio não deveriam criar a expectativa de que tal performance se tornaria padrão. No fim do torneio de Astana, porém, botou as comandadas na parede. “O Comitê Olímpico proclama aos quatro ventos que somos o carro-chefe da delegação brasileira. Por isso, tenho de cobrar vocês!”, berrou. “Ah, não gosta de pressão? Então pede pra sair. Porque é pressão o tempo inteiro mesmo.”
Topo com Sarah Menezes logo depois dos handori em Pindamonhangaba. São 6 da tarde e a atleta já trocou o quimono por short e camiseta. Não se viam outras judocas circulando pelo hotel porque, exaustas, recolheram-se em seus quartos. Sarah não: decidiu que lhe cairia bem uma corridinha de trinta minutos, acompanhada de um preparador físico. “É que, para manter o peso às vésperas de uma competição, ou você deixa de comer e beber, ou faz muito exercício. Prefiro me exercitar”, diz. Na semana seguinte, a lutadora ganharia a medalha de ouro no Grand Prix de Havana.
Natural de Teresina, Sarah deixou o Piauí há quase um ano com o intuito de se preparar melhor para os Jogos do Rio. Hoje vive num condomínio fechado de Jacarepaguá e treina diariamente ali perto, no Instituto Reação, escola de judô criada pelo medalhista olímpico Flávio Canto. A sala do pequeno e aconchegante apartamento onde a atleta mora exibe poucos sinais de que aquele é o lar de uma campeã. Os prêmios que acumulou não estão expostos. As únicas referências à sua brilhante carreira se encontram emolduradas na parede. São duas mensagens em japonês, que ganhou de um sensei, com ideogramas grafados segundo as regras do shodô, arte caligráfica ligada ao budismo. Uma delas expressa alguns princípios básicos do judô: seiryoku zenyo (eficiência com o mínimo esforço do corpo e do espírito) e jita kyoei (a noção de que o lutador deve ter uma conduta exemplar dentro e fora do dojô). A outra mensagem saúda a “campeã da Olimpíada de Londres” como joo, rainha.
Sarah Menezes se instalou no Rio por intervenção direta da CBJ. A entidade a considera uma das atletas mais talentosas que o esporte brasileiro já produziu e, portanto, merecedora de cuidados especiais. Muito antes da glória em Londres, a piauiense cansou de enfileirar conquistas significativas. Foi campeã nacional aos 9 anos na categoria até 26 quilos, embora não passasse dos 22. Aos 13, outro título brasileiro lhe garantiu a classificação para o Pan-Americano de La Paz. Como a CBJ não cobre os gastos de lutadoras tão jovens, o treinador que a descobriu, Expedito Falcão, decidiu pagar sua viagem. O investimento compensou: a menina retornou da Bolívia com o ouro. Àquela altura, porém, Sarah não tinha nenhuma convicção de que seguiria no esporte. Gostava mais dos bichos. Certa vez, ainda criança, acordou com o uivo de Yanca à sua porta. Era uma cadela da vizinhança que a elegera como protetora. Depois de lhe oferecer água e comida, a garota a adotou com a anuência do dono. Mas um dia deram veneno à cachorrinha, que não resistiu. Tamanha maldade marcou Sarah profundamente. Mais tarde, quando também envenenaram Beethoven, cão presenteado por um tio, fez de tudo para salvá-lo e conseguiu. Resolveu, então, que seria veterinária. Por isso, apesar de talentosa, não levava o judô muito a sério e costumava faltar aos treinos. “Mesmo assim, comecei a lhe planejar uma carreira, e Sarah foi entrando na minha loucura”, contou Expedito Falcão.
Aos 15 anos, a atleta se sagrou campeã brasileira em três categorias de idades diferentes, Sub-17, Sub-21 e Sênior. O sucesso exigiu que viajasse cada vez mais, para participar de torneios dentro e fora do Brasil. Pouco sociável, o que até hoje lhe rende a fama de arrogante, chorava durante os períodos longe de casa. Pensou muitas vezes em desistir, mas, após desbancar duas concorrentes, Daniela Polzin e Andréa Berti, acabou se classificando para os Jogos de Pequim. A partir daí, deslanchou. Tornou-se bicampeã mundial júnior em 2008–2009 e, três anos depois, faturou o ouro na Olimpíada de Londres. No último biênio, porém, obteve resultados decepcionantes. Para a comissão técnica da Seleção, a oscilação é natural. “Uma atleta que sai do nada e se transforma em campeã olímpica sente psicologicamente o peso da façanha. Mas não se trata de algo incontornável. Ela vai superar isso”, avaliou Ney Wilson.
Atualmente, aos 26 anos, Sarah lida melhor com as viagens e não se sente solitária no Rio. Diz que aceitou se mudar porque, em Teresina, faltam lutadoras de bom nível com quem treinar. Sem contar que, no Instituto Reação, não precisa montar e desmontar os tatames como fazia no Piauí, onde nunca dispôs exatamente de uma academia – o Sesc local apenas empresta o espaço para Expedito Falcão ministrar seus treinos. A distância da terra natal também ajuda a judoca a se concentrar no esporte e não nos três cães que deixou com a família: o poodle Dolve, o meio cocker, meio poodle Beethoven (homônimo do anterior, pela incrível semelhança) e o vira-lata Ralph. Outros dois cachorros, os golden retrievers Pingo e Mel, tiveram uma doença parasitária grave no fim de 2015 e foram sacrificados. “O Ralph não entra mais no lugar em que o casal ficava. É como se ele soubesse das mortes”, contou Sarah, com o olhar distante. Quando lhe perguntei qual a pior parte de morar sozinha, ela respondeu de imediato: “Lavar o quimono.” Em Teresina, o pai, José Rogério, se encarregava da tarefa. “Agora sobra pra mim… O problema é que a máquina não tira o grosso da sujeira. Por isso, boto o quimono num balde com água sanitária e o deixo de molho. Depois, o esfrego na mão e o coloco de novo na máquina.” A única judoca brasileira que pode virar bicampeã olímpica não consegue se livrar da vaidade de manter o quimono branquinho.
Em Pindamonhangaba, os holofotes estão sobre Mayra Aguiar na tarde em que a CBJ libera os jornalistas para entrevistar as atletas. Embora muito jovem, a gaúcha de 24 anos é, além de medalhista olímpica, a maior vencedora do judô brasileiro em mundiais, mesmo se considerarmos os homens. Ela ganhou quatro medalhas como júnior e outras quatro como sênior. Grandalhona (tem 1,78 metro de altura e ombros largos de nadadora), suaviza a compleição avantajada com um sorriso luminoso e permanente. No momento em que conversamos, faz questão de recordar a árdua jornada que a levou da mesa cirúrgica a seu mais recente título mundial, oito meses depois. A operação dupla ocorreu pouco antes do Natal de 2013. No joelho direito, precisou reconstruir o ligamento lateral. Do cotovelo esquerdo, removeu um fragmento ósseo, fruto de uma lesão antiga, agravada após a chave que tomou de Kayla Harrison nos Jogos de Londres.
Mayra passou aquele Réveillon deitada na cama, imóvel. Qualquer movimento da perna lhe causava uma dor lancinante. “Virei criança de novo. Minha mãe ficou três meses cuidando de mim.” Durante o afastamento, sentiu muita saudade da adrenalina dos combates. Recuperada, voltou aos treinos com tanta gana que, mesmo sem estar no auge do condicionamento físico, conquistou a medalha de ouro logo no primeiro torneio pós-lesão, o Grand Slam de Tyumen, na Rússia, em julho de 2014. Um mês depois, no Mundial de Chelyabinsk, obteve o melhor desempenho de sua carreira. “Podia vir o Teddy Riner que eu lutaria para ganhar”, asseverou, referindo-se ao judoca francês tido como invencível. Riner, claro, não veio. Mas Kayla Harrison, sim – e na semifinal. O fantasma da derrota em Londres, porém, não assombrou Mayra, que venceu a norte-americana sem grande dificuldade. Na final, quando bateu a francesa Audrey Tcheuméo, festejou o título com discrição: limitou-se a sorrir como se soubesse de antemão que ganharia. Só depois, ao escutar o Hino Nacional, deixou a emoção fluir. Lembrou-se da mãe lhe dando banho.
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